Entre fontes, orquídeas e princesas: O restauro do jardim do
comendador Mariano Procópio
Cristiane
Souza Gonçalves
GONÇALVES, Cristiane
Souza. Entre fontes, orquídeas e princesas: O restauro do jardim do comendador
Mariano Procópio. 19&20,
Rio de Janeiro, v. XIII, n. 1, jan.-jun. 2018. https://doi.org/10.52913/19e20.xiii1.06
* * *
1. A
origem do jardim construído pelo comendador Mariano Procópio Ferreira Lage está
situada entre os anos de 1856 e 1861, período que se estende do início da
construção da estrada de rodagem União e Indústria até a inauguração do trecho
de 144 quilômetros ligando Petrópolis à Juiz de Fora. Na mesma época, foi
idealizada a edificação da quinta de veraneio da família, no topo de uma colina
cuidadosamente escolhida pelo patriarca, com o objetivo claro de imprimir sua
marca na paisagem. A construção do conjunto composto pela residência e seus
jardins, em um ambiente ao mesmo tempo acolhedor e imponente, não foi obra do
acaso. Ao contrário, havia a nítida intenção de desenhar uma paisagem exemplar,
desde a escolha do sítio de implantação até o traçado dos caminhos, ora
serpenteantes - convidando a um passeio lúdico, inspirado pelo aroma de árvores
frutíferas e pelo barulho das aves -, ora em rigorosa simetria a conduzir o
olhar ao longo de um eixo longitudinal, atravessando canteiros simétricos e um
lago retangular com uma ilha central até alcançar, ao alto, a casa em dois
pavimentos, um destinado ao convívio social e outro íntimo, ricamente
ornamentada em seu interior, com um porão e uma torre-mirante
2.
[...] chamada de castelo, tinha visão privilegiada
de todo o entorno. No sopé do morro um lago com cinco ilhas e seis pontes de
madeira e [...], subindo a encosta, variadas plantas ornamentais, caminhos
cobertos de arbustos e árvores frutíferas proporcionavam ao lugar vista e
ambiente aprazíveis e convidativos ao repouso e ao deleite. Um coreto, com
assentos à sua volta, compunha, ainda, o cenário do jardim romântico de Mariano
Procópio, condizente com o gosto paisagístico da época.[1]
3. Minuciosamente
concebido pelo empreendedorismo de Mariano, a configuração do jardim como um
todo foi, no entanto, lentamente se constituindo, especialmente nas décadas que
se seguiram à sua morte precoce, em 1872, aos 51 anos, sob o empenho direto de
seu filho Alfredo Ferreira Lage. Apesar da relevância reconhecida em três
instâncias de proteção - federal, estadual e municipal -, o conjunto sofreu
sensíveis descaracterizações, ao longo de décadas e em sucessivas
administrações. A significativa história do jardim do século XIX não será o foco
deste artigo, mas servirá como base analítica para defendermos a necessidade
premente de sua conservação e restauro. A seguir, apresentarmos seu percurso,
em três tempos distintos: no primeiro, o jardim aparece retratado em sua
condição inicial; no segundo, como fruto das transformações verificadas no
decorrer do século XX; e, por fim, a partir de uma perspectiva futura, como
parte integrante e dinâmica de um projeto de restauração em curso, o qual
pretende não somente fazer reflorescer a sua ambiência primitiva - com
redesenho dos caminhos, reelaboração das perspectivas, da volumetria das massas
verdes e da própria luminosidade -, mas também garantir os meios para a
apropriação pela população, em seus novos usos e demandas.
O
momento inaugural
4. Não é
possível dissociar os jardins da residência Ferreira Lage da figura de Mariano
Procópio. Empreendedor dinâmico, em dia com os avanços tecnológicos e de
infraestrutura que se observavam na Europa e Estados Unidos,[2]
idealizou e construiu a Estrada de Rodagem União e Indústria - a primeira
estrada macadamizada do país, cujo trecho ligando Petrópolis a Juiz de Fora foi
inaugurado em 23 de junho de 1861.[3]. Para a criação do jardim, provavelmente
aliou seus conhecimentos de engenharia aos da equipe que construiu a rodovia e,
deste modo, colocou em funcionamento um sofisticado sistema hidráulico,
interligando fontes, cascata e lago com canal, permeados a uma escolha sensível
de exemplares da flora tropical.
