Os jardins da Chácara do Challet - Uma análise da atuação de Glaziou em Nova Friburgo
Camila Dias Amaduro [1]
AMADURO, Camila Dias. Os jardins da Chácara do Challet - Uma análise da atuação de Glaziou em Nova Friburgo. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/jardins_glaziou.htm>.
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Introdução
1. A Chácara do Challet [Figura 1], construída entre 1850 e 1860 para o lazer e descanso da família Clemente Pinto, e propriedade do 1° Barão de Nova Friburgo, tem se revelado uma preciosa fonte de pesquisa. Além de lançar luz sobre a importância histórica do Barão e de seus descendentes para o desenvolvimento e urbanização do município e redondezas e para a produção cafeeira do Vale do Paraíba, que contribuiu para que o café brasileiro despontasse no mercado internacional, os estudos sobre a Chácara do Challet apresentam relevância também em relação a suas características arquitetônicas e paisagísticas. O Challet foi projetado pelo arquiteto alemão Gustave Waenheldt, o mesmo que projetou outras importantes residências do Barão [Figura 2], como o Palácio Nova Friburgo na cidade do Rio de Janeiro (atual Museu da República no bairro do Catete) e o Solar do Gavião em Cantagalo.
2. Os jardins da Chácara foram projetados por Auguste François Marie Glaziou, o renomado paisagista francês que fez do Brasil o berço de seu trabalho. Foi ele quem realizou as obras de reforma do Passeio Público e a execução do Campo de Santana e dos jardins da Quinta da Boa Vista. A autoria de muitos outros jardins é atribuída a ele, mas a falta de documentação leva a inúmeras discussões. Em sua passagem por Nova Friburgo, Glaziou projeta os jardins da “Chácara do Barão de Nova Friburgo” [2] e os da Praça Princesa Izabel[3] - que eram os jardins de outra imponente casa do Barão, o ‘Solar da Baronesa’ ou a ‘Casa Grande de Nova Friburgo’, espaço que posteriormente foi doado ao poder público pela família. Há indícios de que outras áreas municipais[4] tenham recebido influência do trabalho do paisagista francês, mas nada pode ser afirmado visto que as fontes são desconhecidas.
3. Os jardins da Chácara tornam-se mais conhecidos pela população friburguense à época do Conde de São Clemente, filho do 1° Barão de Nova Friburgo. Por isso, a Chácara do Chalet recebeu o nome de Parque São Clemente - usual até hoje. A Chácara do Challet é um modelo típico do gosto da classe social dominante no século XIX. Tem grande importância como área natural, pois constitui um conjunto que ainda contribui para o equilíbrio do meio ambiente da cidade. Oferece um museu vivo de plantas nativas exóticas agenciadas conforme o projeto de Glaziou, ao lado de uma floresta natural. Hoje a área do parque é composta de florestas preservadas, jardins, áreas edificadas e áreas degradadas. A propriedade passou por inúmeras administrações e sofreu significativas mudanças e intervenções estilísticas e funcionais - o que demonstra a importância do trabalho de pesquisa para que se resgatem as originalidades e que se promova amplo debate sobre a necessidade de permanente conservação, como nos recomenda a ‘Carta de Florença’.
O paisagista Glaziou
4. Auguste François Marie Glaziou nasceu em Lannion, Bretanha, no início do século XIX.[5] Estudou Engenharia Civil na École Polytechinique D’Angers e botânica no Museu de História Natural de Paris. Teve inspiração nas reformas parisienses de Haussmann, coordenadas por Jean Charles-Adolphe Alphand, que à época de Napoleão III, acabaram por influenciar também todo o pensamento mundial sobre a vida urbana moderna. E se especializou em paisagismo urbano, introduzindo esta reflexão no Brasil Império desde sua chegada, em 1858 - quando se percebe o início das reformas urbanísticas e sanitaristas[6] através da construção de praças e jardins públicos.
5. Ainda na França, fez uma reforma radical do Jardim Público de Bourdeaux, a pedido de Duriem de Maisonneuve. A convite de D. Pedro II, veio para o Brasil para ocupar o cargo de Diretor Geral de Matas e Jardins na Cidade do Rio de Janeiro. Porém, apenas em 1869, pelo decreto de 26 de janeiro, a nomeação é oficializada. Por suas contribuições como Diretor de Parques e Jardins da Casa Imperial foi condecorado com a Ordem da Rosa e de Cristo do Brasil.[7] O francês obteve muitas outras condecorações como a da ordem de São Estanislau e de Santa Ana da Rússia, ordem da Bandeira da Dinamarca e legião de honra da França.
6. Sua chegada ao Brasil coincide com um período de inclinação ao neoclássico e de rompimento com o barroco - que teve início com a chegada da Missão Artística Francesa no Brasil elevado a Reino Unido, por volta de 1816. E sua atuação entra na mesma lógica modernizante rompendo os traços retilíneos do jardim barroco e aplicando em seu lugar as famosas alamedas recurvadas e sinuosas em torno de jardins ovalados, com concavidades e elevações que se permeavam aos lagos, fontes e cascatas e às ilhas também ovaladas, além da aplicação dos quiosques e mirantes para admiração do cenário produzido. A distribuição das múltiplas espécies cria um universo belo e selvagem. Desta forma, surgiu um novo estilo de jardim - o tropical brasileiro - que passa a cativar o gosto da população, com assimilação do mais refinado ao mais simples.
7. O paisagista aplicou este modelo mais popular e espontâneo aos jardins das chácaras. Mas projetou também muitos jardins mais eruditos. Em documento assinado por Cláudio Augusto Piragibe Magalhães, pesquisador, topógrafo e arquiteto que foi Diretor de Parques e Jardins da cidade do Rio de Janeiro em meados do século XX - o mesmo cargo que foi ocupado por Glaziou - e vice diretor de Parques e Jardins e de Patrimônio em diversas gestões do Nova Friburgo Country Clube, o qual administra, desde 1957, a porção tombada como patrimônio histórico da Chácara do Challet, obtivemos a seguinte opinião:
8. Seus jardins [de Glaziou] eram de um romantismo procurado, disciplinado, resultado de um profundo conhecimento de causa. [...] Ele abandonou os traçados retilíneos e a valorização dos pontos de vista, à moda francesa, para adotar os traços sinuosos ingleses. Glaziou compreendeu que os cânones retilíneos da escola francesa estavam em desacordo com a sinuosidade da natureza brasileira. O fato é que ele criou uma escola paisagística que se difundiu nos jardins públicos e particulares cariocas.
