O contexto
arquitetônico de Nova Iguaçu do final do século XIX e das quatro primeiras
décadas do século XX
Julio Cesar
Ribeiro Sampaio
SAMPAIO, Julio Cesar Ribeiro. O contexto arquitetônico de Nova Iguaçu do final do
século XIX e das quatro primeiras décadas do século XX. 19&20,
Rio de Janeiro, v. XVII, n. 1-2, jan-dez 2022. https://doi.org/10.52913/19e20.xvii12.01
* * *
1.
O
artigo apresenta os resultados e desdobramentos da pesquisa de Iniciação
Científica “Idiossincrasias do contexto arquitetônico de Nova Iguaçu,”
desenvolvida com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (Faperj), conduzida no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), no período de 2018 a
2019.
2.
A
investigação em questão concentra-se na abordagem das particularidades,
condições e estratégias de conservação do conjunto arquitetônico protegido, com
potencial de proteção e áreas de entorno de Nova Iguaçu, principal cidade da
Baixada Fluminense, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. As informações
que embasam estes diagnósticos e análises foram obtidas nas atividades acadêmicas
desenvolvidas no plano de ensino da disciplina de Projeto de Conservação e
Restauração do Patrimônio Edificado (IT819 - Módulo de Edificações), do curso
de graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRRJ, de 2012 a 2019. A
organização, complementação e aprimoramento deste material se processaram no
âmbito da citada iniciação científica.
3.
Evidenciou-se,
ao longo do trabalho, o aprofundamento das informações disponíveis sobre os
aspectos materiais e imateriais do conjunto arquitetônico de Nova Iguaçu. Essas
podem subsidiar a elaboração de políticas de proteção e de conservação de um
relevante patrimônio cultural que cobre diversas fases históricas - do período
colonial até a modernidade, com ênfase especial no final
do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX - nesse caso, o
mais expressivo dos pontos de vista quantitativo e qualitativo de periferias
intermediárias das regiões metropolitanas brasileiras.
4.
Os
resultados obtidos nos estudos de Nova Iguaçu reforçam o enquadramento de
sítios históricos urbanos como áreas críticas, conforme a Carta de
Petrópolis do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, Icomos Brasil,
de 1987. Constituem-se ainda como referência para o desenvolvimento de
propostas análogas a toda a região da Baixada Fluminense, a qual circunda a
cidade do Rio de Janeiro ao longo das Zonas Norte e Oeste. As características
sociais, econômicas, culturais e ambientais abordadas dessa localidade revelam
conflitos entre desenvolvimento e conservação, que servem de parâmetros para a
discussão deste quadro com relação às demais regiões metropolitanas do país e
similares em escala global.
Introdução
5.
As
áreas urbanas protegidas e com potencial de proteção são portadoras de aspectos
arquitetônicos, urbanísticos, paisagísticos, sociais e econômicos que as
diferenciam dos demais espaços urbanos. De acordo com a Carta de Petrópolis,
documento redigido no Primeiro Seminário Brasileiro para Preservação e
Revitalização de Centros Históricos (CURY, 2000, p. 285), esses locais devem
ser compreendidos nos seus sentidos operacionais como áreas críticas, “e não
por oposição a espaços não-históricos da cidade, já que toda cidade é um
organismo histórico.”
6.
A
diversidade da paisagem urbana das “áreas críticas” centrais da cidade de Nova
Iguaçu é marcada, entre outros aspectos, pela presença de edificações
protegidas (em uma escala menor) e com potencial de proteção do estilo
Eclético, das arquiteturas Art Déco, Neocolonial e Moderna, e por
prédios contemporâneos portadores de programas arquitetônicos variados
(unidades residenciais, comerciais, de usos mistos etc.). O grupamento dessas
principais manifestações arquitetônicas históricas da cidade é composto por
edificações de notáveis méritos arquitetônicos do cenário cultural local e
outras contextuais. O primeiro grupo destaca-se na paisagem urbana das áreas
onde se localiza, e compõe a maioria do conjunto de bens culturais protegidos
da cidade.
7.