5. Esta
associação entre recursos técnicos e formais foi tão bem realizada que resistiu
ao decurso do tempo, chegando aos dias de hoje com sua macroestrutura
preservada, ainda que apresente descaracterizações em sua ambiência original.
Muitos relacionam as características deste elaborado paisagismo à autoria do
francês Auguste Marie François Glaziou,[4]
cujas relações sociais e profissionais certamente o poderiam vincular a esta
realização. No entanto, não se encontram provas documentais satisfatórias para
sustentar a hipótese. Fato inegável é que o arranjo exemplar e monumental do
jardim, em comparação à escala da cidade, surpreendeu inúmeros visitantes que
deixaram registros por meio dos quais é possível reconstituir parcialmente o
ambiente da época. Entre estes, se destaca a figura do Imperador Dom Pedro II
que, por ocasião da inauguração da Estrada União e Indústria, registrou em seu Diário de viagem:
6.
É deste
aprazível sítio que a arte converteu num brinco igual a qualquer lugar de
banhos da Alemanha, sob o céu recamado de estrelas que porfiam com as
inumeráveis luzes, que cintilam nos jardins e elegantes edifícios, ao som de
uma harmoniosa banda de música de colonos tiroleses que eu principio
a narrar a minha viagem enquanto a lua não sai e eu também, para percorrer
estes jardins a inglesa, e subir ao alto de um outeiro, onde Lages acaba a
construção da mais “coquette” habitação.[5]
7. Poucos
anos depois, em 1865, o zoólogo suíço Louis Agassiz
também descreveu sua visita ao jardim, em companhia do comendador Ferreira
Lage:
8.
Na manhã
seguinte o Sr. Lages nos fez dar um passeio pelos seus jardins e laranjais.
Passeio tão agradável quanto instrutivo. Ele não só distribuiu suas
propriedades com muito bom gosto, mas fez empenho em nelas reunir todas as
árvores e arbustos mais característicos do país; [...]. Uma das coisas mais
admiráveis que podem ser observadas nos jardins do Sr. Lages é uma coleção dos
vegetais parasitas das florestas brasileiras. Duas sebes rústicas, ladeando uma
extensa aleia, sustentam um grande número das mais singulares plantas desse
gênero. No meio da aleia está a gruta das Princesas, assim chamada para
recordar que, por ocasião de uma visita feita pela família imperial a Juiz de
Fora para inaugurar a estrada, as filhas do Imperador se mostraram encantadas
com a beleza desse recanto, onde uma fonte brota de um rochedo todo
engrinaldado de parasitas trepadeiras e de orquídeas. Essa fonte é artificial,
faz parte do admirável sistema de irrigação que se estende por toda a
propriedade. Fica-se pasmo com a rapidez com que tudo brota e cresce neste
país, quando se sabe que essa propriedade data apenas de cinco ou seis anos;
ainda mais alguns anos sob a mesma direção, e se tornará o paraíso dos trópicos.[6]
9. Esse
relato é especialmente importante por comentar a escolha e o arranjo espacial
das espécies nativas e por apresentar um elemento (hoje desaparecido) em seu
esplendor inaugural: a chamada “gruta das Princesas.” Lembrada em outras
referências como um dos ápices do percurso dentro do jardim, é de se estranhar
que não tenha sido ainda encontrada qualquer imagem ilustrativa da sua
configuração primitiva. Outros recantos do jardim foram, no entanto, fartamente
documentados desde sua inauguração. Um dos fotógrafos que se fez presente em
inúmeros registros foi Revert-Henry Klumb [Figura 1],[7]
que demonstrou suas impressões também em seus escritos:
10.
[...] este castelo é rodeado de um parque
desenhado, plantado e conservado com um gosto que nos dá a ideia do que devia
ser o proprietário: tanques de água límpida, onde nadam belos cisnes brancos e
pretos, ilhas de bambus, viveiros naturais onde cantam e gorjeiam milhares de
pássaros, jardins cheios de flores as mais curiosas e as mais raras plantas de
interesse particular tornam esse domínio um paraíso terrestre.[8]
11. O
aspecto bucólico e aprazível do jardim era favorecido pela presença abundante
de água e vegetação. No entorno da residência do topo da colina, além das
espécies arbustivas em canteiros e vasos, ornamentados por fontes e esculturas,
chamava a atenção um pergolado com vigas e pilares em ferro fundido [Figura 2] - estrutura que levava ao topo do monte, nos
fundos da quinta, sobre o qual se assentava o pomar -, como demonstração de
total integração entre arte, arquitetura e paisagismo. O ambiente como um todo também
sensibilizou Marianne North que assim registrou:
12.