9. Glaziou iniciou uma incessante busca por novas espécies para aplicá-las em seus jardins. Viajou pelo Rio de Janeiro nas restingas que acompanham o mar, desde Cabo Frio até Parati. Explorou a Serra do Mar, a Serra dos Órgãos na altura do alto Macaé e de Nova Friburgo e o Pico do Itatiaia, em 1871.[8] Foi membro de uma expedição pelo interior brasileiro - a Comissão Exploratória do Planalto Central do Brasil, final do século XIX, conhecida como Missão Cruls - tendo se especializado na pesquisa por novas espécies nativas: algumas destas chegaram a receber nomenclaturas em homenagem ao paisagista, como a maniçoba (Manihot Glaziovi) e as do gênero de bignoniáceas, Glaziovia, epíteto Glaziovii, que superam 230 espécies classificadas.[9]
10. Chegou a recolher e listar entre o Rio, São Paulo e Minas Gerais cerca de doze mil espécies. A partir desta busca publicou trabalhos importantes como “Algas Brasileiras dos arredores do Rio de Janeiro” (1871), “Criptógamas Vasculares do Brasil” (1869 - 1873) e “Liquens Brasileiros” (1876, publicado com A. de Kumpeller). A extensa correspondência com outros botânicos, como Von Martius, demonstra a atenção de Glaziou à pesquisa e ao aprimoramento: até mesmo os aspectos morfológicos das plantas foram estudados. Estes conhecimentos deram mais riqueza a seus projetos, tendo aplicado as novas descobertas aos jardins executados. A partir da disponibilização das espécies nos jardins públicos - como com a introdução dos ‘oitiseiros’ na arborização de ruas -, os brasileiros passam a conhecer, apreciar e até mesmo a poder desfrutar destas plantas nativas em seus jardins privados. O paisagista gostava de reproduzir mudas diversas em seus projetos, não se restringindo às nativas brasileiras. Há uma mistura perceptível entre plantas nativas, exóticas e ‘clássicas’ trazidas da Europa.
11. Em 1888, entre o abolicionismo e a campanha republicana, o paisagista retornou à França, seu país de origem, como delegado da Comissão Central à Exposição Universal de Paris, onde representou o Pavilhão Brasileiro com a projeção de um jardim provisório de plantas nativas brasileiras que encantaram não apenas os franceses, mas muitos outros expositores internacionais.
12. Glaziou é aposentado no Brasil em 1897,[10] quando volta a viver em Bordeaux - onde conseguiu organizar um herbário com mais de 22 mil plantas que foram legadas ao Museu de História Natural da França, ao Jardim Botânico de Bordeaux e ao Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em 1906 Glaziou faleceu, e foi sepultado com um travesseiro cheio das plantas brasileiras que tanto gostava.
13. Seus conhecimentos em engenharia e botânica, aliados à perspicácia na utilização de recursos e à atração pela exuberância de nossas paisagens, levaram-no a criar sua obra prima no Brasil, tendo imensa repercussão do seu trabalho.[11] Seus projetos podem ser analisados em 3 grupos distintos: o primeiro consiste em espaços e planos que apresentam características comuns ao paisagista, mas que não foram documentados nem assinados; o segundo, em projetos assinados ou documentos que mencionam sua autoria (neste se enquadram alguns projetos realizados em Nova Friburgo, como a Chácara do Challet e a Praça Princesa Izabel); e o terceiro e mais significativo, reúne as obras comprovadamente de sua autoria, com ampla documentação.
Histórico da família Clemente Pinto
14. Antônio Clemente Pinto (1795 - 1869), o futuro Barão de Nova Friburgo [Figura 3], português de origem simples, natural da freguesia de Nossa Senhora de Abobadela, do vilarejo de Ovelha do Marão[12] e filho de Manoel José Clemente Pinto e de Luiza de Miranda, chegou ao Brasil com doze anos de idade. O contexto do final do século XVIII e início do século XIX na Europa e no Brasil nos fornece subsídios para compreender situação da família Clemente Pinto em Portugal, a iniciativa migratória e as condições de estabelecimento no Brasil. Porém os motivos reais são desconhecidos.
15. Viveu na cidade do Rio de Janeiro com parentes que já residiam no Brasil, trabalhou inicialmente no comércio do centro da cidade e do cais e depois se envolveu com a compra e venda de escravos. O seu rápido enriquecimento desperta curiosidade até hoje: Antônio Clemente Pinto chegou a acumular mais riquezas do que o próprio imperador. Carlos Rodolpho Fischer faz a seguinte afirmação em sua obra “Uma história em quatro tempos”: “Houve quem afirmasse e considerasse o Barão de Nova Friburgo, dado o seu dinamismo e suas riquezas, o verdadeiro imperador do Brasil.”
16. Muitas histórias infundadas são feitas acerca do rápido enriquecimento. Uma delas fala da relação do português com o Barão de Ubá - este teria doado terras na região de Cantagalo para Antônio. Outra mais curiosa ainda, fala sobre Antônio Clemente Pinto ter encontrado um tesouro de um lendário contrabandista de ouro das Minas Gerais, que utilizava uma estrada alternativa que passava por Cantagalo e Friburgo para escoar os montantes para além-mar - sempre que se sentia ameaçado pelas tropas reais, o contrabandista enterrava os carregamentos e voltava depois para buscar.[13] Fato é que Antônio Clemente Pinto se tornou muito poderoso: mais de vinte fazendas no interior do estado do Rio foram construídas e administradas por ele e por seus herdeiros. Assim o comércio de escravos e a plantação de café com mão-de-obra também escrava contribuíram muito para a manutenção do poder da família durante muito tempo.
17. É importante compreender que a documentação relativa ao Barão, seus herdeiros, suas propriedades, etc. foram se dispersando com o tempo. Não existe nenhuma produção acadêmica ou pesquisa especializada na biografia desta personalidade, apenas obras que interpretam de maneira superficial e generalizada a atuação dos nobres. Unindo o fato ao poder conquistado pela família, ressalta-se assim, a importância da realização de pesquisas sobre o tema.
