O humor gráfico no início do século XX em Curitiba
Marilda Lopes Pinheiro Queluz *
QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro. O humor gráfico no início do século XX em Curitiba. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/humorgrafico.htm>
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Uma questão cada vez mais recorrente na história do design brasileiro tem sido a importância e a riqueza de peças gráficas produzidas entre o final do século XIX e início do XX, no contexto que alguns consideram período pré-modernista ou época “antes do design” (CARDOSO, 2005, p.10).
As revistas de humor tiveram um papel fundamental nesse processo. Elas foram um espaço midiático de experimentação de linguagens, abrindo espaço para uma confluência de diversos discursos da sociedade. Evidenciam as mudanças técnicas e as novas percepções, rearticulando a tradição dos pasquins, o desenho acadêmico marcado de sinuosidades do barroco, o ecletismo e o “art nouveau”, a colagem, a montagem, as sobreposições e justaposições do modernismo. Essas revistas interagem com a construção do imaginário da época, no contexto das reformas e transformações urbanas, na fronteira entre o artesanal e a comunicação de massa, resgatando tradições orais.
O trabalho dos caricaturistas contribuiu para a formação de uma nova estética na publicidade, criando narrativas gráficas, às vezes através de painéis sequenciais, demonstrando visualmente as vantagens e benefícios no uso dos produtos, inovando as possibilidades dos cartazes, anúncios, rótulos. Referindo-se à época do pré-modernismo, Aracy Amaral afirma que a “inventividade somente aparece quando o desenho de humor se incorpora à mensagem de venda.” (AMARAL, 1979, p. 27)
A história da caricatura brasileira, em alguns momentos, confunde-se com a própria história do design gráfico, apropriando-se das novas técnicas e permitindo avanços nas resoluções gráficas.
As imagens humorísticas funcionavam como um chamariz de muitas das principais publicações brasileiras das primeiras décadas do século XX. Os caricaturistas eram chamados inclusive para fazer os anúncios, estando entre alguns dos nomes mais famosos Julião Machado, J. Carlos, Raul Pederneiras, K. Lixto. “O prestígio dos artistas era tanto que o sucesso das revistas ficou associado a eles e não aos redatores”. (ABRIL, p. 213-215).
A transformação estética influenciou e foi influenciada pelas mudanças industriais, pela invenção de novas técnicas litográficas, havendo, a partir de 1860 um aumento da ilustração e da fotografia, assim como uma maior regularidade nas publicações.
Entre as mercadorias cujo consumo mais se expandiu no século 19 estão os impressos de todas as espécies, pois a difusão da alfabetização nos centros urbanos propiciou um verdadeiro boom do público leitor. O anseio de ocupar os momentos de folga deu origem a outra invenção da era moderna: o conceito do lazer popular, que desenvolveu-se em estreita aliança com a abertura de uma infraestrutura cívica composta por museus, teatros, locais de exposição, parques e jardins. Não por acaso, consumo e lazer acabaram por se fundir durante o século 19, culminando no animado espetáculo das grandes lojas de departamentos. (DENIS, p. 40-41)
O objetivo deste trabalho é discutir as relações entre humor e design gráfico, através do estudo das capas de lançamento de quatro revistas curitibanas: O Olho da Rua (1907), A Carga! (1907), A Rolha (1908) e A Bomba (1913).[1] Elas inserem-se no contexto do grande sucesso nacional das revistas de humor da primeira década da República, quando os intelectuais da região puderam misturar, experimentar diversas linguagens, todas híbridas, resgatando tradições orais, sotaques, erros, entonações, tradições parnasianas, simbolistas, retomando a fala dos caipiras, imigrantes (alemães, franceses, portugueses, italianos), reunindo fragmentos variados, um caldeirão de culturas, um amálgama entre o coloquial e a norma culta, numa verdadeira colcha de retalhos.
Ao refletir sobre as capas de lançamento dessas quatro revistas no mercado, tentaremos perceber como esses desenhistas e jornalistas definiam-se em relação à sociedade, que papel atribuíam aos periódicos humorísticos e à imprensa e qual a relação que propunham aos leitores. Considera-se aqui o conteúdo e a forma como unidade dinâmica de significação. Nesse sentido, a linguagem das charges, o desenho, a tipografia, a diagramação da página, a composição serão refletidos em diálogo com o conteúdo e o contexto. Sem negar a polissemia dos signos plásticos e dos signos verbais, o que aqui se apresenta é uma possibilidade de leitura.