Seu
jardim era cheio de tesouros, não apenas de plantas, mas de aves e animais:
havia uma cerca de pelo menos 50 jardas, toda pendurada de orquídeas raras,
amarradas juntas; cada galho de árvore era decorado da mesma maneira, e, quando
estivemos lá, muitos deles estavam cobertos com adoráveis botões brancos, lilases
e amarelos, a maioria muito perfumada. Havia também uma grande variedade de
palmeiras. Vi um cacto-candelabro enorme, com 20 pés de altura, e o ar estava
perfumado por botões de flor de laranjeira e limoeiro [...] [9]
13. Em 1872,
com a morte de Mariano Procópio, sua esposa, Maria Amália, e os filhos,
Frederico e Alfredo Ferreira Lage herdariam a propriedade. Neste período o
jardim se manteve relativamente estável em sua dinâmica original. Com a divisão
posterior da propriedade, coube ao filho Frederico a parte baixa do terreno,[10]
enquanto Alfredo herdaria a área superior a qual abrigava a construção de 1861,
conhecida como Villa Ferreira Lage. Nesta, iniciaria a organização de
uma significativa coleção, constituída por peças valiosas dos períodos Colonial
e Imperial brasileiro: “telas, joias, indumentária, móveis, objetos que deram
forma ainda incipiente ao Museu Mariano Procópio,”[11]
fruto de sua frequência em leilões no Brasil e no exterior, e
também de doações.
14. Alfredo
Ferreira Lage transformou a quinta numa casa-museu, aberta ao público (com
agendamento prévio) em 1915 e inaugurada oficialmente em 23 de junho de 1921,
marcando o centenário de nascimento de Mariano Procópio. Em 1936, Alfredo
Ferreira Lage documentou a doação de toda a propriedade e do acervo do museu
para o município de Juiz de Fora.[12]
15. A
Villa Ferreira Lage permaneceu como misto de residência e museu até a morte de
Alfredo, em 1944, quando se tornaria, definitivamente, apenas museu.[13]
O expressivo aumento da coleção já havia inspirado, anos antes, a construção de
uma galeria, concluída por volta de 1922 e conectada à Villa. Em 1939, a relevância
do acervo então composto por quase seis mil itens,[14]
chamaria a atenção do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN) que o inscreveria no Livro Histórico, número 118 (Processo de
Tombamento 190-T-39). Segundo a análise de Cristiane Magalhães, se por um lado
a proteção assinalou o reconhecimento da coleção reunida por Alfredo, por
outro, deixou em segundo plano os remanescentes arquitetônicos e o próprio
jardim:
16.
No
momento do Tombamento, a edificação que as abrigava e os jardins e o bosque do
entorno foram “esquecidos”, como era prática comum do SPHAN nos primeiros anos.
Na década de 1930, a aura romântica que guiou a constituição da Quinta não
inspiraria, de igual modo, os modernistas que organizaram o Serviço [...] Naquele momento, foi escolhido proteger o Barroco como
marca da identidade nacional brasileira. [...]
17.
Ao longo
do século XX, gradativamente, o espírito romântico do jardim do Museu Mariano
Procópio foi sufocado por práticas danosas àquele tipo de ambiente e de bem
cultural.[15]
O
parque no século XX
18. A
mudança da gestão da propriedade, atualmente administrada pela Fundação Museu
Mariano Procópio (MAPRO), e a passagem de uso privado para público trouxeram
significativas alterações na dinâmica do parque e na manutenção de seus
equipamentos. Sem que seja possível precisar as datas, podemos listar
alterações do ambiente que impactaram o jardim, em maior ou menor grau no que
tange à sua integridade e autenticidade. Entre estas, relativamente ao
paisagismo, lembramos a introdução aleatória de espécies dissonantes daquelas
tipicamente encontradas nos jardins brasileiros do século XIX; e, ainda, cortes
e supressões, de um lado, e crescimento excessivo de árvores, por outro,
causando sombras na maior parte do terreno e impondo uma nova condição de luz e
temperatura ao ecossistema original. Segundo a avaliação do consultor,
arquiteto Carlos Fernando de Moura Delphim,
contratado pela direção do Museu Mariano Procópio em 2002 para um diagnóstico
integral do Parque,
19.
os
jardins históricos devem ser restaurados segundo os rigorosos critérios
adotados para a preservação desses bens culturais e naturais. Os jardins que
circundam a Villa não foram ainda restaurados. Para isso é necessário
proceder-se a estudos sobre as espécies originalmente empregadas não apenas na
residência de Mariano Procópio como em jardins análogos de Juiz de Fora e do
Brasil. Certos espécimes dos antigos jardins do Museu, como alguns arbustos,
acham-se muito deformados pela idade e por podas mal feitas.
