O Pavilhão Mourisco da Fiocurz no Rio de Janeiro - Aspectos históricos, levantamento fotográfico e catálogo da arte geométrica aplicada na arquitetura
Ana Lúcia N. C. Harris * e Clélia Maria C. T. Monasterio **
HARRIS, Ana Lúcia N. C.; MONASTERIO, Clélia Maria C. T.. O Pavilhão Mourisco da Fiocurz no Rio de Janeiro - Aspectos históricos, levantamento fotográfico e catálogo da arte geométrica aplicada na arquitetura. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 3, jul. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/fiocruz_mourisco.htm>. [English]
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Introdução
O mundo islâmico tem uma tradição artística rica em ornamentações geométricas e simétricas. A arquitetura islâmica herdou técnicas de desenho da Antiguidade e apresenta na sua arte decorativa uma profunda ligação com os sentidos de universalidade e do dualismo, fortemente ligadas ao sufismo.
A arte Islâmica, levada à Espanha pelos muçulmanos, foi a base para o surgimento de uma arte única, a mudéjar, desenvolvida pelos povos hispano-mouriscos após a retomada cristã. O Palácio La Alhambra [Figura 1] é um exemplo vivo desta arte, apesar de ter passado por inúmeras reformas ao longo do tempo. O Alambrismo, termo utilizado séculos depois, quando o mundo assistiu ao “revival” mourisco, deveu-se ao fato do Palácio ter sido a inspiração para o “neo-mourisco” que permeou a Europa no séc. XVIII.
O “neo-mourisco”, por vezes aliado a um ecletismo arquitetônico, chegou ao Brasil em meados do século XIX. No Brasil, existem poucos exemplos “neo-mouriscos”; entre eles observa-se o “castelo mourisco” uma edificação pertencente ao complexo de edifícios do Instituto Fiocruz, em Manguinhos no Rio de Janeiro. Apesar de seu ecletismo, o também chamado Pavilhão Mourisco [Figura 2] é considerado uma das raras edificações neo-mouriscas remanescentes no Brasil. Este artigo relata o início de uma pesquisa em desenvolvimento, que estuda as características geométricas dos padrões compositivos encontrados no exemplar neo-mourisco brasileiro, relacionando-as às figuras de origem Islâmica. Nesta fase foram realizados: um levantamento histórico do edifício; registros digitais; uma catalogação; desenhos em CAD e modelos reduzidos em MDF[1] de determinados padrões encontrados. Nesta primeira fase da pesquisa pôde-se observar na arquitetura do Pavilhão Mourisco fortes influências do palácio La Alhambra em Granada, Espanha, principalmente nos motivos geométricos encontrados em diversos elementos arquitetônico.
La Alhambra
A cidade de Granada, foi fundada em 756 pelos mouros na região de Andaluzia- Espanha. Os mouros, conquistadores da Península Ibérica, eram um povo árabe oriundos principalmente da região do Saara ocidental e da Mauritânia. A dinastia Nasrida (1145-1492), última dinastia muçulmana na Península Ibérica, foi responsável pela construção do Palácio de La Alhambra, cuja palavra significa em árabe “a vermelha”. Este nome deriva da cor de sua construção, realizada com tijolos de taipa, secos ao sol e feitos de argila. Grande parte do Palácio, com seus esplêndidos arabescos, foi construída entre 1248 e 1354.
Segundo Domingo (2003a), entre 1238 e 1492, Granada teve 20 reis, mas foi sob o domínio do Sultão Abu Abd Allah, conhecido como Boabdil, que em 1492 os mouros se renderam aos Reis Católicos, pondo fim a oito séculos de domínio muçulmano na Península Ibérica. Com a vitória dos católicos, os mouros da Península, denominados de mudéjar, foram obrigados a se converter ao cristianismo, passando a ser chamados de Mouriscos. Com a conquista de Granada, os Reis Católicos também assumiram La Alhambra como parte de sua imagem simbólica, incorporando-o ao patrimônio da coroa e conservando-o. Desde então, o Palácio passou por várias reformas. A conquista Cristã iniciou um processo de alteração do complexo arquitetônico da cidade de Granada, recobrindo de cal os trabalhos inacabados e apagando as pinturas e dourados. Inseriu-se então o estilo renascentista. Em 1821, um abalo sísmico causou mais estragos e, em 1828, iniciou-se um trabalho de restauração do Palácio.