No começo do século XX, as reformas urbanas, os deslocamentos para a cidade, para o trabalho, e as concentrações urbanas transformaram os modos de comunicação visual. Essas transformações interagem com as diferenças gráficas dessas revistas, especialmente se comparadas com o século anterior, comprovando mudanças não apenas de ordem tecnológica, mas também em termos de cultura visual. A composição das capas e páginas dessas revistas transitava entre a estilização, a geometrização e a ornamentação do barroco ao “art nouveau”, deixando entrever as tensões entre ciência, técnica, arte, industrialização. O “Art Nouveau” estava ligado não só ao ecletismo arquitetônico, mas também à expansão da produção gráfica e do design de livros, revistas, cartazes, rótulos, embalagens, panfletos, cartões postais, etc.
A análise das capas de lançamento permite-nos visualizar algumas proximidades e diferenças possíveis entre essas três revistas, tanto em termos de tratamento gráfico, comunicação visual, construção do público leitor, definição do público alvo, propostas e objetivos.
O Olho da Rua
O primeiro exemplar de O Olho da Rua [Figura 1] foi lançado no dia 13 de abril de 1907, com a capa feita por Herônio[2]. A cena ocupa dois espaços que se conjugam, criando um movimento dinâmico entre o que está dentro e o que está fora, questionando as fronteiras entre a casa e a rua, misturando os limites gráficos da ação. A referência urbana, dada pela perspectiva do casario e pelas pedras da rua, é construída situando o leitor no centro desse jogo de entrar e sair. Nosso olhar é remetido a um ponto de fuga à direita, com a profundidade acentuada pela linha do telhado, que é paralela à diagonal formada pelo braço da senhora que aponta para o homem e para o canto inferior direito da revista, lugar onde acaba a capa, conduzindo-nos a virar a página e entrar na revista, marcando o percurso do olhar. A mulher domina a ação e faz a ponte entre os dois espaços, com o pé direito dentro do círculo, espaço do desenho, da composição, na entrada da porta, na intimidade do espaço privado, e o esquerdo para fora da moldura, da cena, além dos personagens, invadindo o espaço da capa da revista, o espaço que seria a rua, avançando para onde estaria o leitor, para o lugar do manuseio da revista. Acentuando a diagonal, com a mão direita ela segura um gato (animal, aliás, que melhor simboliza o contato entre a rua e a casa) de expressão assustada, numa ameaça de atirá-lo contra o homem, criando um efeito de sentido que pode ser associado à própria proposta da revista: uma ameaça de crítica, de atacar quem quer que fosse necessário. A mulher/revista parece estar ameaçando quem saísse da linha.
O homem, cujo olhar volta-se para a mulher, é expulso da casa, é o desfecho da cena, para onde nosso olhar converge. O suspensório caído, a roupa em desalinho, a barba mal feita, e o próprio traje da senhora, aproximam-nos das classes populares, ou do que revelaria um estereótipo das mesmas. O engraçado, o cômico está na figuratividade do homem segurando as calças pra não cair, pego com as calças na mão, perdido, fora de lugar, tentando se recompor, no meio da rua. Constrói-se, deste modo, uma figura cujo referente é o próprio leitor: alguém que precisa estar na rua, “entrar” na revista para ficar em dia com o que acontece. Os objetos pessoais atirados ao chão tornam-se conhecidos, como intimidades reveladas. Sugere-se assim uma tentativa da revista de colocar em evidência os “podres”, a “roupa suja” da política, as minúcias do cotidiano, tornando-os públicos. Espaço público e espaço privado são construídos no avesso dos domínios masculino/feminino.
A cena, limitada por um círculo, nos propõe a visão de uma lente, a imagem vista através de uma luneta, ou de um buraco de fechadura, por exemplo. Assim, o enunciatário compartilha da cena, torna-se, num primeiro momento, um observador da rua e do que acontece no cotidiano da cidade, um voyeur.