18. Antônio Clemente Pinto se casou com sua prima Laura Clementina da Silva. Tiveram dois filhos: o primogênito Antônio Clemente Pinto Filho (1830 - 1898) [Figura 4] que se tornou o 1° Barão, Visconde e Conde de São Clemente, e Bernardo Clemente Pinto Sobrinho (1835 - 1914) [Figura 5], que recebeu o título de 2° Barão de Nova Friburgo, em 1873, em razão da conclusão do projeto de construção da Estrada de Ferro Cantagalo iniciada por seu pai e os títulos de 1° Visconde e Conde de Nova Friburgo em 1883 e 1888, respectivamente.
19. Antônio Clemente Pinto Filho casou-se com Maria Francisca Fernandes Chaves (1828 - 1876), neta do Barão com honras de grandeza de Quaraim e tiveram três filhos: Alice Clemente Pinto (1864 - 1896), casada com o Conselheiro Rodolpho Epiphanio de Souza Dantas; Maria José Clemente Pinto e Antônio de São Clemente (1860 - 1912) que se tornou em 1885 o 2° Barão de São Clemente, casado com Georgina Daguirre de Faro, filha do Barão do Rio Bonito.[14]
20. Uma característica peculiar unicamente aos Clemente Pinto é a grande quantidade de títulos de nobreza distribuídos a membros de uma mesma família e na seqüência linear genealógica. Além das alianças formadas através do casamento com outros nobres imperiais. No período republicano alguns remanescentes da família ainda se tornam grandes coronéis nas cercanias das Fazendas de Areias e Boa Sorte.
21. Essa formação de poder regionalizado é relacionada como uma espécie de poder ‘feudal’ pelo arquiteto e pesquisador Luiz Fernando Dutra Folly da seguinte forma:
22. Se voltarmos o nosso olhar para a época do Brasil Império e se tentarmos procurar nas famílias nobres brasileiras, um nobre que tenha um título de nobreza e que incorpore não a posição militar ou executiva que seus títulos desempenhavam, mas sim a grandiosidade de bens, de uma vida de um verdadeiro senhor feudal, dificilmente encontraremos uma família como a dos Clemente Pinto. Os quatro nobres da família Clemente Pinto já citados anteriormente, tiveram uma vida de verdadeiros senhores feudais, pois tinham na cidade de Nova Friburgo e redondezas, seu feudo, seu quintal, o seu jardim.
23. O Barão de Nova Friburgo deu início a um processo de desenvolvimento e urbanização não somente do município, como de toda a região em que passava a linha da Estrada de Ferro Cantagalo. Tal feito impulsionou até mesmo o início da industrialização.
24. A atuação do Barão e de seus herdeiros repercute homenagens até hoje. Em 1961 o prefeito Amâncio Mário de Azevedo aprovou a Resolução n° 563 que instituiu o Brasão de Armas do Município de Nova Friburgo[15]. No brasão as armas do Barão e da família Pinto são bem representadas. A resolução traz uma interpretação direcionada a demonstrar que o Barão foi uma das figuras mais notáveis do passado da cidade, um grande proprietário, animador e civilizador e que o poder municipal usufruía, já na década de 1960, de muitos dos prédios construídos pelo nobre português.
25. Não cabe aqui estender maior discussão sobre o tema, apenas dissertar sobre quem foram os Clemente Pinto que construíram a Chácara do Challet e que impulsionaram tantas outras atividades artísticas no interior do Rio, além dos estímulos econômicos que deram vida ao ciclo cafeeiro do Brasil.
Histórico da Chácara do Chalet
26. O termo chalet é remetido a moldes de construção de origem turca que foram introduzidos nos Alpes do norte da Europa, no século XVII, como residências camponesas simples ou temporárias. No século XIX o chalé tornou-se uma opção residencial permanente para as classes média e alta, fomentada pelo desejo de vida simples, afastada do meio urbano e em maior harmonia com a natureza.[16]
27. A Chácara do Challet - projetada e executada em torno de 1860 - foi o primeiro projeto com características arquitetônicas românticas realizado em Nova Friburgo. A edificação que forma uma planta em ‘A’ apresenta um único pavimento - além do porão por onde circulava o ar que refrescava o Challet e onde há indícios de ter funcionado a senzala da casa -; temos um pátio central, varandas justapostas à construção e jardins em todo o entorno[17]. Podemos identificar a coexistência de estilos arquitetônicos como o neoclássico, o mourisco e o pompeano. Além de indícios da aproximação do Barão aos ideais maçônicos que são encontrados em símbolos nos ornamentos e estuques das principais partes do Challet[18]. Possui piso em tábua corrida no interior e ladrilho hidráulico decorado com motivos geométricos que combinam com o estilo mourisco do pátio central.
28. Hoje podemos atribuir a autoria do projeto ao arquiteto alemão Karl Frederich Gustave Waehneldt[19] (1830, Fürstenvald, Brandenburg - 1873, Charlotemburg, Berlim). Waehneldt veio para o Brasil em 1852, residiu na cidade do Rio de Janeiro, foi autor de projetos importantes - como o do Teatro Lírico do Rio de Janeiro, vencedor de concurso específico; o do risco do zimbório da Igreja da Candelária; e o do Palácio Nova Friburgo apresentado na Exposição Geral da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1862, onde recebeu medalha de prata. O arquiteto teve alguns destes projetos executados e se destacou na aplicação de um neoclassicismo[20] com utilização de muitas cores que se diferenciava do modelo neoclássico tradicional e de ótica monocrômica estabelecido no Brasil com a vinda da Missão Artística Francesa.[21]No Challet podemos identificar muitas destas características inerentes ao trabalho do arquiteto alemão, como a abundância de cores fortes e a mistura de estilos.
29. Quanto ao histórico da Chácara do Challet podemos identificar quatro momentos importantes: o curto período sob posse do patriarca Antônio Clemente Pinto quando da execução das obras; o período em que o futuro Conde de São Clemente herda a propriedade, como muitos outros bens, após o falecimento de seu pai, em 1869; o período em que os herdeiros[22] do Conde de São Clemente vendem toda a propriedade para a família Guinle em 1913 - quando ocorreram grandes mudanças até mesmo na extensão territorial; e o quarto e último período, quando César Guinle, o herdeiro da família - já com a propriedade dividida em alguns lotes através da criação do conjunto “Cidade Jardim Parque São Clemente”[23] - consegue o tombamento da área do entorno do Challet e de partes dos jardins de Glaziou pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional[24] e faz um acordo de venda desta porção tombada com alguns empresários das famílias Almeida e Roussoulières que pretendiam transformar o espaço num clube. O projeto se concretiza e este último período de posse da propriedade também merece profunda análise em relação às modificações e intervenções efetuadas para abrigar a sede administrativa e social do Nova Friburgo Country Clube.