[...]. Nos canteiros do Museu Mariano Procópio sobrevivem camélias, azaleias,
crótons, magnólias arbustivas, jasmim-do-imperador e outros arbustos, muitos
deles raros, de preço elevado. São mudas difíceis de se encontrar no comércio.
A multiplicação dessas espécies permite a formação de novas mudas que, ao serem
novamente introduzidas nos canteiros, iriam recebendo treinamento, iriam
recebendo treinamento para que, quando adultas, apresentem formas mais
convenientes ao estilo e gosto do jardim.[16]
20. Tanto
as espécies nativas quanto as exóticas, características daquele período, não se
encontram facilmente identificadas nos caminhos, sobretudo a partir do
adensamento da vegetação. Continuando a análise das descaracterizações, entre
os componentes arquitetônicos, destaca-se o descarte do mobiliário de época com
a inserção de novos bancos, luminárias, lixeiras e sinalização (comunicação
visual) [Figura 3,
Figura 4 e Figura 5]. O desenho nitidamente contemporâneo, por si
só, não representaria dano; no entanto, vale destacar que as peças apresentam
problemas de conservação, tais como ressecamento e desintegração de partes de
madeira, oxidação avançada de componentes metálicos, desgaste de pintura, entre
outros.
21. Questões
conservativas também são encontradas nos elementos originais: substituições
parciais ou totais e desagregações de pisos e guias, e descontinuidades das
escadas de acesso ao topo do terreno. Há ainda a substituição do sistema de
pavimentação e de drenagem - com a inserção, por exemplo, de canaletas em
concreto, e as obturações e nivelamentos executados nos mais diversos materiais
e períodos [Figura 6 e Figura 7]. Outras duas graves descaracterizações
sofridas pelo conjunto se referem à demolição parcial da pérgola em ferro
fundido - que recebeu uma laje de concreto em toda a sua extensão [Figura 8] - e a perda de segmentos expressivos da
“gruta das Princesas,” a qual quase não se pode reconhecer, uma vez que restou,
no possível local de sua implantação, apenas um resquício pálido de sua
configuração original.
22. Apesar
de se ressentir da ausência de critérios de restauro nas intervenções
realizadas ao longo dos anos, atualmente o Parque Mariano Procópio cumpre
função importante no tecido urbano, sendo uma das áreas verdes mais usufruídas
pela população. Oferece entre outras atividades, oficinas temáticas, visitas
guiadas abordando temas relacionados a elementos naturais e históricos, além do
“Clube Ecológico,” com dinâmicas para educação ambiental de crianças, e os projetos
“Música no Parque” e “Clube da Caminhada.” A área aberta ao público, de terça a
domingo, se restringe a 2,4 hectares, do total de 7,7. As dificuldades para sua
adequada manutenção não se limitavam a questões orçamentárias, mas, sobretudo,
a ausência de um Plano Diretor com diretrizes que orientassem todas as etapas
das intervenções, obtidas por meio de um Projeto de Restauro devidamente
desenvolvido e embasado em rigorosos critérios técnicos e conceituais, dentro
do âmbito do campo disciplinar da Conservação e do Restauro, entre os quais
destacamos as recomendações das Cartas de Florença (1981) e de Juiz de Fora (Carta dos Jardins Históricos Brasileiros,
2010).