O texto centralizado que se incorpora à imagem: “Já! Ponha-se no olho da rua...” reitera a mensagem da cena. Este enunciado verbal, uma ordem, um imperativo afirmativo que se dirige não só ao ator/actante da narrativa, mas também ao enunciatário. O “já” instaura o instante, o momentâneo, o tempo dos últimos acontecimentos. A expressão “já para a rua” é um modo muito contundente de afastar alguém de um ambiente preciso. “Desse modo, colocar alguém 'para fora de casa' é sinônimo de destituição de uma posição social. Sair de casa é, então, no Brasil; uma forma de castigo ou mesmo de penalidade, conforme a situação.” (MATTA, 1981, p.73). Mas, o sentido de estar no “olho da rua” é aqui marcado pela ambiguidade, pois a rua tanto pode ser o local da marginalidade, da insegurança, do desconhecido, do desemprego e da pobreza, como um local estratégico, onde tudo se ouve e pode ser observado, o centro das novidades, das notícias, das mudanças, o contato mais próximo com a modernização do início do século. Estar na rua é estar em exposição, exercendo o jogo de ver e ser visto. A revista seria, então, uma outra porta que se abre para a rua, para o mundo.
De fato a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação, ao passo que a casa subentende harmonia e calma (MATTA, p. 70).
Esta capa propõe ao leitor os deslocamentos necessários/possíveis para ver outra perspectiva. A rua aparece como uma isotopia, presente no título, na frase dita pela senhora, na composição da imagem, posicionando o enunciatário como confidente/cúmplice/voyeur do espetáculo urbano. A ordem para a leitura da revista, leitura da cidade/da rua, enfatizada pela narrativa, é reiterada pelos formandos constitutivos do discurso, especialmente os formandos eidéticos e topológicos.[3]
A discussão do público e do privado, o espaço que leva à rua é tratado graficamente pela oposição entre linhas retas - diagonais, paralelas - e círculos fechados. As letras dialogam com a imagem: o “A” aponta para o homem. O “R” de rua é explorado, apontando para fora. O “A” abre-se, como a rua. O “O” fecha-se, como a casa e ao mesmo tempo tem a forma do olho que também se volta para a rua. O “Olho” é como óculos, lentes, binóculo, um convite à aventura do olhar de dentro para fora e vice-versa, talvez, com o olhar de quem está à margem. Estabelece-se um jogo de sobreposições/definições gráficas de vários planos, várias perspectivas, de superposições cênicas, delineando ações múltiplas.
A relação de desconformidade, de disjunção - mulher que expulsa homem - propõe indignação da revista, do povo, dos cidadãos, em relação aos acontecimentos, ao governo, aos serviços públicos, às instituições republicanas. O percurso narrativo exige e propõe uma transformação, uma competência a ser adquirida pelo leitor/destinatário - ler a revista, ver a cidade, participar das críticas. São várias as ações propostas: fazer o jogo de sair da rua e entrar na revista, ler a revista e estar na rua, passar a olhar a revista para olhar a cidade. Assim, estabelece-se o ponto de contato entre o que acontece na cidade, nas ruas curitibanas, no espaço público e o leitor.
As aparentes oposições entre revista/leitor, rua/casa e, finalmente, público/privado tornam-se mais complexas na medida em que se constituem num processo de interação, marcado por uma pluralidade de visões. Essa passagem dá-se pela mediação da revista/espaço, mas depende desse transitar do leitor entre o espaço/tempo privado e o espaço/tempo público. A revista coloca o leitor na ação, na rua. A participação do leitor é cobrada. O “olho da rua” não é só o do jornalista, mas também o seu. A revista discute, dessa maneira, o papel da própria imprensa, remete ao discurso da imprensa oficial, trabalhando o tempo todo com metalinguagens.
Este periódico possui várias colunas que, já em seus títulos, instauram lugares estratégicos do olhar, como “Na esquina...”, “Da janela do Olho”, “Do terraço do Olho”, “Do Telhado do Olho”, entre outros. Na coluna chamada "Na esquina...", a rua é eleita como o local privilegiado da Curitiba moderna, o avesso da cidade, onde o popular e o culto misturam-se, entrelaçam-se, como escreve o cronista Helio:
Aqui é o meu lugar favorito; é como se estivesse na plateia de um grande teatro, atento para o palco onde se desenrolassem, trágicas e terríveis, as cenas palpitantes de um drama real. A rua é um tablado e quem ficar para aí, acantoado ao desvão de um palacete há de assistir lances multiformes, imprevistos, terrificantes, bufos, há de apanhar no ar trechos de inefáveis diálogos de amor, imprecações brutais de carrejões, lamúrias de mendigos, risadas e blasfêmias; há de auscultar, enfim, esse organismo que estua, vibra, e é alegre e triste, faustoso e miserável, cheio de sol e cheio de lama. (Helio. O Olho da Rua 13/04/1907)
Algumas seções abriam espaços para outras vozes, na tentativa de constituir e representar o público leitor, como, por exemplo, “Notas de um caipira”, onde os erros e o sotaque remetem à área rural, aos eleitores e cabos eleitorais das autoridades da capital. Na seção “Carrinho de Lixo”, o leitor poderia enviar sugestões, críticas. Havia espaço também para cartas enigmáticas, enigmas, pesquisas de opinião, concursos e sorteios feitos pela revista.