30. Houve uma ampla e interessante discussão sobre o direito de uso ou de propriedade da terra em relação à Chácara do Challet que cabe ser relatado aqui. A fundação, por D. João VI, da Colônia Suíça do Morro Queimado, através do decreto de 16 de maio de 1818, que a denominou como Nova Fribourg em homenagem à região suíça de onde proviria a maioria dos colonos, apenas dá início à discussão do uso da terra.
31. A compra da Fazenda do Morro Queimado,[25] com seus respectivos auto de posse e escritura, do proprietário Monsenhor Almeida, pela Coroa, torna a fazenda incorporada ao patrimônio da própria Coroa. Pelo alvará de 3 de janeiro de 1820 - ano da efetiva vinda dos colonos suíços - D. João VI erigiu a região do Morro Queimado em Vila, com a denominação de Vila de Nova Friburgo e com o esclarecimento de que a Vila estaria a partir de então desmembrada da de Cantagalo. No mesmo dia a sanção de outro decreto real criava a Freguesia de São João Batista da Vila de Nova Friburgo, delimitando territorialmente todos os seus distritos. Mesmo após a Independência em 1822, a outorga da Constituição Imperial de 1824 - considerando as posteriores leis que vieram a reformá-la, como a Lei de Terras de 1850 -, e a Constituição Republicana de 1891, a antiga Fazenda do Morro Queimado continuaria sendo bem governamental, ou bem público - exceto as áreas alienadas aos colonos no processo de distribuição de lotes coloniais.
32. Portanto, uma porção destas terras foreiras ao município de Nova Friburgo foi cedida a Antônio Clemente Pinto através de um regime de domínio útil[26]. Assim, em 1873, a Chácara do Challet passou para Antônio Clemente Pinto Filho. Falecido o Conde de São Clemente, as terras da Chácara passaram para sua filha, Alice de Clemente Pinto e seu esposo, Rodolpho de Souza D’Antas. Os herdeiros do casal recebem o domínio útil da Chácara e repassam-no através de venda para Eduardo Guinle.
33. César Guinle, filho herdeiro de Eduardo, quando prefeito de Nova Friburgo, consegue modificar a divisão territorial da Chácara e o direito de uso e direito de propriedade através da criação do conjunto “Cidade Jardim Parque São Clemente”. Tal projeto ofereceu dois aspectos distintos: o primeiro relativo à conservação da parte de interesse artístico e histórico e a harmonia desta com as demais partes loteadas - como exigido pelo decreto-lei-municipal n° 70, de 16 de fevereiro de 1944 -; e o segundo, concernente à área loteada, aos moldes de loteamento e à venda dos terrenos para pagamento em prestações - subordinados aos preceitos do decreto-lei-federal n° 58, de 10 de dezembro de 1937 e do decreto-lei-federal n° 3079, de 15 de setembro de 1938.
34. Hoje a parte tombada e preservada da Chácara do Challet ou Parque São Clemente pertence à instituição privada Nova Friburgo Country Clube - que foi considerada como utilidade pública pela resolução n° 446, de 16 de dezembro de 1958. Mas devido ao interesse público no patrimônio histórico e às confusões geradas em consequência às modificações dos direito de uso e direito de propriedade, a Prefeitura municipal mantém um acordo para visitação pública - a resolução n° 790, de 10 de junho de 1966, concede isenção de impostos para o clube mediante a permissão das visitas. O clube não cobra nenhuma taxa, mas mantém um controle cadastral dos visitantes. A manutenção é dever do proprietário, o clube, e ao poder municipal cabe a segurança - porém, hoje o clube arca com todas as despesas.
35. A análise destas modificações torna-se interessante ao passo que as áreas projetadas e executadas por Glaziou não foram delimitadas em documentos quando da conclusão das obras no final do século XIX. Assim, o que entendemos hoje como ‘jardim de Glaziou’ pode ser apenas uma parte do original. A grande porção loteada pelo conjunto “Cidade Jardim Parque São Clemente”, que pertence hoje à família Guinle, e que é fechada à visitação apresenta características comuns ao trabalho do paisagista francês. Alguns documentos do início do século XX demonstram que numa parte da propriedade adquirida pela família Guinle foi construída uma ampliação do jardim, mas não esclarece muito a respeito de qual parte. Relatos de membros da família negam que a parte fechada a visitação seja de interesse histórico.
36. Retomemos o tema de interesse histórico da Chácara do Challet a partir da transcrição a seguir de um trecho de uma reportagem do repórter Rolando da “Revista Ilustrada” de Angelo Agostini, de 30 de junho de 1883, quando o imperador D. Pedro II estava de passagem por Nova Friburgo indo para Campos dos Goitacazes inaugurar a iluminação elétrica. A citação ressalta a grandiosidade e beleza da Chácara, com a arquitetura de Waehneldt e os jardins de Glaziou.
37. Vai comigo D. Pedro II. [...] Na estação de Friburgo se preme toda a população curiosa e alegre; ...Arrebatados pelos quatro lindíssimos pôneis da Escócia, da Exma. Sra. D. Alice Clemente, S.S.M.M. já voam longe; e agora, outra circunstância para andar lesto, se viaja decididamente para o almoço; quero dizer para o Chalet do Snr. Visconde de São Clemente. É realmente uma principesca morada a vivenda de campo do Snr. Visconde; elegante, artisticamente distribuído e ricamente mobiliado, o chalet é todo circundado dum luxuriante jardim, alegrado de cascatas, lagos e ilhas, cortado de canais, que se prolonga em parque até as montanhas próximas. Como deve ser doce viver aqui!
38. Na volta da viagem à Campos, o Visconde de São Clemente, Antônio Clemente Pinto Filho, realizou uma festa para o imperador, vejamos o relato do repórter Rolando:
39. A área central do chalet, do mais elegante estilo mourisco, com o seu repuxo, está brilhantemente iluminada com copinhos de cor. [...] O jardim, que se estende magnífico, com a sua graciosa ilha, os seus canais, as suas pontes elegantes, está brilhantemente iluminado a giorno. Na ilha que fica defronte, toda bordada por uma barra de copinhos de cor e festões pesados de lanternas venezianas, estão erguidos três arcos de luz refletindo os mais variados tons. Fogos de Bengala, resplandecente ramalhete de fogo de artifício, iluminam toda a atmosfera. Uma gôndola veneziana passa e repassa, vagando no canal, com os seus globos de luz multicolores [...] S.M. O Imperador, elevado pelos sons de uma habanera, arrisca dar pequenos passos da dança americana [...] É completo o encanto, não é sem grande e profundo pesar que eu acordo deste sonho.