O termo “Allambrismo” é consequência de um “revival” no séc. XVIII, provocado, segundo Domingo (2003a), pela atenção da Europa para com o mundo Islâmico com a invasão do Egito por Napoleão, dando origem a um “orientalismo”, que triunfou em suas mais diversas expressões. O liberalismo burguês levou ingleses, franceses e alemães, até a origem da cultura ocidental, que refletiu um mundo até então ignorado, tanto na arte como na literatura. Na arquitetura, o estilo “neo-muçulmano” diferenciava-se socialmente e foi muito adotado em construções de veraneio. Marcadas pelo exotismo, pelo luxo e pela sensualidade, construções neo-muçulmanas remetiam às construções dos paraísos do Oriente Islâmico. A base ornamental do “revival” islâmico não se define por um estilo arquitetônico, mas sim por uma adaptação formal a uma estrutura com arcos de ferradura, cerâmica, ladrilhos, policromia, colunas, etc. La Alhambra vive então uma nova etapa, ressurgindo, por um lado, devido ao Romantismo e a valoração do passado medieval europeu, por outro lado, devido ao reconhecimento enquanto patrimônio monumental transforma-se na principal referência arquitetônica Espanhola neste contexto.
Assim sendo, com o “Alhambrismo”, reconhecido por alguns como “estilo neo-mourisco” ou ainda mudejar, não se propôs a recuperar a racionalidade, funcionalidade, organização espacial ou valores estruturais da arquitetura muçulmana; preocupou-se sim, com os aspectos de aparência e de identificação, proporcionando um modelo decorativo a partir do qual, arquitetos e decoradores medievalistas extraíram elementos para adornar suas construções.
O Pavilhão Mourisco
O Pavilhão Mourisco é um edifício que faz parte do complexo do Instituto Fiocruz, em Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil.
De acordo com Costa (2003), a linguagem arquitetônica denominada neo-mourisca surgiu na produção brasileira, dentro de releituras introduzidas pelo Ecletismo, que vigoraram entre a segunda metade do século XIX e a década de 1930 no país. O tombamento do conjunto arquitetônico histórico, cujo representante maior é o Pavilhão Mourisco, reconheceu o valor desta arquitetura.
O Conjunto Arquitetônico Histórico de Manguinhos foi construído no início do século XX. Seu fundador, Osvaldo Cruz[2] contratou o arquiteto Luiz de Moraes Júnior para projetar o “Pavilhão”. Moraes era português, nascido em Faro, e acostumado ao modismo Europeu, do então estilo neo-mourisco. O processo de projeto do “Pavilhão” teve início em 1904 e sua construção em 1908, sofrendo alterações que partiram de ideias conjuntas e discussões entre arquiteto e cliente, durante todo seu período de concepção até sua conclusão em 1918.
De acordo com o site do Instituto Fiocruz, Oswaldo Cruz fez um croqui inicial que lembrava um castelo medieval [Figura 3]. Luiz de Moraes, interpretou o desejo do cientista e, em seus desenhos iniciais, previu apenas dois pavimentos e um porão elevado para o “Pavilhão” [Figura 4]. Apesar da inspiração no neo-mourisco, a planta adotada não seguiu o mesmo preceito do estilo. Sua composição não adotou pátio fechado, como tradicionalmente se fazia nesta arquitetura.
Segundo Costa (2007), o estilo neo-mourisco do “Pavilhão” se deve a influência recebida por Oswaldo Cruz no período em que estudou na Europa. Na França o cientista foi influenciado pelo observatório Montsouris [Figura 5]. Costa acredita que após uma visita à Alemanha em 1909, Oswaldo Cruz possa ter sido influenciado pela arquitetura de uma Sinagoga construída em Berlim, cuja distribuição das fachadas e disposição das torres é similar a do Pavilhão Mourisco [Figura 6].