O editorial fala de um jornalismo, dito moderno, a ser seguido, definindo seus supostos inimigos - os políticos e o clero.
Não queremos ficar sujeitos a voto algum, a rota alguma que norteie nossos atos...Queremos voar, livres de peias, em busca de simples ilusões, embora, mas que sejam ao menos suaves como uma alfombra onde possamos adormecer sonhando os nossos sonhos de futuro [...] o jornalista de hoje deve ser caricaturista "a la diable". Ao mesmo tempo mundano e divino... Mas também é certo que não reputamos a loteria uma importante indústria extractiva [4] digna de proteção oficial, nem nos conformaremos com os votos de castidade do clero romano, enquanto forem detidas nas repartições aduaneiras castíssimas freiras conduzindo contrabando de artigos suspeitos. (Silveira Netto)
A capa da revista n. 2 [Figura 2] mostra como teria sido - como a própria revista interpretou - a recepção da revista na cidade, enfatizando a proximidade com as classes populares, nos trajes, na gargalhada sem dentes, e a desconfiança da burguesia, de cara fechada.
A CARGA!
A charge da capa de lançamento [Figura 3], também de autoria de Herônio, constrói a relação entre intelectuais, políticos e o clero como uma guerra, sendo a imprensa, a revista, o campo dessa batalha. Rearticula o papel do jornalista e da imprensa, ao mesmo tempo em que situa a posição/importância do caricaturista e do humor nesse jogo de forças.
A ênfase está nos instrumentos de trabalho, nos artefatos utilizados por jornalistas e caricaturistas como armas contra os políticos e o clero. Estes são os alvos das penas e lápis, sofrem ameaças e perseguições. Há uma divisão central deixando abaixo o tumulto/a ação e acima o título, um comando para a ação. O peso da curva das letras e a exclamação reforçam a ordem, sendo sinais gráficos de um fazer. Cargas de tinta colocam-se como cargas de crítica, borrões de atitudes, clamando à luta. As faixas de cor acentuam, dinamizam o movimento. O título em vermelho, contra um fundo azul, sugere as letras como actantes, agentes da ação. As letras impõem-se. Por exemplo, os "as" atacam, apontam para os “inimigos”, reiteram o efeito das pernas abertas do político do primeiro plano. O "C", o "R" e o "G" são curvas que propõem o passeio dos olhos pela página e o retorno à carga. A curva do “R” segue a curva da composição, das pernas do desenhista do primeiro plano, finalizando o ponto da exclamação, apontando para os políticos, cujos corpos e a cabeça entre as pernas, repetem a forma da exclamação. A batalha prolonga-se no desenho e nas letras.
Na composição da cena definem-se horizontalmente dois campos de atuação. À esquerda, o lado da revista, ou dos que trabalham na revista, representando uma maioria, todos de chapéus enterrados, como soldados enfileirados, numa mesma direção, quase anônimos, carregando penas e lápis - seus objetos pessoais, meios de trabalho - como lanças, apontando para cima e para frente, limitados ao contorno da capa. Um deles olha expressivamente para os leitores. É possível estabelecer uma metonímia, uma relação de contiguidade entre a carga (de tinta) e revista, os lápis e as penas e os desenhistas e escritores, e, mais profundamente, entre caricaturistas e o povo.