As
edificações contextuais possuem aspectos estilísticos não tão requintados como
as edificações excepcionais. Entretanto, apresentam diversidades de ornamentos,
acabamentos, cores, programas, sistemas construtivos e outras características
arquitetônicas que personalizam trechos da cidade, sobretudo na parte central e
em sua periferia imediata. Esses dois grupos de edificações, cujas
significações ambientais se complementam, constituíram-se ao longo do século
XX. Ambos compõem as principais “áreas críticas” de Nova Iguaçu por conta dos
conflitos entre conservação e desenvolvimento. Nas periferias intermediárias e
distantes deste núcleo central encontra-se disperso outro grupo específico e também muito relevante para o cenário cultural da cidade,
composto por edificações dos períodos Colonial e Imperial. Destaca-se, neste
contexto, a Fazenda São Bernardino, de 1875, tombada pelo Governo Federal em
1951 e que vem se deteriorando há várias décadas.
8.
A
importância de todo esse conjunto arquitetônico fundamenta-se em termos
quantitativos (o número considerável de exemplares) e qualitativos
(integridade, homogeneidade, valores artísticos e históricos diversificados e
únicos).
9.
O
enfoque deste artigo concentra-se na avaliação das condições atuais desse
significativo grupamento de edificações que diferencia Nova Iguaçu das demais
cidades da Baixada Fluminense, e compõem o universo de atuação de um projeto
mais abrangente que vem sendo realizado desde 2012. Trata-se do inventário
arquitetônico da região, desenvolvido a partir da contribuição do curso de
Arquitetura e Urbanismo da UFRRJ, especificamente das atividades acadêmicas
contidas no plano de ensino da disciplina de Projeto de
Conservação e Restauração do Patrimônio Edificado (IT819), no Módulo de
Edificações (SAMPAIO, 2016).
10.
Os
dados produzidos pelo inventário arquitetônico de alunos(as) da UFRRJ foram
organizados e analisados a partir de uma pesquisa financiada pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), no período de 2018 a
2020. Os resultados desses procedimentos e dos seus desdobramentos serão
abordados a seguir.
Obtendo os dados: os Projetos Básicos
de Conservação (PBCs) de alunos(as) do curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFRRJ
11.
A
disciplina de Projeto de Conservação e Restauração do Patrimônio Edificado
(IT819), no Módulo de Edificações, visa capacitar o estudante para interferir
em edificações protegidas e/ou com potencial de proteção, conforme as
recomendações das diretrizes curriculares dos cursos de graduação do país
(Resolução n. 2, de 17 de junho de 2010) e da regulamentação do exercício
profissional (Lei n. 12.378, de 31 de dezembro de 2010). Essa formação, no caso
específico, assenta-se nos princípios e procedimentos metodológicos do campo do
saber da conservação, cujas abordagens são precedidas pela compreensão das
noções de patrimônio cultural, suas respectivas categorias e seus instrumentos
de proteção que ajudam a contextualizar essas discussões.
12.
O
plano de ensino em evidência, praticado na UFRRJ desde 2012, também se articula
com as discussões particulares do ensino de conservação nos cursos de graduação
em Arquitetura e Urbanismo. Leva em consideração importantes debates que
ocorrem nos âmbitos institucionais, no Comitê Científico de Formação
Profissional do Conselho Internacional de Monumentos e Sítio - CIF/Icomos
(AHONIEMI, 1995), na Rede PHI - Patrimônio Histórico Cultural
Iberoamericano, e nos domínios acadêmicos referenciando importantes
contribuições como as de Derek Linstrum (1996), e Bernard Feilden e Jukka
Jokilheto (1993).
13.
Os
procedimentos didáticos da disciplina IT819/UFRRJ estruturam-se em aulas
expositivas e estudos de casos. Os tópicos do programa correspondem às fases
dos Projetos Básicos de Conservação (PBCs): pesquisas históricas das
edificações, análise das condições atuais (planialtimetria, características
arquitetônicas remanescentes, ambiência, mapeamento de danos e análise das
legislações vigentes) e técnicas básicas de conservação. Esta proposta
pedagógica baseia-se, ainda, na contextualização das reflexões anteriormente
apontadas, nas experiências desenvolvidas nos cursos de Arquitetura e Urbanismo
do Centro Universitário Geraldo de Biasi (2001-2002) e da Universidade Federal
de Juiz de Fora (2004-2010) (SAMPAIO, 2009).
14.