Descrito por Franqueira (2003), o Pavilhão Mourisco possui hoje sete pavimentos e duas torres coroadas com cúpulas de cobre. As varandas são revestidas com azulejos portugueses e mosaicos franceses nos pisos que imitam tapetes orientais [Figura 7]. O hall da escada principal possui painéis de madeira e gesso trabalhados em baixo relevo, originalmente folhados a ouro. O salão de leitura da biblioteca e o hall do quinto pavimento possuem teto e paredes em estuque de gesso decorado [Figura 8]. Nesses ambientes as luminárias de bronze e latão com cúpulas de opalina produzem uma luminosidade suave e difusa que se traduz em uma atmosfera de mistério. Com exceção das áreas projetadas para os laboratórios, encontram-se no revestimento do edifício, tanto externo quanto interno, arabescos tipicamente Islâmicos [Figura 9].
O “Pavilhão” também possui um elevador, instalado em 1909 pela Companhia Brasileira de Eletricidade Siemens-Schuckertz Werke [Figura 10 e Figura 11]. Segundo o site do Instituto Fiocruz[3], elevador do Pavilhão mourisco é o mais antigo em funcionamento no Rio de Janeiro. Tem duas cabines para passageiros e uma para cargas. Foi projetado para quatro paradas e tem acesso opcional por dois lados. Estruturado em ferro, sua cabine de passageiros é revestida em madeira de mogno, cúpula de espelhos e portas internas em cristal bisotado. O desenho da grade envolvente é do arquiteto da obra e foi construído pela mesma empresa que fez a grade de proteção das escadas.
O Pavilhão Mourisco foi filmado e fotografado a partir de uma visita in loco em outubro de 2007. A partir desta documentação digital imagens de elementos arquitetônicos compreendidos como de origem Islâmica foram catalogados e parte deles desenhada em CAD. Esta catalogação se deu sob dois enfoques: por elementos arquitetônicos e posteriormente por padrões compositivos.
Classificação por elementos arquitetônico
Como uma primeira abordagem a documentação colhida sobre a obra foi separada e dela extraídas imagens que representavam elementos arquitetônicos compreendidos por serem tipicamente mouriscos e por vezes completamente islâmicos, como exemplifica a Tabela 1.
Tabela 1: Classificação por elementos arquitetônicos.
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Classificação por padrões compositivos
Posteriormente parte destas imagens foram recortadas e re-classificadas para serem reproduzidas em CAD (AutoCAD 2005), como exemplifica a Tabela 2.
Tabela 2: Classificação por padrões compositivos
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Análise Comparativa
Segundo o arquiteto Renato Rosa, a ornamentação claramente de inspiração Islâmica utilizada para recobrir toda a estrutura do Pavilhão Mourisco foi inspirada no Palácio La Alhambra em Granada, a partir da observação do livro “The Alhambra” de Calvert (1906), adquirido por Osvaldo Cruz e fornecido a seu arquiteto na época da construção do edifício. Este livro encontra-se hoje em dia na biblioteca do Pavilhão (COSTA, 2007).
Atualmente a pesquisa encontra-se na etapa de análise comparativa entre os desenhos compositivos encontrados em La Alhambra e no Pavilhão Mourisco. Pode-se observar desde já a forte influência, mencionada por Costa (2007) de La Alhambra a partir de algumas imagens, como exemplifica a Tabela 3. Além disso, iniciou-se um processo de construção de modelos virtuais e físicos com o uso de CAD/CAM.
Tabela 3: Exemplo de comparação entre elementos arquitetônicos de La Alhambra e do Pavilhão Mourisco.
Com influência claramente islâmica em muitos de seus padrões compositivos e uma evidente influência de La Alhambra, o Pavilhão Mourisco do Instituto Fiocruz, RJ, apresenta-se como uma interessante fonte para estudos de padrões geométricos.
Os próximos passos desta pesquisa seguem no sentido de extrair unidades nucleares de padrões geométricos encontrados e explorar criativamente novas formas compositivas bi e tridimensionalmente por meio de modelagens virtuais e físicas [Figura 12][5].
Referências bibliográficas
BRAZ, Felipe Massarico. Extração de módulos e releitura de
composições mudéjar a partir da gramática compositiva dos grupos de simetria no
plano. Iniciação científica FEC- UNICAMP (pesquisa em fase de finalização,
com bolsa FAPESP), 2007-2008.