A direita é o lado dos políticos, com seus rostos à mostra, bem caracterizados, individualizados, onde o enunciador faz-nos ver quem são. Carregam debaixo do braço os patrimônios, bens públicos, como se fossem propriedades particulares. Estão todos sem chapéu, olhando desconfiados, pelo canto dos olhos, aflitos, seguindo em várias direções: vindo para frente, passando pelo meio das pernas, indo para o fundo como o padre e sua igrejinha, ultrapassando os limites da cena, sendo expulsos da capa para entrar na revista. Aliás, essa questão da aparência, do vestir ou não o chapéu, traz muitos significados que nos remetem não só à moda, mas à atribuição de valores dados a uma determinada época e num determinado contexto. É interessante constatar que, na grande maioria das charges que se passam num lugar público, o povo ou os representantes do povo, estão sempre de chapéu, formais, como pedia a etiqueta. Estar em público sem chapéu era como estar nu. Os políticos, talvez por sua intimidade com o espaço público, talvez por estarem sendo mostrados mais próximos, despidos das "aparências", das formalidades, estão geralmente sem chapéu, sendo quase possível arriscar uma comparação com os políticos atuais que arregaçam as mangas da camisa ao dirigir-se ao público. Uma informalidade planejada.
Embora a apresentação formal desta edição negue - negação reiterada em vários momentos dos números seguintes - percebe-se o sentido do título como cargas a serem carregadas pela população, havendo até uma seção de quadrinhos, feita por Herônio, chamada de "Cargas e Descargas..." (sobre o povo). Em seu primeiro editorial, os responsáveis pela revista afirmam-se modernos, representantes de um novo século, um novo tipo de jornalismo que busca o uso da razão.
Moças e moços, velhos e velhas, respeitável público.. .Inútil dizer-vos o objetivo d'A Carga, porquanto, meus ilustrados leitores, facilmente adivinhais que se não trata de uma carga de cavalaria ou outra mais incômoda de que muitos são vítimas ou mesmo daquela que o zé povo suporta por ser eterna besta (marchante)... E, se por um descuido, involuntariamente, inocente pilhéria vier a magoar este ou aquele, estaremos prontos a arretirar a phrasia mostrando, assim, que não miramos melindrar ninguém e sim gracejar com todos. (Os povos e povas)... Queremos viver em paz com Deus e o Diabo, sem que se pense por isso que temos o hábito de acender duas velas, como muita gente de alto coturno. É que estamos no século em que se procuram resolver questões, melindrosíssimas, embora, sem derramamento de sangue, e seria nota dissonante, se viéssemos aqui desfraldar o vexilo rubro de combates pouco edificantes.
A revista coloca-se como o espaço público onde trava-se a luta. Vai à guerra com suas próprias armas e instrumentos, sua própria linguagem, o desenho, o traço. O combate dá-se num espaço compartilhado pelos leitores, mas liderado pelos intelectuais e literatos.
A ROLHA
O primeiro número da revista apresenta na capa [Figura 4], feita por Columero, um jogo de justaposições/sobreposições de planos, carregado de linhas sinuosas, envolventes. Destaca-se um elemento saindo de dentro, abrindo a garrafa de vinho (a boca, a sociedade?). Este personagem avança para fora da capa, fumando, descontraído, com os braços em forma de ganchos, como abridores, um saca-rolha, em direção ao leitor. O corpo reitera a forma do círculo. Carrega uma rolha debaixo do braço (para tapar algo ou alguém?). Traz para fora o que estava lá dentro, fechado, engarrafado. No canto inferior esquerdo há uma demonstração de um fazer, abrir a boca de alguém, desarrolhar. Dois momentos simultâneos conjugam-se: a ação propriamente (infinitivo - abrir, desarrolhar) e a ação em curso (gerúndio, abrindo, desarrolhando). Simultaneidade que pode ser associada ao tempo dos acontecimentos da cidade, ao tempo da montagem da revista, ao tempo da leitura. Há espaços também simultâneos - dentro e fora. A textura da cortiça, material de que é feita a rolha, está desenhada em toda a capa, em azul, distinguindo-se do título em vermelho e do conteúdo (interior do círculo) também em vermelho. Há um efeito sinestésico que apela para a visão e para a sensação táctil, a de pegar a revista/rolha. No título, as letras são trabalhadas em diagonais e curvas como ganchos, garras, no formato de rolhas e abridores de garrafas. Há uma simetria entre o “A” inicial e o “A” final, repetindo os gestos dos braços do personagem central. Arrancar confissões, segredos, abrir espaços: desse modo a revista vem até o leitor, conseguindo as informações para ele, mostrando como o fará. Despeja os acontecimentos, abre-se para as informações mais escondidas.
Neste mesmo número é possível ver como a revista se vê em relação ao seu público leitor. Há uma charge [Figura 5] em que o Zé está de braços dados com a rolha, sendo observado pela imprensa e por outra pessoa que se distingue pelo uso da cartola. A rolha, carregando penas e lápis, de braços com o povo. Ele está sorridente, os dois centralizados. A velha política e o burguês preocupam-se, abrem espaço, caminho, veem pelo canto dos olhos.