O
aprendizado das sínteses conceituais e metodológicas abordadas ao longo do
semestre letivo é avaliado a partir dos PBCs [Figura 1]. Para
o desenvolvimento desses trabalhos, as turmas são divididas em grupos de, no
máximo, quatro alunos(as). Cada grupo escolhe um exemplar do universo
arquitetônico da cidade de Nova Iguaçu, protegido ou com potencial de proteção,
relativamente deteriorado, descaracterizado, recuperável e passível de
transformação de uso, com o objetivo de explorar a complexidade do campo do
saber da conservação. Esse contexto concentra-se em duas áreas “críticas,”
ambas na parte central da cidade: ao redor da Rua Getúlio Vargas e nas
imediações do Calçadão de Nova Iguaçu (Rua Ministro Edgar da Costa). Mas também
inclui edificações situadas em outras partes da cidade, que já se encontram
protegidas: uma pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/Iphan (Fazenda São Bernardino [Figura 2]) e outras 12
pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (conjunto urbano da extinta Vila de
Iguaçu [Figura 3], antiga
Estação Ferroviária de Rio d’Ouro [Figura 4], entre
outras). Após esse processo seletivo, os grupos apresentam as
edificações em um seminário para que seja avaliada a pertinência da escolha e
para que toda a turma tenha uma visão abrangente do conjunto arquitetônico em
questão.
15.
A
conservação dos casos selecionados vincula-se aos valores culturais,
históricos, artísticos, científicos e/ou afetivos do patrimônio edificado de
Nova Iguaçu. Podem ser de grande, médio ou pequeno porte, de notáveis méritos
arquitetônicos (os casos tombados)[1]
ou de valores de conjunto (no caso das duas áreas centrais abordadas),[2] com condições de acessibilidade
facilitada.
16.
Os
PBCs refletem o conteúdo e a sequência dos temas que constituem os tópicos do
programa da disciplina. As fases concentram-se na pesquisa histórica e na
avaliação das condições atuais das edificações. Os grupos produzem versões
preliminares, avaliadas com pesos proporcionais, passíveis de aprimoramentos em
função da identificação de informações complementares incorporadas nas versões
finais. Estas últimas são antecedidas por estudos preliminares por meio dos
quais são apresentados, em seminários, os danos (de caracterização e de
deterioração), as intervenções de conservação e os programas arquitetônicos das
transformações de uso.
17.
Os
relatórios finais são estruturados nas normas de trabalhos acadêmicos da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). As partes seguem a ordem do
desenvolvimento dos PBCs. Nos anexos, são incluídas as documentações da
pesquisa histórica (documentos, fotografias, projetos etc.) [e. g., Figura 5 e Figura 6], as
plantas do levantamento planialtimétrico, do mapeamento de dano e do
anteprojeto, que se baseiam nos itens básicos determinados pela Norma
Brasileira (NBR) 6.492, de Representação de Projetos de Arquitetura. Todo esse
material é encadernado em um único volume no formato A4.
18.
Do
primeiro semestre de 2012 até o fim de 2019 foram realizados 64 PBCs por
alunos(as) do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRRJ, em Nova Iguaçu, nos
moldes dos PBCs de Juiz de Fora (UFJF). Trata-se de uma amostragem
significativa do universo arquitetônico dessa cidade, permitindo a compreensão
da trajetória histórica e das condições atuais de tais edificações. Esse
material foi organizado, sistematizado e analisado em uma pesquisa com apoio da
Faperj, cujos resultados serão apresentados na parte seguinte.
O processamento das informações: as idiossincrasias do contexto arquitetônico de Nova Iguaçu
Mapa 1 - Localização dos PBCs na Cidade de Nova Iguaçu
Produzido
com JupyterLab 1.2.6 e Folium 0.11.0, com editoração e diagramação de.Arthur Valle (UFRRJ)
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/jcsr_novaiguacu_arquivos/ni_mapa.html
19.
O
plano de ensino da disciplina de Conservação da UFRRJ determina um padrão na
estruturação e na formatação dos PBCs que foi parcialmente desconsiderado por
alguns grupos. A primeira fase da pesquisa, apoiada pela Faperj, por meio do
Edital de Iniciação Científica de 2018, concentrou-se na padronização dos
relatórios dos 64 PBCs realizados até o segundo semestre letivo de 2019. Os
exemplares foram identificados, catalogados e armazenados no Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da UFRRJ.
20.
Em
seguida, os conteúdos dos PBCs foram editados e sintetizados em fichas
sumárias, cuja formatação e composição foram definidas por uma análise de
exemplos de inventários arquitetônicos disponíveis na literatura especializada
de patrimônio edificado, sobretudo de edificações. As informações básicas são
compostas pelos dados de identificação, informações históricas, características
arquitetônicas remanescentes e condições atuais [Figura 7].
21.