O restauro do Jardim Mariano Procópio
23. Em
2015, deu-se início à elaboração de um Projeto de Restauro englobando toda a
área correspondente ao atual Parque Mariano Procópio [Figura 9].[17]
Desenvolvido até a fase de anteprojeto, em 2017, aguardava, para seu detalhamento
executivo, a conclusão de uma planialtimetria
atualizada e de um cadastro georreferenciado das espécies arbóreas no qual se
identificaria, inclusive, a vegetação remanescente do século XIX ainda
encontrada. O Estudo Prévio apresentado foi aprovado pelos órgãos de
preservação em 2015, quando se estabeleceram as seguintes orientações para o
desenvolvimento das etapas de trabalho: o redesenho dos caminhos e escadarias
de acesso ao conjunto arquitetônico no topo da colina; a abertura de pontos de vista,
abrindo clareiras em meio à vegetação; a instalação de mobiliário de jardim e
luminárias semelhantes aos originais, respaldados pela iconografia resgatada; a
renaturalização das margens do lago e canal; o
restauro do sistema hidráulico na “gruta das Princesas,” na Cisterna-Cascata e
Fonte dos Golfinhos; a criação de um anfiteatro ao ar livre e de uma área de
estacionamento, contíguos ao acesso da Rua D. Pedro II; a plantação de
laranjal; a remoção e substituição das canaletas de drenagem existentes.
24. O
desenho de suas premissas levou em conta as recomendações específicas para a
conservação de jardins históricos, dentro das normativas nacionais e
internacionais conhecidas, lembradas pelo arquiteto Carlos Delphim:
25.
A meta
da preservação é salvaguardar a qualidade e os valores do bem cultural,
proteger o material essencial e assegurar sua integridade e autenticidade para
as gerações futuras.
26.
Integridade
27.
Considerando-se
os sítios históricos como sistemas harmoniosos, sua integridade depende do grau
de equilíbrio que os elementos que o compõem mantêm entre si. O conjunto de
elementos que configuram um sítio histórico forma uma unidade básica. A partir
dessa compreensão, pode-se descrever cada elemento, cada parte, tendo por base
a intenção original. [...]
28.
Autenticidade
29.
A autenticidade
é um aspecto fundamental na avaliação dos bens culturais no que diz respeito ao
grau de originalidade dos diferentes elementos de um mesmo sistema. [...] A
destruição de estratos históricos, a moderna substituição de elementos
originais, particularmente se baseadas em conjeturas, bem como a adição de
novos elementos, podem ameaçar a autenticidade do bem, no que tange ao seu
material essencial.[18]
30. Para o
desenvolvimento mais detalhado, o parque foi dividido em três setores com
enfoques distintos para a intervenção, quais sejam: restituição, restauro e revitalização.
Estes conceitos também se encontram delineados nas normativas específicas,
sendo elencadas por Delphim:
31.
Conservação
32.
Designa-se
assim o conjunto de ações destinadas a prolongar o tempo de vida ou a manter a
integridade física da edificação. [...] Conservação inclui prevenção contra
deterioração, condição para manutenção do bom estado de um bem cultural, livre
de danos ou mudanças. O conceito amplo de conservação inclui vários tipos de
tratamentos que visam a salvaguardar o sítio e todos os seus elementos como um
conjunto no qual se destacam a vegetação, o traçado dos jardins, as edificações.
[...]
33.
Restituição
34.
É o
conjunto de operações que visam a recuperar as condições originais do bem
cultural e do espírito da época, o que se pode obter ou mediante remoção de
partes espúrias, ou reconstituindo de partes supostamente originais degradadas
ou que estejam faltando. Só se empreende um trabalho de restituição quando se
dispõe de sólidos fundamentos iconográficos ou de levantamentos físicos
rigorosos.
35.
Restauração
36.
É a ação
que tem como objetivo recuperar e reintegrar partes ou mesmo todos os elementos
de um bem cultural móvel ou imóvel. [...]
37.
As
intervenções de restauração nos jardins históricos visam a garantir a unidade e
permanência no tempo dos valores que caracterizam estes conjuntos [...].
38.
Um
princípio fundamental da restauração, que deve guiar e condicionar a escolha
das operações, é o respeito pela autenticidade tanto dos elementos construtivos
quanto dos elementos vivos dos jardins. [...]
39.
Revitalização
40.
O termo revitalização
designa a reutilização de um bem cultural imóvel, observando aquilo que lhe é
essencial: abrigo de atividades humanas ou condicionador ambiental para o
desenvolvimento dessas atividades. Implica, portanto, esforço para garantir
funções apropriadas ao espaço objeto de restauração, ou de conservação ou,
finalmente, de preservação.[19]
41. No
âmbito das restituições estão previstas ações, sempre respaldadas por
informação fotográfica e descritiva, junto aos seguintes componentes: lago e
laranjal; fonte e canteiros do entorno da Villa Ferreira Lage; e pergolado para
o qual está prevista a demolição da laje em concreto executada posteriormente.