A revista define-se em seu editorial como um "semanário pilhérico, crítico e literário" e apresenta-se num tom de provocação ao leitor, com um certo autoritarismo misturado ao nonsense, onde a ambiguidade destitui a autoridade única do texto, do autor, e convoca o leitor a tirar suas próprias conclusões e fazer uso da rolha como melhor lhe aprouver.
O que somos! O sugestivo título que escolhemos é por si só suficiente para vos dizer tudo. Sereis por acaso, seleto auditório, tão imbecil que não o compreendais logo, que não dispenseis in totum as nossas explicações? Cremos que não!... Somos - uma revista! Nada mais que uma revista, chispante, esfusiante, galante, smart, up to date, dernière cri, com caras, caraças e carões que será vendida pela gurysada às quintas-feiras, pela insignificante ninharia de dois nicolaus pequenos!...O que queremos! Ora, o que havemos de querer! Voltemos ao título - A Rolha. Qual pode ser a inspiração de uma rolha? Claro, claríssimo, arrolhar, fechar, entupir!...Pois é este o nosso fim: desejamos arrolhar, fechar, entupir muita coisa. Por exemplo: a nobreza de sentimentos cívicos e a pureza de ideais de meia dúzia de gatos pingados; a boquinha rósea de muita senhorinha, formada em mexericos; a bocanha de muita sirigaita trintona e tia, que vive a se importar com a vida alheia; e muitos e muitos outros pedacinhos que fazem parte do nosso programa, mas que serão surpresas...Para onde vamos! Isso agora é mais sério, encerra uma certa filosofia que não temos aqui de momento. Mas querem saber de uma coisa: não temos que dar satisfação a ninguém para onde vamos, mesmo porque não sabemos, e ainda que soubéssemos não diríamos: o futuro a Deus pertence.
O texto é profundamente irônico, agressivo, até mesmo anárquico, mas com alguns traços conservadores e reacionários. Transita entre a crítica aos modismos, a outras revistas e à própria imprensa, o horror ao "bom senso", ao socialmente esperado e a negação do diálogo. Deixa entrever a circulação de ideias, de estilos, mas adotam uma postura radical. Percebe-se que mesmo a aparente contradição entre o que está na capa e o que o editorial propõe, é relativizada pela proposta de abrir e fechar, num movimento contínuo, que é o movimento próprio de se folhear uma revista. Uma revista para fazer calar, fechar a boca dos hipócritas ou daqueles que muito falam e pouco ou nada fazem. A Rolha, a revista torna-se um meio, um instrumento para isso. A palavra rolha traz o sentido de "repressão da liberdade de falar ou de escrever; imposição de silêncio. Censura".[5] Entretanto, a censura aqui é construída de modo inverso - pois dirige-se não ao povo como de hábito, mas aos que dominam a cena política, econômica, aos que detêm o poder das decisões.
A Bomba
A revista “A Bomba”, cuja capa está assinada por K. Britto, foi lançada no dia 12 de junho de 1913. Lançar uma bomba no mercado editorial, parece ser a brincadeira a que nos leva esse título, trabalhando com a ideia do ataque, da explosão, do fogo [Figura 6].
A imprensa/mídia aparece enquanto algo que faz explodir ou apaga o incêndio. A ambiguidade do título e da cena faz pensar no que explode - a revista ou a política? Vemos um bombeiro de costas, anônimo, tentando apagar o que está errado, tentando apagar os vícios de uma política conservadora: a politicagem, a rotina, a bandalheira, o filhotismo. Acaba por apagar só o que foi escrito, os efeitos gráficos (nuvens, balões de fumaça e letras), o que foi impresso. A água vai para onde só há fumaça e não palavras. O bombeiro é tratado com volume, ocupa um lugar tridimensional, e tem uma sombra trêmula, quase como a fumaça. Esta é tratada como grafismo, com linhas e letras, num espaço bidimensional que termina na linha do chão, onde acaba a parede/fundo, espaço da imprensa. A Bomba/revista está presente no local, colocando-se ao lado do leitor para mostrar onde estão os focos de incêndios, as explosões. São várias as possibilidades para a palavra bomba, desde uma arma contra a política, uma bomba de S. João (considerando-se o período das festas juninas do lançamento da revista), uma "bomba jornalística", até mesmo a bomba de incêndio, aparelho usado para lançar a água. Os jornalistas são associados aos bombeiros, indo atrás do que é notícia, dos lugares onde há fumaça e suspeita de fogo. Interessante a ideia de propor a política local como incêndio, num jogo de metáforas, aliado à metonímia gráfica e política - substituindo fumaça por fogo, filhotismo/politicagem, por governo. A tipografia do título traz o dinamismo da curva da arte nova e reitera o movimento dos traços.