A
partir das pesquisas das documentações históricas escritas e iconográficas, de
fontes primárias e predominantemente secundárias,[3] desenvolvidas por alunos(as) em arquivos, bibliotecas,
órgãos da Prefeitura de Nova Iguaçu, e também em
entrevistas, foi possível realizar uma síntese da trajetória histórica dessa
localidade e região fundamental à compreensão do contexto das edificações
trabalhadas nos PBCs.
22.
A
formação de Nova Iguaçu remonta ao período colonial (1500-1822), no momento da
divisão do atual país em Capitanias Hereditárias, e à posterior distribuição de
sesmarias na região, por volta da década de 1550.[4] Várias referências consultadas (dentre elas, TÔRRES, 2008) indicam que essas sesmarias transformaram-se em freguesias situadas ao longo dos rios da
região. A mais próspera delas foi a de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu.
Nesse período, a região era ocupada por fazendas com produção agrícola
diversificada (especialmente da cana-de-açúcar), incrementada com a construção
do Caminho Novo de Garcia Rodrigues Paes, na década de 1720, ligando a atual
Ouro Preto ao Rio de Janeiro, e que passava próximo desse local.
23.
O
núcleo histórico de Nova Iguaçu, entretanto, não se situava na parte central
atual e tinha outra denominação: Iguassú, localizado às margens do Rio Iguassú,
que vai se transformar em vila, no século XVIII [Figura 8], e
em cidade, no século seguinte. São dessa ocasião as construções de várias
igrejas ainda existentes (Igreja Nossa Senhora da Conceição de Marapicu, Capela
Nossa Senhora de Guadalupe, Capela da Posse, entre outras), datadas sobretudo
do século XVIII. Do núcleo original de Iguassú, restam apenas as ruínas da
Matriz de Nossa Senhora da Piedade, do muro do cemitério e vestígios do antigo
porto local.
24.
Nas
proximidades de Iguassú, na segunda metade do século XIX, foi construída a
Fazenda São Bernardino [Figura 9 e Figura 10],
que se tornou a principal da região com plantações diversas (açúcar, mandioca
e, especialmente, café). A sua relevância histórica e artística levou o Iphan,
em 1951, a convertê-la em patrimônio cultural nacional (o único de Nova
Iguaçu). Trinta e dois anos depois, a casa-sede sofreu um incêndio criminoso
que a transformou em ruínas.
25.
Pouco
tempo depois da construção da São Bernardino, em 1858, é inaugurada a Estrada
de Ferro Dom Pedro II, impactando e diversificando a ocupação da região. Nesse
momento, Iguassú perde relevância social e econômica
para uma nova centralidade, o Arraial de Maxambomba,
localizado próximo a essa via férrea, onde hoje se situa a parte central de
Nova Iguaçu, passando a ter essa denominação a partir de 1916 e convertendo-se,
gradualmente, em um centro comercial e de serviços da região. Alguns anos
depois, na década de 1930, Nova Iguaçu vai se transformar em um dos principais
produtores de laranja do país. A parte central da cidade terá uma expansão
significativa em função de atividades diretas e indiretas correlacionadas com
essa fase econômica local.
26.
Com
o advento da Segunda Guerra Mundial, a suspensão do comércio internacional
afetará consideravelmente a produção da laranja em Nova Iguaçu, que entra em
declínio irreversível. Da década de 1940 em diante, toda a Baixada Fluminense
passa se integrar ao município do Rio de Janeiro em um processo de conurbação
que compôs a segunda maior região metropolitana do país. Nova Iguaçu, nesse
período, terá parte do seu território fragmentado em outros municípios. A
primeira leva de emancipação, na década de 1940, criou os municípios de Duque
de Caxias, Nilópolis e São João de Meriti. Em um segundo momento, na década de
1990, foram implantadas as municipalidades de Belford Roxo, Queimados, Japeri e
Mesquita. Mesmo assim, Nova Iguaçu ainda permanece como a maior cidade da
Baixada Fluminense.
27.
Além
da ferrovia da Central do Brasil, a Baixada Fluminense passou a ser interligada
com o Rio de Janeiro e São Paulo, a partir de 1952, pela Rodovia Presidente
Dutra. Esses acessos facilitaram o deslocamento da cidade do Rio de Janeiro
para toda a Baixada, especialmente para Nova Iguaçu, transformando-a na segunda
maior população de toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro,
estruturando-a em um dos centros comerciais e de serviços mais importante do
Estado.
28.