40. Outra visita ilustre nos chama atenção para a Chácara do Challet e para outras propriedades dos Clemente Pinto. O diálogo de cartas entre a Condessa de Barral e D. Pedro II, apresentado no livro “Abrindo um Cofre” de Alcindo Sodré, faz algumas referências a estadia da princesa Izabel e do próprio D. Pedro II na Chácara do Challet em Nova Friburgo e no Solar do Gavião em Cantagalo para buscarem ar puro e fresco e fugirem das epidemias como a febre amarela. Além da estadia nas residências do Barão, o diálogo nos revela o interesse pelo Instituto Hidroterápico e pelos hotéis da cidade.
41. Um fator que facilitou o acesso à Nova Friburgo[27] foi a construção da Estrada de Ferro Cantagalo pelos Clemente Pinto para escoar o café mais facilmente para os portos do Rio de Janeiro e para remanejar a mão-de-obra de acordo com as novas necessidades produtivas após as primeiras leis abolicionistas.[28] A Ferrovia foi construída em etapas, as obras foram concluídas em 1873 - alguns anos depois da morte do patriarca Antônio Clemente Pinto. Mas antes mesmo do início da execução do projeto da ferrovia, trilhos de bondes decauville [Figura 6] já interligavam as residências mais importantes do Barão, corroborando com a idéia de poder ‘feudal’.
42. Desta forma podemos perceber de forma clara a ostentação criada na Chácara do Challet e o atrativo que a propriedade se tornara para a própria cidade numa época em o turismo começava a receber incentivos. Ressaltando a influência do baronato para o desenvolvimento e urbanização do município, principalmente no que diz respeito à cultura e à mentalidade.
O projeto paisagístico da Chácara do Barão de Nova Friburgo e outras atuações de Glaziou no município
43. Os jardins projetados por Glaziou para a Chácara do Challet reúnem muitas características peculiares ao paisagista e se enquadram no segundo grupo[29] de suas obras, tendo pouca, mas relevante, documentação que comprovem a autoria.
44. A coerência entre “criador e criatura” não se restringe à aplicação estilística do paisagista, apresentando também a inserção das plantas nativas misturadas às exóticas e às européias. O projeto original em aquarela assinada por Glaziou e com o título de “Chácara do Barão de Nova Friburgo” [Figura 7] demonstra uma planta baixa perspectivada. Todas as construções do terreno, incluindo a do chalé e dos banheiros, foram consideradas para a projeção dos lagos e jardins. Há uma perfeita continuação entre o jardim de Glaziou e o espaço interior do chalé criado por Waenheldt, com seu pátio interno e seu jardim na parte posterior.
45. Na Chácara do Challet temos uma perspectiva única do trabalho de Glaziou: a mistura estilística do paisagismo francês com o inglês. Os outros projetos de sua autoria apresentam os traços tipicamente ingleses. Luiz Fernando Dutra Folly faz uma bela apreciação sobre tal característica em seu artigo “Uma herança ameaçada - a Chácara do Challet” publicado no Boletim interno do Nova Friburgo Country Clube em 2009: “A linha longitudinal que corta o pátio interno do chalé e une os três repuxos - do jardim posterior, do centro do pátio e o da ilha - cria dentro do jardim romântico algumas características dos antigos jardins clássicos franceses, onde Glaziou faz um retorno e cria uma nova leitura, não vista em nenhum outro projeto de sua autoria.”
46. A criação de um eixo simétrico a partir do pátio central do Challet em direção aos jardins da frente e dos fundos não entra em conflito com a composição romântica, mas cria um equilíbrio, uma complementação.
47. A visão de dentro do Challet - a própria arquitetura da construção promove a integração com o meio - é concentrada em pontos únicos no simétrico eixo criado: o Jardim dos Perfumes[30] na parte posterior e os jardins da ilha principal são destaques passando pelo chafariz e jardins internos do pátio central. Fora do eixo, pelas laterais do Challet, podem ser visualizados os demais lagos. Assim a visualização gradual dos jardins substitui a visualização total. Num único ponto central no Challet pode-se apreciar o jardim em sua plenitude. A utilização da característica do ponto de vista mais alto da construção e da perspectiva concentrada em um único ponto são tipicamente franceses.
48. Outra característica do projeto peculiar da Chácara do Challet seria a divisão simétrica dos canteiros das ilhas e das hortas e hortos - demonstrando mais uma vez a mistura entre as tendências francesas e inglesas.
49. Algumas aplicações clássicas do paisagista, além dos caminhos sinuosos, da concavidade dos jardins integrada aos lagos em profundidade no cenário e com repuxo, das pontes e dos gazebos ou quiosques, podem ser percebidas na Chácara do Challet como a utilização de saibro na cobertura de pontes e caminhos que ligavam às ilhas e os corrimões de cimento imitando troncos. Em relação aos chafarizes é importante dizer que Glaziou construiu um sistema de represamento para dar pressão à água - neste período não existia ainda nenhum tipo de mecanismo avançado, motor ou energia. Os três principais chafarizes atingiam tanta força que superavam a altura do Challet como comprovam fotografias da época (daguerreótipos de Henschel & Benque) [Figura 8] e [Figura 9].
50. É importante compreender que o projeto de Glaziou não foi executado na íntegra, podendo, portanto, as características estudadas aqui não terem sido realmente efetuadas, ou terem sido executadas de forma muito diferente da projetada. Não há como descobrir fatos relativos à constituição original por se tratar de um monumento vivo e, como tal, perecível e renovável.[31] Da mesma forma como os documentos existentes não nos revelam muito acerca do assunto. As fontes da época dos Clemente Pinto são escassas e os relatos da família Guinle nos revelam que o declínio na produção e venda cafeeira levaram ao descaso e abandono das propriedades[32] - o que dificulta ainda mais a pesquisa. Apenas as características observáveis a partir do Challet em direção aos jardins, os traços típicos de Glaziou e o estudo de algumas plantas podem ser considerados como originais, ou seja, projetados, executados e mantidos.