É preciso dizer que a revista surgiu num momento em que o corpo de bombeiros estava sendo muito criticado por sua precariedade, agravada pela falta de água, o que possibilitava a ocorrência de muitos incêndios na cidade. Os bombeiros eram chamados de "baldeiros" porque "lhes faltam bombas e outros aparelhos indispensáveis..." Assim a revista apresentava-se como de grande utilidade para a população: "De hoje em diante deixarão eles de ser baldeiros para serem muito bons bombeiros de verdade, pois por falta de bombas não será que os incêndios se repitam, que a nossa aí vai, capaz de apagar o fogo mais abrasador.”
No "pórtico", destacam a importância e a utilidade da leitura e das revistas de humor, apesar dos
muitos que não lêem, inimigos de toda espécie de literatura que invocam o exemplo dos Estados Unidos, como sendo o país onde só se cuida de criteriosas utilidades! Mesmo na literatura leve, nervosamente moderna, os Estados Unidos apresentam escritores brilhantes: desde humoristas que se chamaram Washington Irving e Mark Twain...(A BOMBA, n.1)
As propostas e objetivos são apresentados através de um soneto, onde o "burguês" e os "altos escalões" parecem ser os principais alvos de zombaria, num tom irônico e levemente ameaçador, explodindo ao final de cada verso:
A BOMBA
No meio de um fragor imenso que retumba,
Fugindo ao pingalim do humor que de ti zomba,
Vaes, pacato burguês, nos servir de zabumba
E paz já não terás porque estourou a Bomba.
Faze por evita-la e arreda se ela tomba,
Como o rei espanhol ao vê-la fazer bumba...
Mas vem lê-la se triste estás como uma tumba
Que ela para o teu mal é um elixir de arromba.
Por toda a parte irá, do palácio à tarimba,
E se um fato qualquer para a troça descamba
Com uma piada feroz a Bomba já o carimba.
Cuidado! Alerta, pois, porque senão - caramba!
Ela em ti baterá como em plano - marimba
E terás que dançar sobre uma corda bamba.
(Barão da Flor de Alface).
Brinca-se com a linguagem cheia de ornamentos do parnasianismo e com o hermetismo do simbolismo. No primeiro número da revista há, também, uma carta de um certo alemão, dr. Von Lanzmann pedindo para, a partir dos próximos números, escrever o jornal, ou encarte Batates, para todas as "xentes" da colônia: “(Eu escolhendes esta nome pro que tudes as minhaes patrices gostandes muites deste fruitinhes)... Issa é bonite mesme, tudes nois pudendes faiz um brinca deirra de pandegues com as noisse patrices”.
A partir do número dois, a revista dedica uma página inteira ao “Batates”, satirizando receitas e costumes típicos dos alemães, personalidades importantes da comunidade alemã, enfim, marcando, ainda que pela zombaria, a forte presença dos imigrantes no Paraná.
Semelhantes à linguagem macarrônica de Juó Bananére, outras pronúncias contribuem para o hibridismo e a carnavalização do discurso, em vários “cantos paralelos” da imigração. Erros, trocadilhos e sotaques tornam-se motivo de risos e até de preconceitos, mas deixam visíveis os vários grupos presentes na cidade, as várias vozes que se misturam no burburinho.
Ainda na primeira edição, há uma coluna dirigida às mulheres, satirizando os suplementos femininos dos jornais e a voga do francês: “Notes de Voyage... Je suis cheguée a Coritiba au jour 25 du méis passe. Faisant froid par burre. Dans la estacion je fut três atrapalhadée... Mme. Quelque Chose (Directeure de la revue feminine L’Esculhambation)"
Considerações Finais
Essas quatro capas trazem em comum a ambiguidade dos títulos, o desejo de inverter/questionar a ordem estabelecida, atacando as autoridades de forma mais explícita (como em “A Carga!”, “A Bomba”), ou mais sutis (como em “O Olho da Rua”). Todas ressaltam a importância da imprensa como mediadora destas tensões entre o poder instituído e o cidadão. O público leitor é construído ora como cúmplice (“A Rolha”, “O Olho da Rua”), ora como testemunha (“A Bomba”) ou atuando, no centro dos acontecimentos, como coautor (“O Olho da Rua”).