As
64 edificações dos PBCs da UFRRJ distribuem-se nos períodos históricos
anteriormente resumidos. Sete desses casos no Período Colonial (do século
XVIII); quatro no Imperial; e 53 no Republicano (todas do século XX). Delas,
apenas uma é tombada pelo Iphan (a referida Fazenda São Bernardino), e outras
12 pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, sob tutela do Instituto Estadual
do Patrimônio Cultural (Inepac) da Secretaria de Estado de Cultura e Economia
Criativa. Esta amostragem representa uma síntese consistente do universo de
manifestações arquitetônicas da região (Baixada Fluminense), do Estado e do
país, no âmbito das periferias das regiões metropolitanas, conforme será
apresentado a seguir (Figura 11, Figura 12, Figura 13, Figura 14 e
Figura 15).
29.
Os
programas arquitetônicos básicos identificados nos PBCs refletem as diversas
demandas de cada momento da trajetória da formação de Iguassú,
Maxambomba e Nova Iguaçu, especialmente dessa última fase. Neste universo,
predominam 21 residências (em maior número, especialmente unifamiliares), sete
templos religiosos (todos católicos), três estações ferroviárias, 11
estabelecimentos comerciais, entre outros. São informações valiosas que
permitem compreender as diversas facetas da vida cotidiana e as tendências sociais
e econômicas de Nova Iguaçu. São aspectos que foram convertidos em patrimônio
cultural edificado por arquitetos e demais profissionais da construção civil
nas ocasiões em questão.
30.
Os
conhecimentos adquiridos por alunos(as) nas disciplinas de Arquitetura
Brasileira I (IT817) e II (IT818), somados às informações catalogadas das
referências bibliográficas manuseadas da pesquisa de Iniciação Científica da
Faperj, permitiram traçar uma síntese das tendências estilísticas do conjunto
arquitetônico composto por esses PBCs. Nesse cenário, destacam-se três grupos:
das edificações religiosas construídas nos séculos XVIII e XIX; dos casos que
se concentram em Iguassú; e dos demais exemplares concentrados em Maxambomba e
Nova Iguaçu, majoritariamente construídos nas quatro primeiras décadas do
século XX.
31.
As
igrejas que se dispersam nas periferias da cidade assemelham-se aos padrões
jesuíticos e barrocos avaliados por Lúcio Costa (1975),
German Bazin (1983) e Sandra Alvim (2014). Essa e outras constatações foram
complementadas nos PBCs e na sua edição, por meio da referência O Rio de
Janeiro nas visitas pastorais do Monsenhor Pizarro, editado por Marcus Monteiro (2008).[5] Pesquisas adicionais (documentais e entrevistas)[6] foram feitas por alunos(as) no
arquivo da Diocese de Nova Iguaçu.
32.
No
grupamento arquitetônico de Iguassú, a edificação principal avaliada foi a
Fazenda São Bernardino, que se constituía em um importante complexo agrícola da
segunda metade do século XIX, de inspirações neoclássicas. O conjunto urbano da
extinta Vila de Iguaçu, situado próximo dessa fazenda, que apresenta estrutura
remanescente da ocupação da região desde o século XVI, também foi trabalhada.
Nele, ainda é possível identificar parte da Matriz de Nossa Senhora da Piedade,
de fins do século XVII; do cemitério vizinho; vestígios de alicerces de antigas
edificações; e de um porto fluvial. Por muitos anos, tais edificações ficaram
arruinadas. Estavam nessas condições quando foram avaliadas por alunos(as) da
UFRRJ. Entretanto, recentemente, a Prefeitura de Nova Iguaçu promoveu
intervenções de conservação em todo esse complexo, que se concentram na igreja
matriz. Ainda no século XIX, é importante destacar a construção do Reservatório
de Rio d’Ouro, de 1879 (tombado pelo Governo do Estado em 1988) [Figura 16],
situado em um sítio natural de notável valor paisagístico, com lagos, renques
de palmeiras, calçamento de pedras, gradis em ferro forjado, estátuas e um
pavilhão de manobras de tendência estilística neoclássica.
33.
As
edificações de Maxambomba e Nova Iguaçu (a partir de 1916) enquadram-se
majoritariamente nas tendências compositivas do período Eclético brasileiro,
com destaque para os casos que se inspiram tardiamente na linguagem clássica da
arquitetura, conforme trajetória analisada por John Summerson
(1982), sobretudo nos aspectos correlacionados com o renascimento, maneirismo,
barroco e neoclássico, os quais são contextualizados no âmbito brasileiro por
meio dos trabalhos de Nestor Goulart Reis Filho (1978),
Carlos Lemos (1979), Annateresa Fabris (1978), entre outros. O Bar Brasil,
de 1928 [Figura
17], situado na Avenida Marechal Floriano Peixoto n. 1991, no centro da
cidade, e várias outras edificações construídas majoritariamente nas décadas de
1920 e 1930, no auge da fase do cultivo de laranjas, refletem essas tendências.