51. Uma pesquisa recente encomendada pelo clube à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenada pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (Jardim Botânico do Rio de Janeiro) conseguiu identificar e listar mais de setenta espécies no acervo botânico do jardim - dentre elas um exemplar de riquíssimo valor histórico, a Ateleia glaziouveana Bail e um outro exemplar considerado um fóssil vivo, a Ginko Biloba. Gustavo Martinelli, o biólogo responsável pelo trabalho, esclareceu algumas dificuldades em documento enviado ao Nova Friburgo Country Clube[33]:
52. Ao completar ao máximo a identificação do material coletado, esclareço que algumas amostras deixaram de ser identificadas a nível de espécie, em virtude do material encontrar-se estéril e portanto impossível de ser identificado precisamente. Compreendo que para uma primeira etapa de um trabalho de valorização e recuperação florística do projeto paisagístico de Glaziou, deve-se levar em conta apenas as espécies arbóreas e algumas arbustivas, uma vez que estas são as que realmente representam o projeto original daquele botânico, sendo as demais passíveis de terem sido introduzidas ‘a posteriori’ e portanto não reproduzindo o projeto original.
53. Gustavo atenta ainda para a necessidade de se avaliar até que ponto houve interferências no projeto original e quais as medidas concretas mais adequadas para a recuperação da autenticidade e beleza do projeto de Glaziou.
54. Este levantamento das espécies nos revelou mais uma característica tradicional do paisagista francês: a aplicação de coníferas e salgueiros. Outras espécies relevantes foram identificadas como originais: a australiana Melaleuca leucadendra (Árvore do papel ou Árvore do Óleo de Cajeput), a Magnolia grandiflora da América Boreal, a Ravenala madagascariensis (Árvore do viajante) natural da ilha de Madagascar, a africana/asiática Nerium oleander (Espirradeira), a Michelia champaca da Malásia, a asiática Platanus acerifolia (Plátano), a indiana Dillenia indica (Flor de abril), a também asiática Osmanthus fragrans (Jasmin do Imperador), a Quercus robur (Carvalho), a Syzygium cumini (Jamelão), a Lecythis pisonis (Sapucaia), e a brasileiríssima Tibouchina granulosa (Quaresmeira).
55. À mesma época da realização da pesquisa e da listagem do acervo botânico do clube, um mapa com indicação do posicionamento das plantas exóticas foi confeccionado e encontra-se anexado à lista. Entretanto, o próprio acervo do Nova Friburgo Country Clube nos fornece um outro documento não datado que evidencia a introdução de novas espécies para a alimentação de aves que equilibram a cadeia do jardim. Há uma imensa lista das espécies testadas, mas não foram documentadas as escolhidas - o que torna o trabalho de recuperação ainda mais complicado.
56. Outros projetos na cidade de Nova Friburgo são atribuídos a Glaziou. A Praça Princesa Izabel [Figura 10] foi comprovadamente projetada por ele. Os projetos originais foram encontrados recentemente, concretizaram uma importante tese de mestrado[34] e estão influenciando um projeto de restauração. Há indícios não comprovados de que a atual Praça do Suspiro [Figura 11] também tenha sido um projeto de Glaziou: a presença de lagos, caminhos sinuosos e de corrimões em formato de troncos. Outra associação ao trabalho do paisagista é feita em relação aos jardins da residência do Barão de Duas Barras.
57. Com exceção da Praça Princesa Izabel - atual Praça Getúlio Vargas no centro de Nova Friburgo -, que também foi tombada como patrimônio histórico, as outras obras relacionadas a Glaziou não tiveram nenhum impedimento maior quanto às intervenções e sofreram mudanças significativas perdendo quase completamente as características que pudessem evidenciar de forma mais concreta tal relação. Até mesmo a Praça Princesa Izabel sofreu mudanças importantes. Hoje as únicas características originais restantes são as alamedas de eucaliptos criadas para drenar o terreno.[35] Além do projeto original encontrado que revela apenas as perspectivas planas, algumas poucas fotografias antigas auxiliam o trabalho de recomposição da Praça, com seus chafarizes e com a concavidade perceptível nos outros projetos de Glaziou.
Intervenções realizadas na Chácara do Chalet
58. De acordo com o histórico da propriedade Chácara do Challet do Barão de Nova Friburgo já trabalhado no presente artigo, podemos identificar quatro momentos diferentes, facilmente relacionados aos proprietários ou administradores concessionários.
59. No primeiro momento - posse de Antônio Clemente Pinto - há o início da construção do Challet e a execução dos jardins, constituindo as características originais. Já a partir do segundo período - mesmo sendo herdada a Chácara pelo filho do Barão - podemos perceber algumas mudanças e intervenções nos projetos originais de Waehneldt e de Glaziou. Como as obras ainda não haviam sido concluídas, o então Barão de São Clemente, ordena algumas modificações a seu gosto, como a instalação das pontes de ferro - adquiridas em negociações de café brasileiro com credores estrangeiros - no lugar de algumas de madeira ou de caminhos de saibro originais [Figura 12].
60. A partir do final do século XIX, entre a posse de Alice Clemente Pinto - neta do 1° Barão de Nova Friburgo - e de seus quatro filhos, a produção cafeeira escravista na parte fluminense do Vale do Paraíba começa a entrar em crise dando lugar ao trabalho do imigrante livre em São Paulo. O poder e a riqueza da família Clemente Pinto foram se tornando cada vez mais escassos. Como a manutenção das luxuosas propriedades era onerosa demais, o abandono tornou-se comum. Na Chácara do Challet não foi diferente.
61. No terceiro período a família Guinle promove as mudanças mais significativas. O destaque é o projeto do conjunto “Cidade Jardim Parque São Clemente” já esclarecido e discutido anteriormente. Para ter uma idéia mais clara da amplitude do loteamento devemos imaginar que as terras que a família do Barão vende para Eduardo Guinle correspondiam à atual área pertencente ao clube, somada à área da residência dos Guinle e da fábrica Arp, aos atuais bairros Parque São Clemente, partes do Vale dos Pinheiros e inícios de Olaria, tendo sempre como referência longitudinal as margens do rio Cônego.
62. Outras medidas adotadas no terceiro período também são relevantes como a instalação de energia elétrica, a aplicação de novos pisos de cerâmica[36] ao interior do Challet, o revestimento em cerâmica em estilo greco-romano das colunas de madeira do pátio interno, e a construção de banheiros no interior da casa em lugar de dois quartos de hóspedes são destaques iniciais. Uma curiosidade é que os banheiros originais projetados pelo arquiteto alemão Gustav Waehneldt eram localizados em casas separadas do edifício principal, nas laterais dos fundos da casa, como pode ser observado no projeto original de Glaziou e como era de costume no período.