Também é intenção central do Projeto de Restauro a recuperação minuciosa do
sistema hidráulico original. As áreas de restauração, por sua vez, se referem à
“gruta das Princesas” e à cascata:
42.
Considera-se
essencial restaurar a gruta das Princesas pois é uma peça referida nos textos
com muito ênfase e que para qualquer visitante actual é uma grande decepção pois não se encontra nem gruta
nem lago, nem água pingando nem plantas extraordinárias. [...] O ponto de
ligação entre a terra da estrada e o espaço do jardim torna-se muito forte
quando nos informam que a cascata é um mostruário de pedras do trajeto da
estrada União Indústria desde Petrópolis. A referência à visita das princesas
até à gruta e toda a vegetação de epífitas caindo dos rochedos, leva-nos a
perceber a dimensão que a cascata um dia teve e que hoje em dia perdeu. [...] É
objetivo desta proposta reconstruir esta gruta utilizando os materiais que
ainda se encontram e ligá-la a um sistema hidráulico de recolha de águas nas
cotas superiores que permite voltar a ter o ambiente de gruta húmida onde
crescem epífitas tal como se fez no restauro do Campo de Santana no Rio de
Janeiro em que a peça chave de Glaziou foi devolvida
ao público com todos os seus efeitos de gruta sublime.[20]
43.
Com relação às espécies, o memorial do
anteprojeto cita a importância de realizar a identificação, a partir de estudos
de botânicos e paisagistas brasileiros que se dedicam ao tema dos jardins do
século XIX, da flora características à época em que se implantou o jardim.
Ainda sobre os sistemas vegetais, a arquiteta Cristina Castel-Branco defende a
ideia de abertura de clareiras em meio ao bosque que se encontra excessivamente
denso, após o crescimento das espécies, tendo se perdido a leitura dos caminhos
e da colina com construção no topo, bem como a possibilidade de mirar a cidade
e o entorno do parque a partir do alto:
44.
Um dos
usos como miradouro que o parque oferecia e que é mencionado pelos viajantes
perdeu-se. A partir do alto da colina as vistas sobre toda a região eram
soberbas e a localização do palacete em posição de dominância inscreve-se numa
linha de construções românticas como o palácio da Pena em Sintra ou os castelos
do Luís da Baviera. A situação presente é bem diferente pois o crescimento de
grandes árvores agora centenárias fechou toda a colina e não há aberturas
visuais para nenhuma das direções. Faz parte deste projeto repensar quais os
ângulos de vista que se deveriam reabrir e recuperar esse uso de contemplação.[21]
45. Castel-Branco
lembra ainda, nas descrições da inauguração, o caráter festivo e sempre citado
de celebração “de festa com o máximo de requinte e beleza, surpresa e
grandiosidade,” que justificam e amparam a refuncionalização do Parque em ações
denominadas de revitalização, entre as quais destacamos a criação de um
estacionamento e um banco de mudas, junto ao acesso da Rua D. Pedro II, e,
ainda, um anfiteatro ao ar-livre, onde poderão ser realizadas as programações
musicais, teatrais, feiras temáticas. Deste modo, poder-se-á garantir o
restauro do ambiente como obra de arte do século XIX e, por outro, permitir à
população o usufruto deste rico ecossistema idealizado por Mariano Procópio [Figura 10].
Referências bibliográficas
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Janeiro: Rio Books, 2013.
TRINDADE, Jeanne; TERRA,
Carlos (orgs.). Arqueologia na paisagem: olhares sobre o jardim histórico.
Rio de Janeiro: Rio Books, 2014.
______________________________
[1] MAGALHÃES, C. M. Da
Quinta do Comendador Mariano Procópio à carta dos jardins históricos
Brasileiros (1861-2010). In: TRINDADE, J.; TERRA, C. (orgs.).
Arqueologia na paisagem: olhares sobre o jardim histórico. Rio de
Janeiro: Rio Books, 2014, p. 145.
[2] Mariano Procópio teria
viajado a estudos para a Europa em 1840. Em sua carreira de engenheiro,
destaca-se a fundação da Companhia União e Indústria, com a concretização da
“primeira estrada pavimentada do país”, a estrada União e Indústria, e a escola
agrícola de mesmo nome. Como figura política, foi eleito deputado provincial em
1861 e representante de Minas Gerais na Assembleia Geral do Império entre
1861-1864 e 1869-1872. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mariano_Proc%C3%B3pio>.