Nesse mesmo período, percebe-se também em Nova Iguaçu a presença de edificações
de inspirações neogóticas e do que ficou convencionado como chalés e normando
na literatura especializada de história da arquitetura (SANTOS,
1981). A sede da Cruz Vermelha [Figura 18],
no Centro de Nova Iguaçu, evidencia tais características.
34.
Ainda
na década de 1930 e na seguinte, o repertório do período Eclético é acrescido
da linguagem arquitetônica do Neocolonial, que tem no Hospital
Iguaçu (1935) [Figura 19]
e no Instituto de Educação Rangel Pestana (1944) [Figura 20],
dois dos principais exemplos de Nova Iguaçu, ao lado de um grupo de edificações
contextuais, de características estilísticas semelhantes, que lembram os casos
do cenário arquitetônico do subúrbio do Rio de Janeiro. Em contraposição às
tendências historicistas, a partir dessa ocasião, sobretudo da década de 1940
em diante, muitos proprietários construíram suas edificações inspirados em
vertentes consideradas de vanguarda na Baixada Fluminense. O Art Déco do prédio da Rua Getúlio Vargas n.
122/124, no Centro [Figura 21], e outros similares, posicionam Nova Iguaçu
nessa conjuntura. Da mesma forma que a imponente sede do Fórum
Itabaiana (1954) [Figura 22], projeto do arquiteto Francisco da Rocha
Villaça, que apresenta o típico repertório modernista praticado na ocasião, nas
principais cidades do país, nesse caso caracterizado pela ausência de
ornamentações historicistas, longas janelas em fita, brise-soleil,
planta livre etc.
35.
Essas
manifestações arquitetônicas baseiam-se nos padrões arquitetônicos
predominantes de cada fase histórica anteriormente apresentada. As referências
principais são europeias. No período Colonial, são portuguesas; e, do século
XIX em diante, são especialmente francesas, inglesas, italianas e da corrente
internacional modernista. A cidade do Rio de Janeiro, capital no período
colonial a partir de 1763, em toda a fase imperial (ao longo do século XIX) e
na República, até 1960, intermediou a aplicação desse repertório arquitetônico
para a realidade social, econômica e cultural da Baixada Fluminense.
36.
O
conjunto dos padrões arquitetônicos e construtivos observados em Nova Iguaçu
revela a singeleza do imaginário de periferia. Representa, na realidade,
tentativas de apropriações do que era hegemônico em termos de tendências
edilícias regionais e nacionais. Entretanto, em termos locais, esse conjunto é
bastante inovador e representa uma transição da dimensão rural para a urbana da
região. Demostra, a partir do fim do século XIX, iniciativas de se descolar de
um passado escravocrata, identificando-se com novas formas burguesas de se
viver que já eram realidade, por exemplo, na capital Rio de Janeiro. Avança nos
conceitos e ações de simplificações, estilizações e particularizações de
soluções compositivas e construtivas já praticados em outros centros urbanos do
país, conforme indicam Carlos Lemos (1985), no caso de
São Paulo; e Pedro Alcântara (1981; 1984) e Dora Alcântara (1984), no Rio
de Janeiro. Em um momento mais recente, da segunda metade do século XX em
diante, assemelha-se aos processos de reinterpretações modernistas estudados
por Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti (1979).
Portanto, é um repertório arquitetônico repleto de idiossincrasias,
que demanda estudos complementares para se dar conta pormenorizada de toda esta
complexidade apresentada.
37.
A
pesquisa de IC da Faperj também processou os dados das condições atuais dos
estudos de casos que compõem o conjunto arquitetônico dos PBCs. As 64
edificações abordadas encontram-se com programas arquitetônicos parcialmente
mantidos. A maioria teve transformações de usos que se correlacionam com a
conversão da cidade em centro comercial e de prestação de serviços regionais. O
programa mais alterado foi das residências unifamiliares, modificadas para
instalações de clínicas, escritórios, lanchonetes, entre outras novas funções.
38.