63. Alguns relatos da família[37] demonstram que a propriedade adquirida em 1913 encontrava-se em completo abandono. Nesta época Eduardo Guinle decidiu reformar a propriedade e para isso trouxe da cidade do Rio de Janeiro vários artesãos e artistas, entre eles o italiano Paulete, que fez sarjetas para as alamedas, agora cobertas por macadame,[38] em lugar do piso de saibro original do parque. Acredita-se que Paulete fez um novo projeto[39] para os jardins, indo muito além de meras modificações.
64. O italiano passou a residir nas proximidades do parque e transformou a parte de trás do chalé (que é a parte mais isolada do parque, por causa do canal que os separa), em um imenso jardim zoológico com aves e animais raros. Havia um imenso cercado para alguns animais que situava-se onde hoje se encontra a nova residência da família Guinle no lote privado.
65. Um trecho do depoimento de César Guinle ao Pró-Memória de Nova Friburgo descreve de forma eficiente o espaço criado:
66. [...] Lembro-me de emas e antílopes da África, que davam saltos imensos o que nos extasiava. Para nós, tudo aquilo era um paraíso, com os lagos cheios de peixes, e cisnes brancos e negros, carpas importadas da Europa, que se aclimataram muito bem, o mesmo não se dando com a espécie chamada “tenka”, que desapareceu. As crianças, inclusive eu, pescavam e minha mãe nos acompanhava. Para nós era importante pescar pequenos lambaris que todos sabem, só proliferam em águas límpidas. Usávamos uma peneira e com farelo sobre a água, levantávamos a peneira e lá vinha uma grande quantidade de peixinhos. Fritos, bem tostadinhos eram uma delícia e para nós crianças, uma vitória. Quando chegava o momento de voltar ao Rio, era uma choradeira, saudades antecipadas das férias felizes [...]
67. Todas essas mudanças e a criação do projeto “Cidade Jardim Parque São Clemente” dão uma nova imagem à propriedade - tendo as obras sido de reforma ou restauro. O tombamento da porção de interesse histórico também foi um marco deste período. A venda em 1957, se concretiza nessas circunstâncias.
68. No quarto e último período as mudanças também são significativas e foram guiadas de acordo com o interesse e objetivos das diversas gestões dos Conselhos Diretor e Deliberativo do Nova Friburgo Country Clube.[40] Num primeiro momento foram feitas obras no interior do Challet para tornar as dependências do edifício adequadas a uma sede administrativa e social. Muitas pinturas foram feitas sobre os afrescos originais, muitos móveis foram descartados e nova decoração foi aplicada ao Challet - até as esquadrias das portas internas foram trocadas. O Jardim dos Perfumes localizado na parte posterior da casa foi ocultado sob um deque de madeira e cobertura em telhas leves e se transformou num grande salão de festas e eventos. A princípio nenhuma modificação foi efetuada aos demais jardins - houve até mesmo novo abandono, mais uma vez pelo motivo de alto custo de manutenção.
69. Em meados da década de 1980, após um longo período de pesquisa, o Nova Friburgo Country Clube dá início à restauração do Challet e dos jardins. As obras - que receberam aval do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - foram coordenadas pelo vice diretor de Patrimônio do clube, Cláudio Augusto Piragibe Magalhães.
70. Nos jardins podemos destacar a limpeza e reativação dos lagos - partes dos lagos chegaram a secar durante o período de abandono - e a reconstituição dos jardins em seus formatos mais próximos ao original. No Challet as obras foram mais extensas abrangendo desde restauração estrutural - paredes, telhado e pisos de madeira - a restauração decorativa e artística. Alguns afrescos e pinturas originais foram resgatados e alguns móveis foram recuperados. Ao mesmo tempo outras obras criam novos espaços para o clube. O ginásio e o Parque Aquático são construídos nesse período, também com autorização do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
71. A atenção se volta mais uma vez para a obra prima construída pelo Barão de Nova Friburgo. O Challet passa ser utilizado para eventos menores e se volta mais exclusivamente para arte e cultura. Muitas exposições de artistas famosos foram realizadas após esta obra. Hoje, quase três décadas depois, o Challet e os jardins demonstram a necessidade de nova restauração - o que abre a possibilidade de novos trabalhos de pesquisa.
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[1] Camila Dias
Amaduro é pesquisadora de História Regional e Institucional pelo
Nova Friburgo Country Clube, graduada em História pela
Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia de Nova Friburgo e Pós-graduanda
em Cultura(s) na América Latina pelo CEFET/RJ-UnED
Nova Friburgo.
[2] Este é o
título do projeto assinado por Glaziou que se encontra
sob posse de colecionador. Uma réplica fotográfica do original compõe o acervo do Nova Friburgo Country Clube
[3] Recentemente
foram encontrados os projetos originais da Praça assinados por Glaziou, os quais se encontram em acervo privado.
[4] Algumas
fontes do acervo privado do Nova Friburgo Country
Clube associam a atual Praça do Suspiro e os jardins da residência do Barão de
Duas Barras - prédio que abriga hoje o campus da Universidade Federal
Fluminense em Nova Friburgo - à atuação de Glaziou na
região. O Barão de Duas Barras admirava a Chácara do Challet
e encomendou um projeto para sua propriedade que reproduzisse as semelhanças
que o agradavam. Entretanto, não há conhecimento de nenhum projeto assinado
pelo paisagista francês que comprove tal informação.
[5] As fontes
conhecidas divergem quanto à data correta de seu nascimento. Há referências a
1828 e 1833.
[6] Glaziou se aproximou de Pereira Passos, dando início aos
projetos urbanísticos.
[7] TERRA, Carlos Gonçalves. Os Jardins no Brasil no
Século XIX: Glaziou Revisitado. 2ª ed. Rio de
Janeiro: EBA/UFRJ, 2000, págs. 56 à
66.
[8] Histórico de
GLAZIOU, Auguste Marie François. Documento sem autoria. Acervo do Nova Friburgo Country Clube.
[9] ABREU, Sérgio
Kempers de Moraes. Glaziou
e o Lago Paranoá. (artigo)
[10] Acervo da Fundação de Parques e Jardins da cidade do
Rio de Janeiro.