Acesso em 14 mar. 2017.
[3] Data em que, segundo
Cristiane Magalhães, Mariano Procópio comemorou seu aniversário de 40 anos,
tendo a comitiva imperial como convidada. MAGALHÃES, C. M., op. cit., p. 144-145.
[4] Auguste François Marie Glaziou chegou ao Brasil em 1858, a convite de D. Pedro II,
para ocupar o cargo de Diretor Geral de Matas e Jardins na Cidade do Rio de
Janeiro. Autor da reforma do Passeio Público e dos jardins da Quinta da Boa
Vista, Camila Dias Amaduro alerta que “a autoria de muitos outros jardins é
atribuída a ele, mas a falta de documentação leva a inúmeras discussões”
(AMADURO, C. D. Os jardins da Chácara do Challet -
Uma análise da atuação de Glaziou em Nova Friburgo. 19&20,
Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/jardins_glaziou.htm).
A historiadora Rosane Ferraz também pondera que o projeto do Jardim Mariano
Procópio é “atribuído à Auguste François Marie Glaziou
em função dos traços paisagísticos característicos do seu trabalho. No entanto,
não há documentação que confirme esta informação” (FERRAZ, Rosane Camanini. A Coleção
de fotografias do Museu Mariano Procópio e as sociabilidades no Brasil
oitocentista. Juiz de Fora: Instituto de Ciências Humanas/UFJF, 2016, p.
53. (Tese de Doutorado).
[5] Diário do Imperador Dom
Pedro II apud DELPHIM, C. F. de
M. O Parque Mariano Procópio. In: Leituras paisagísticas: teoria e
práxis. Glaziou n. 2. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p.
112.
[6] AGASSIZ, L.; AGASSIZ,
E. C. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Senado: Brasília, 2000, p. 94.
[7] O francês Revert Henrique Klumb (c. 1826 -
c. 1886) foi um dos primeiros fotógrafos estrangeiros a se estabelecer no
Brasil, tendo sido agraciado com o título de “Fotógrafo da Casa Imperial”, em
1861. Autor do livro Doze horas de
diligência. Guia do viajante de Petrópolis a Juiz de Fora, primeiro livro
de fotografia inteiramente litografado e produzido no país. Disponível em:
<http://brasilianafotografica.bn.br/?p=5809>.
Acesso em 23 jul. 2018.
[8] KLUMB apud FERRAZ, op.
cit., p. 51.
[9] NORTH apud BANDEIRA, Julio. A Viagem ao
Brasil de Marianne North, 1872-1873. Rio de Janeiro: Sextante, 2012, p.
164.
[10] “Na parte dedicada a si
Frederico construiu um imenso palacete, com material todo proveniente da
Europa. Após sua morte repentina aos 39 anos de idade em 1901, as dívidas
provocadas pelas obras resultaram na venda do imóvel à Estrada de Ferro Central
do Brasil, sendo posteriormente transferido para o Ministério da Guerra, que
instalou no local a sede da Quarta Região Militar”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Mariano_Proc%C3%B3pio>.
Acesso em 14 mar. 2017.
[11] MAGALHÃES, op. cit., p. 148.
[12] Ibidem, p. 148.
[13] PINTO, Rogério Rezende.
Alfredo Ferreira Lage, suas coleções e a constituição do Museu Mariano
Procópio – Juiz de Fora, MG. Apud MAGALHÃES,
C. M., op. cit., p. 148.
[14] MAGALHÃES, op. cit., p. 148.
[15] Ibidem, p. 149-150.
[16] DELPHIM, C. F. de M. Relatório
nº 12, 2002, p.7.
[17] O Projeto de Restauro
do Parque Mariano Procópio foi desenvolvido, em nível de anteprojeto, em 2016,
tendo como responsável técnica a arquiteta paisagista Cristina Castel-Branco,
e, como colaboradores, os arquitetos Carlos Ribas e Raquel Carvalho, da ACB Arquitectura Paisagista (Lisboa).
[18] DELPHIM, C. F. de M. Intervenções
em Jardins Históricos: manual. Brasília: IPHAN, 2005, pp. 28-30.
[19] Ibidem, pp. 59-60.
[20] CASTEL-BRANCO, Anteprojeto
de Restauro do Parque Mariano Procópio. Lisboa, 2016.
[21] Ibidem.*