As
estações ferroviárias são os casos que representam as maiores perdas de uso,
especialmente por conta das extinções dos ramais ferroviários da região. A
maior parte encontra-se invadida. Uma delas, a Estação
de Vila Nova de Cava [Figura 23], foi recentemente reintegrada pela
Prefeitura de Nova Iguaçu. Quase todas as igrejas tiveram uso religioso
preservado. Porém, três delas encontram-se abandonadas. Grande parte das
transformações de usos causou descaracterizações irrecuperáveis nos interiores
e nas áreas externas, exceto no caso da Casa de Cultura
(antiga residência da família Di Gregório) [Figura 24],
que teve projeto adequado do ponto de vista de conservação em termos
conceituais e metodológicos disponíveis na literatura especializada.[7] Por outro lado, as fachadas e
coberturas dessas mesmas edificações encontram-se com as características
originais relativamente preservadas.
39.
Quanto
ao estado de conservação, observa-se que a falta de uso comprometeu severamente
a integridade de algumas edificações, afetadas por diversos fatores de
deteriorações que colocam em risco até a sua estabilidade. As igrejas (situação
da Capela Nossa Senhora de Guadalupe [Figura 25])
e estações ferroviárias (por exemplo, a Estação Ferroviária Rio D’Ouro),
que se localizam nas redondezas da cidade, são os casos mais comprometidos.
Entretanto, na parte central da cidade, a edificação da Rua Bernardino de Melo
n. 2107 exemplifica também alguns casos com graus de deterioração avançados.
40.
As
informações apresentadas de uma parte expressiva do conjunto arquitetônico de
Nova Iguaçu (em termos qualitativos e quantitativos) permitem a conclusão
inicial de que se trata de um dos principais casos situados nas periferias de
regiões metropolitanas do país. As diversidades de fases históricas, programas
arquitetônicos, soluções compositivas, estilísticas, entre outros fatores,
sustentam essa conjectura. Os trabalhos do Instituto do Patrimônio
Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) na Região Metropolitana de Salvador
(1975; 1978), da Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do
Recife/Fidem (1978), e da Fundação para o Desenvolvimento da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro/Fundrem (1982) contextualizam estes resultados
apresentados. Convém destacar a vulnerabilidade desse valioso patrimônio
cultural em função das diversas carências das periferias das regiões
metropolitanas brasileiras evidenciadas no Estatuto das Regiões Metropolitanas
(Lei n. 13.089/2015) - apesar de o Plano Estratégico da Região Metropolitana do
Rio de Janeiro (Governo do Estado do Rio de Janeiro,
2018) recomendar diretrizes para a conservação do patrimônio cultural da
região.
Os desdobramentos
41.
Os
PBCs produzidos por alunos(as) do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRRJ
cumprem satisfatoriamente as metas acadêmicas estabelecidas no plano de ensino
da disciplina de Projeto de Conservação e Restauração do Patrimônio Edificado
(IT819), no Módulo de Edificações [Figura 26].
Viabilizam os objetivos do projeto pedagógico do curso, atingem os parâmetros
básicos da formação profissional estabelecidos pelo Conselho de Arquitetura e
Urbanismo do Brasil/CAU e contribuem para a consolidação da política de
Conservação do patrimônio cultural de Nova Iguaçu. Essa proposta pedagógica
produziu resultados semelhantes na Universidade Federal de Juiz de Fora.[8] Os 64 PBCs produzidos nessa
instituição foram doados para a Diretoria de Patrimônio Cultural da Prefeitura
de Juiz de Fora e usados na publicação de três cartazes, com desenhos das
fachadas principais de 60 edificações, todas tombadas.
42.
Das
64 edificações estudadas na UFRRJ, 13 delas já são protegidas. As demais
possuem potencial de proteção que necessita ser revisto em função do grau de
caracterização e de deterioração desse momento. A confirmação de tal
potencialidade estimularia a criação dos instrumentos de proteção no âmbito
municipal que ainda precisam ser implementados em Nova Iguaçu. Colaboraria na
ampliação das cidades da Baixada Fluminense, que dispõem de legislação local de
proteção do patrimônio cultural. Das 13 cidades da região, apenas os municípios
de Nilópolis (cfr. MONTEIRO, 2012) e Duque de Caxias
possuem tais prerrogativas.
43.