Todas as revistas apresentam em seus títulos algum tipo de ameaça (olho da rua, carga, rolha, bomba) que coloca/desloca o leitor na ação, perturbam, pedem um fazer - ver/ouvir/ler/abrir/apagar - requerem mudanças de estados, propõem alternativas e inovações na imprensa, trazem outras perspectivas e outras vozes para as discussões da cidade, pluralizam os debates. Elas poderiam ser classificadas como um gênero “sério-cômico”, cuja visão “carnavalizada”, traz
a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gêneros. Eles renunciam à unidade estilística [...] Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródia, etc. Em alguns deles observa-se a fusão do discurso da prosa e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos. (BAKHTIN, 2002, p. 108)
Nesse sentido, a ironia e a ambiguidade do humor dos caricaturistas parece ter sido um elemento de extrema importância para a ousadia e a criatividade na composição das capas e páginas do início do século XX. Aliadas à tecnologia, “as mudanças de traço e de soluções gráficas provocam deslocamentos nas percepções” da sociedade. (QUELUZ, 2005, p.112)
O resgate dessa memória visual e o estudo do design anterior ao modernismo abrem novas perspectivas históricas, evidenciando a multiplicidade da produção brasileira, desvendando, graficamente, nossa diversidade cultural.
Referências bibliográficas
ABRIL, Editora. A revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000.
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CARNEIRO, Newton. O Paraná e a Caricatura. Curitiba: Grafipar, 1975.
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QUELUZ, Marilda L. P. Traços Urbanos: a caricatura em Curitiba no início do século XX. São Paulo: PUC-SP, tese de doutorado, 2002.
_____. Memória e humor gráfico: caricaturas e releituras de Belmonte. In: QUELUZ, Marilda L. P. (org.) Design &Cultura. Curitiba: Editora Sol, 2005.
* Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
[1]As revistas consultadas pertencem ao acervo da biblioteca do Museu Paranaense e ao acervo da Biblioteca Pública do Paraná
[2] Herônio era um dos pseudônimos de Mário de Barros, um dos caricaturistas mais importantes do período. Nasceu em 1879, em Jaú, no estado de São Paulo e mudou-se para o Paraná, com o advento da República. Estudou na Escola de Belas Artes, sob a supervisão de Mariano de Lima, estudando desenho e técnicas de gravura. Entre seus colegas estavam João Turim, Zaco Paraná, Aureliano Silveira, que marcaram a arte paranaense. Foi funcionário público nos Correios e Telégrafos e professor de desenho do Ginásio Paranaense. A sagacidade de suas charges políticas e seu sarcasmo anticlerical destaca-se pelo traço aprimorado. Foi colaborador de O Olho da Rua, A Carga, O sapo, Paraná Moderno, A Bomba, entre outras revistas. Muitas vezes usou o pseudônimo de Sá Christão, especialmente quando seus alvos eram os padres. Ver CARNEIRO, Newton. O Paraná e a Caricatura. Curitiba: Grafipar, 1975, p. 43-44.
[3] Formando eidético - trabalha com as linhas e os entrecruzamentos, as linhas que configuram a imagem a ser vista, o que as linhas desenham. Formando topológico - trabalha com as formas, as linhas de organização, de composição, a distribuição no espaço. Há também o formando cromático, a maneira como as cores são tratadas, como criam efeitos e significados. Sobre formandos ver OLIVEIRA, Ana Claudia M. A. de. As semioses pictóricas in FACE 4(2): e GREIMAS, ª J. In Semiótica plástica e semiótica figurativa. In: OLIVEIRA, Ana Claudia M. de.(org.) Semiótica Plástica, São Paulo: Hacker Editores, 2004.
[4] Refere-se especialmente à erva-mate, madeira. Para uma compreensão do papel da erva-mate na economia do Paraná ver PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996 e LINHARES, Temístocles. História econômica do mate. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1969. Com relação à madeira, ver LAVALLE, Aida Mansani. A madeira na economia paranaense. Curitiba: Grafipar, 1981.
[5] Aurelio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1975.