[11] CUNHA, Miguel Gastão da. Glaziou (1828 - 1906),
um mestre do paisagismo francês nos trópicos brasileiros do século XIX. (artigo)
[12] Abobadela é uma freguesia
portuguesa do Conselho de Amarante. Designou-se, até ao século XIX, Ovelha do Marão. Constituiu, juntamente com a freguesia de Canadelo, a honra de Ovelha do Marão.
Durante vários séculos, Abobadela, foi alvo de várias
alterações.
[13] JACCOUD, Rafael Luiz de Siqueira. Os Colonos. Nova
Friburgo, RJ: Múltipla Cultural, 2001.
[14] Bernardo Clemente Pinto coordenou as obras da Chácara
do Challet para o pai. Antônio Clemente Pinto Filho
herdou a propriedade após falecimento do pai e a deixou como herança para a
filha Alice Clemente Pinto. Os filhos de Alice herdaram juntos
a propriedade e venderam-na para os Guinle.
[15] FISCHER, Carlos Rodolpho. Uma
história em quatro tempos. Nova Friburgo, RJ: Tipografia da Fábrica de
Rendas Arp S.A., 1986. Anexos.
[16] FOLLY, Luiz Fernando Dutra. Uma herança ameaçada: a
Chácara do Challet. Artigo publicado no Boletim de
circulação interna do Nova Friburgo Country Clube em
abril de 2009.
[17] FOLLY, Luiz Fernando Dutra. Idem.
[18] Nos estuques do salão nobre temos a representação de
diversos instrumentos musicais e, entre eles, um compasso - símbolo
reconhecidamente maçom. Além de todas as portas externas do Challet
terem recebido trabalho em madeira no formato da Estrela de Davi.
[19] Nos registros da 15ª Exposição Geral de Belas Artes
de 1862 encontra-se um projeto exposto - o de número oito - com o título “Plano
de uma chácara em Nova Friburgo” do arquiteto Karl Frederich
Gustave Waehneldt. A
autoria do projeto do Challet chegou a ser atribuída
a Glaziou, sendo desmitificada com a descoberta deste
documento da exposição de 1862. Até mesmo no projeto paisagístico realizado por
Glaziou, já se vê as áreas de todas as construções do
terreno.
[20] Em ALMEIDA, Cícero Antônio F. Catete - Memórias de
um Palácio. RJ: Museu da República, 1994. A formação de Waehneldt
foi influenciada por descobertas arqueológicas nos monumentos clássicos -
principalmente os de Pompéia - que estabeleceram novos padrões para o neoclassicismo
europeu a partir de 1817 como a policromia. Segundo o professor Mário Torres, o
alemão também se destaca pelo ecletismo através da decoração interna em
diversos estilos (como veneziano, pompeano, mourisco,
etc.). Gustave tem influência ainda da arquitetura
italiana renascentista florentina do final do século XV.
[21] ALMEIDA, Cícero Antônio F. Obra cit. Página
21.
[22] Paulo, Maria José, Anna Amália, Octávio e Marcos Clemente
de Souza Dantas, os cinco netos do Conde de São Clemente por parte do casal
Alice Clemente Pinto e Rodolpho Ephiphanio
de Souza Dantas, venderam a propriedade para Eduardo Guinle.
[23] Mapas do acervo privado do Nova
Friburgo Country Clube apresentam a divisão da propriedade adquirida dos
Clemente Pinto pela família Guinle, entre 5 e 8 lotes iniciais. Alguns deles
foram divididos ainda em lotes menores e doados a prefeitura para se tornarem
áreas públicas ou bairros. Cabendo ao poder público a
pavimentação e saneamento básico, através do projeto “Cidade Jardim Parque São
Clemente” que estabeleceu por fim a divisão em 7 lotes.
[24] Notificações de n° 666/685 da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, de 23 de novembro de 1951 que estabelecem as
áreas V e VI do projeto “Cidade Jardim Parque São Clemente” como objeto do
processo de tombamento.
[25] Os atos referentes à compra podem ser revistos
através do Ofício n°24, de 26 de agosto de 1818 e do Decreto de 6 de maio de 1818, além de registros da Carta Régia.
[26] Esta foi a justificativa jurídica utilizada para
fundamentar a criação do conjunto “Cidade Jardim Parque São Clemente” segundo
constam documentos do acervo privado do Nova Friburgo
Country Clube.
[27] Alguns carros de trem eram destinados ao transporte
de pessoas.
[28] LOZADA, Gioconda. Presença negra: uma nova
abordagem da História de Nova Friburgo. Niterói, RJ: EDUFF, 1991.
[29] Divisão do trabalho de Glaziou
em 3 grupos distintos segundo pesquisa realizada pelo
professor Carlos Gonçalves Terra.
[30] O Jardim dos Perfumes localizado na parte de trás do Challet foi projetado para florescer durante todo o ano. Todas espécies plantadas dão flores perfumadas e cada uma
delas floresce numa determinada época do ano, deixando, assim, o jardim sempre
perfumado. Algumas espécies foram perdidas na época inicial do clube em que o
jardim foi coberto com um deque de madeira que serviu de salão de festas. Após
a retirada do deque num período de restauração da área, algumas plantas foram identificadas
e repostas. Outras se perderam, infelizmente.
[31] Carta de Florença ou Carta dos Jardins Históricos,
Artigo 2. - Comitê Internacional de Jardins e Sítios
Históricos.
[32] Depoimento de César Guinle (1985 - 1986) para o
Instituto Pró-Memória de Nova Friburgo.
[33] A documentação referente ao processo citado
encontra-se no acervo do clube.
[34] FOLLY, Luiz Fernando Dutra. A história da Praça
Princesa Izabel em Nova Friburgo: o projeto esquecido de Glaziou. Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ,
Brasil, 2007. Orientadora: Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira.
[35] Há indícios de que o jardim dava mais trabalho do que
prazer ao Conde de São Clemente e sua família, por causa do constante
alagamento, e que por isso foi doado para domínio público.
[36] O ladrilho hidráulico aplicado no pátio interno e
central do Challet é parte do material que sobrava
das obras do Palácio Laranjeiras - propriedade construída pelos Guinle na
cidade do Rio de Janeiro.
[37] Depoimento de César Guinle em 1986 ao Instituto
Pró-Memória de Nova Friburgo.
[38] Macadame é um tipo de pavimentação.
[39] Um projeto não assinado muito parecido com original
de Glaziou e com proporções mais adequadas ao atual
jardim vem sendo estudado.
[40] Os livros de Atas do clube nos fornecem informações
mais