O
processamento das informações dos PBCs da UFRRJ desenvolvido no citado projeto
de iniciação cientifica da Faperj poderia se converter em um estudo-piloto para
a criação de um banco de dados de edificações protegidas e com potencial de
proteção nacional, constituído pelas contribuições das disciplinas
correlacionadas com o campo do saber da Conservação dos cursos de Arquitetura e
Urbanismo do país, nos moldes da proposta feita pelo autor deste trabalho, na
versão do Terceiro Seminário Ibero-americano Arquitetura e Documentação 2013
(SAMPAIO, 2013). Levando-se em consideração o quantitativo dos cursos
existentes na ocasião (320) e o número médio de alunos(as) por disciplina, (30
estudantes, 15 para cada docente,[9]
divididos em quatro grupos), estimou-se que seria possível cadastrar cerca de
2560 edificações. Atualizando esses dados, a partir dos 466 cursos existentes
neste momento, conforme os dados disponíveis na página da Associação Brasileira
de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (2021), seria possível ampliar esse
universo para algo em torno de 3720 casos, com custo de produção acessível,
gestão otimizada e sustentável.
44.
Em
termos de contribuições para o aprimoramento do campo do saber da Conservação,
os resultados obtidos nos trabalhos de Nova Iguaçu avançam na relativização do
universo do patrimônio cultural brasileiro. Produzem subsídios para o
aprimoramento da catalogação de informações para iniciativas de proteção e/ou
conservação do patrimônio cultural edificado. Conjugam, em uma só proposta, os
objetivos de capacitação, formação profissional, iniciação científica e
desenvolvimento de políticas de conservação. E, finalmente, valorizam o
estabelecimento de pontes entre teoria e prática, interligando o plano das
ideias (conceitos e procedimentos metodológicos) com o contexto empírico,
sobretudo da solução de demandas sociais, neste caso específico, da conservação
de um valioso patrimônio cultural, contextualizado ao longo deste trabalho.
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______________________________
[1] Edificações que se destacam na paisagem urbana em
função da complexidade das escalas, volumetrias, requintes das composições
arquitetônicas, de acabamentos e integridade do grau de caracterização.
[2] Edificações contextuais portadoras de aspectos
arquitetônicos não tão depurados como as edificações de notável mérito,
integrantes de um conjunto com composições arquitetônicas homogêneas, íntegras,
articuladas e singulares, do ponto de vista artístico e histórico, que caracterizam
um ambiente urbano, o qual pode compor a paisagem urbana de uma rua, quadra,
praça etc.
[3] Com referenciamento frequente de Marcus Monteiro
(2008) e Gênesis Tôrres (2008).
[4] Convém destacar que toda região da Baixada Fluminense
possui um vasto e importante acervo arqueológico do período Pré-Cabralino com
vestígios que remontam à Pré-História. Na construção do Arco Metropolitano
(Rodovia BR 493), de 2007 a 2014, que liga a Cidade de Itaguaí a Itaboraí, de
acordo com o Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB,
2014), foram identificados 22 sítios arqueológicos do início da ocupação da
região até o século XVIII [cfr. IMAGEM]. A Prefeitura de Nova Iguaçu realizou, em 2020,
a exposição “A Cultura Tupy nas terras do Guaguassú: fragmentos da História
Iguaçuana da Pré-História ao Século XVI”, apresentando diversos artefatos desse
período, dentre eles, uma lâmina de machado de mão [IMAGEM],
considerada o mais antigo artefato encontrado na Baixada Fluminense, com
datação de 6000 a 9000 anos.
[5] Esta edição consiste na reprodução parcial do manuscrito
Livro das visitas pastorais, escrito por Monsenhor Pizarro entre 1794 e
1795, disponível no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
[6] Com o historiador Antônio Lacerda, responsável por
este arquivo na ocasião.
[7] Sintetizados nos trabalhos de Brereton (1991),
Feilden, (1996) entre outros.
[8] Este plano de ensino foi premiado em 2010 no “Concurso de ações pedagógicas inovadoras na graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora - Aula em Vitrine”. Também foi reconhecido como uma prática didática inovadora com amplo impacto na sociedade, sobretudo na região da Baixada Fluminense, no processo de avaliação do Programa de Pós-graduação (Mestrado Acadêmico) em Patrimônio, Cultura e Sociedade da UFRRJ feita pela CAPES neste último quadriênio (2017-2020).
[9] Conforme recomendação do documento Perfis da Área
& Padrões de Qualidade Expansão, Reconhecimento e Verificação Periódica dos
Cursos de Arquitetura e Urbanismo, da Secretaria de Educação Superior/Sesu
(MEC, 2021), para as disciplinas de projeto.