COSTA, RENATO DA GAMA-ROSA. Entrevista concedida à Ana Lúcia
N. C. Harris e Clélia Maria C. T. Monasterio. Rio de Janeiro, 9 out. 2007.
______. Arquitetura Neo-mourisca no Rio de Janeiro. In:
COSTA, Renato da Gama-Rosa. Caminhos da Arquitetura em Manguinhos. Rio
de Janeiro: FIOCRUZ, Casa Oswaldo Cruz, FAPERJ, 2003, p. 77-87.
CALVERT, ALBERT FREDERICK. The
Allambra. Being a Brief Record of The Arabian Conquest of The Peninsula
With a Particular Account of the Mohammedan Architecture and Decoration. London
/New Your: The Bodley Head/ John Lane Company, 1906. 464 p.
CHRISHOLM, HUGH/ HOOPER,
FRANKLIN HENRY. The Encyclopaedia Britannica. A Dictionary of Arts,
Sciences, Literature and General Information. 11th ed. London/New York, 1911.
DOMINGO, José Manuel Rodriguez. El medievalismo islâmico em
la arquitectura española (1830-1930). In: COSTA, Renato da Gama-Rosa. Caminhos
da Arquitetura em Manguinhos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, Casa Oswaldo Cruz,
FAPERJ, 2003a, p. 29-46.
_____. La Alhambra e o orientalismo arquitetônico. In: COSTA,
Renato da Gama-Rosa. Caminhos da Arquitetura em Manguinhos. Rio de
Janeiro: FIOCRUZ, Casa Oswaldo Cruz, FAPERJ, 2003b. p. 77-87.
FRANQUEIRA, Márcia Lopes Moraes. A restauração do Pavilhão
Mourisco. In: COSTA, Renato da Gama-Rosa. Caminhos da Arquitetura em
Manguinhos. FIOCRUZ, Casa Oswaldo Cruz, FAPERJ, Rio de Janeiro, 2003, p.
121-127.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. FIOCRUZ Disponível em: <http://www.fiocruz.br/>.
Acesso em maio de 2008.
LEITE, Sylvia. O simbolismo dos padrões geométricos da
arte islâmica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
MICHELL, George. La Arquitectura del mundo islamico -
su historia y significado social. 2. Edição. Alianza Editorial, 1988.
Computer Science and Information Engennerring - CIS site -
Disponível em: <http://www.cis.nctu.edu.tw/>.
Acesso em maio de 2008.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer a gentileza do Arquiteto e
Pesquisador Renato da Gama-Rosa Costa por sua entrevista sobre o Pavilhão
Mourisco realizada em outubro de 2007 e por suas contribuições para a nossa
pesquisa.
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* Ana Lúcia Nogueira de Camargo Harris, Diplomada em
Arquitetura, é professora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Sua pesquisa esta
relacionada ao projeto arquitetônico, padrões geométricos e realidade virtual.
E-mail: luharris@fec.unicamp.br.
Endereço: DAC-FEC-UNICAMP, Caixa Postal 6021, CEP 13084-971 Campinas, SP,
Brasil.
** Clélia Maria Coutinho Teixeira Monasterio, Diplomada
em Arquitetura, é professora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal de Juiz de Fora- UFJF, Juiz de Fora, MG.
Atualmente esta cursando uma pos-graduação em Gestão do Patrimônio Cultural na
Universidade Metodista Granbery em Juiz de Fora, MG, Brasil. Sua área de
interesse esta relacionada ao projeto arquitetônico, Geometria Descritiva,
padrões geométricos e Patrimônio Cultural. E-mail: clelia.monasterio@gmail.com.
Endereço: Rua Senador Salgado Filho, 132 / 301. Juiz de Fora - MG. Brasil. CEP
36021-660.
[1] MDF (Médium Density Fiberboard), material derivado da
madeira.
[2] Oswaldo Cruz (1872-1917), médico, sanitarista e
cientista brasileiro, internacionalmente reconhecido por seus méritos na luta
pela erradicação de moléstias tropicais.
[3] Disponível em: <http://www.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1081&sid=194>.
Acesso em maio de 2008.
[4] Até o século XX, a produção de vidros no Brasil era
feita de forma artesanal.
[5] A cortadora Laser Universal utilizada nesta pesquisa
faz parte do LAPAC/ FEC/UNICAMP Disponível em: <http://www.fec.unicamp.br/~lapac/index.htm>.
Acesso em maio de 2008.