O Jugendstil e a Wiener Werkstätte em Raul Lino: o caso das “Artes Decorativas”

Eduardo Reynaud

REYNAUD, Eduardo. O Jugendstil e a Wiener Werkstätte em Raul Lino: o caso das “Artes Decorativas.”  19&20, Rio de Janeiro, v. XVI, n. 1, jan.-jun. 2021. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XVI1.02

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1.     Analisar a obra mobiliária de Raul Lino (1879-1974), como relacionada com o Jugendstil e a posterior Wiener Werkstätte cria questões com certo grau de complexidade, não apenas por sobrepor problemáticas aparentemente distintas - a atenção à produção arquitetura portuguesa, a fluidez da estrangeirada Arte Nova ou a assumidamente socialista Oficina de Viena - mas também por almejar cruzar e relacionar a origem de todos estes movimentos e consequentes resultados artísticos.

2.     Ou seja, discutir e analisar a genealogia de parte da obra de Raul Lino à luz da relação que mantém com as produções internacionais deste modern style germano-austríaco parece introduzir uma dicotomia, ou mesmo uma contradição, face à assumida “portugalidade”[1] do autor e da sua “casa portuguesa.”

3.     Ainda que estudar a obra de Raul Lino, principalmente na esfera das ditas “artes decorativas,” como informada por referentes internacionais possa parecer um contrassenso, ao longo do presente artigo irei demonstrar que além de bastante lógica, esta aproximação constitui um exercício necessário para a compreensão da primeira fase da obra de Lino.

4.     De modo a tornar claro o diálogo entre a obra do arquiteto e os referentes vienenses, em particular no capítulo do móvel, será necessário analisar também as suas produções azulejares e outros obras, como têxteis ou projetos nunca executados.

5.     Assumo, portanto, que a análise e menção de obras específicas - e consequente ignorar de muitas outras - no presente artigo resulta de uma perspetiva concreta, possivelmente parcelar, que procura demonstrar com alguma facilidade a profunda erudição de Lino e o seu pleno domínio das propostas e dos demais resultados artísticos internacionais que nunca deixará de acompanhar. Procura-se, assim, contribuir para o estudo da obra deste arquiteto, tal como para o estudo da Arte Nova portuguesa, mesmo que esta terminologia seja perigosamente indefinida.

6.     Interessa começar por analisar o Jugendstil, a variante germano-austríaca da Arte Nova, que primará pelo seu “polished vocabular of vegetal, scrolling forms” (FAHR-BECKER, 2008), e que, apesar do parentesco com a Art Nouveau francesa e/ou belga, não possuirá o seu característico horror vacui, onde todos os espaços deveriam estar preenchidos com elementos frequentemente ornamentados, de modo a atingir a obra de arte total, muito ao gosto barroco. Será isso mesmo: “polished,” primando pela quase monumental sobriedade que caracterizará esta variante da Arte Nova (KERRIGAN, 2015).

7.     É nesta linha de pensamento, nesta sobriedade elegante, que a Wiener Werkstätte (1903-1932) se implementará. Já anos antes vários artistas associados à Secessão de Viena (1897-1905)[2] começariam a divergir da pontual inutilidade das obras criadas e desenhadas para os espaços de habitação dos seus clientes (FAHR-BECKER, 2008).

8.     Assim fundaram a Oficina de Viena, a Wiener Werkstätte, que coincidirá social, económica e politicamente com a necessidade da burguesia vienense se colocar ao nível da todo-poderosa aristocracia, fazendo-o através das grandes obras mecenáticas que lhe encomendará (KALLIR, 1996).

9.     A Wiener Werkstätte tem, através dos seus fundadores Josef Hoffmann (1870-1956) e Koloman Moser (1868-1918), objetivos muito concretos: elevar todos os aspetos quotidianos a obra de arte a uma autêntica gesamkunstwerk que, ao contrário dos precedentes Arte Nova, deverá primar pela adequação e funcionalidade (FAHR-BECKER, 2008).

10.   É antecedente de ambas as instituições o movimento Arts & Crafts e as obras de John Ruskin (1819-1900) e do socialista William Morris (1834-1896), nele inseridas. O movimento influenciará a Arte Nova no seu todo, tanto pelo vocabulário estético como pelos seu ideais políticos, em particular na crença de que a máquina não pode substituir o artesão (MORRIS, 2003). Será aqui que a Werkstätte baseará o seu programa, dando grande importância à criação de peças únicas, feitas exclusivamente pelo método artesanal.[3]

11.   Hoffmann defenderá como principal missão da Oficina de Viena a criação de objetos únicos que, além de artesanais, deveriam estar providos da melhor qualidade técnica e material possível (FAHR-BECKER, 2008), muito à semelhança do que Morris idealizava,[4] enquanto dirigente do movimento Arts & Crafts (cf. MORRIS, 2003).

12.   Ambos os movimentos criticarão a maquinação das artes, em particular na produção das artes decorativas. Esta crítica será iniciada pelo Arts & Crafts - devido, entre outros fatores, à sua proximidade com os Pré-Rafaelitas, movimento esse celebratório dos valores medievais e pré-industriais - mas também pela Werkstätte, que defendendo a criação de peças únicas, manufaturadas, recusará a aplicação da máquina no processo de produção artística e, portanto, essa mesma maquinação.

13.   É possível verificar, através da leitura das várias obras que Lino publicou no decorrer da sua longa vida, a sua proximidade ideológica a estas visões. O arquiteto afirmará em 1918, em Nossa Casa: Sabe-se que em toda e qualquer obra em que seja admitido o carácter artístico, a impressão maquinal é sempre inimiga da beleza, tanto pior quanto mais aparente for a ação da máquina, quanto menor intervenção do sentimento do artífice.” (LINO, 1918, p. 36).

14.   Aqui, apesar da estetização do efeito da máquina nas artes, mesmo que negativo, torna-se evidente a proximidade com a valorização do artesão, característica dos já mencionados movimentos Arts & Crafts e da Wiener Werkstätte.

15.   A indiferença da população citadina às artes e ao belo será também criticada pela Secessão de Viena (KERRIGAN, 2015), que defendia a divulgação e desenvolvimento da Arte de modo a elevar o quotidiano a algo artisticamente trabalhado e esteticamente fruível (SEMBACH, 1996).

16.   Raul Lino criticará em 1969, na conferência em que participou na Academia das Ciências de Lisboa, o golpe de morte que infligiram ao trabalho artesanal, o desprezo absoluto por tudo o que represente qualquer prova da fantasia pessoal, por mais talentosa que ela seja.” (VIEIRA DE ALMEIDA, 1970, p. 115-182).

17.   Esta crítica é bem exemplificativa da importância que Lino dá à produção artesanal e ao cariz único de cada obra, podendo constatar-se, mais uma vez, a proximidade que tem com os referentes internacionais da Secessão e do seu Jugendstil.

18.   Raul Lino, por sua vez, estará na Alemanha devido ao seu percurso académico, que o levará a estudar, em 1893, na cidade de Hannover. Ali, frequentará tanto a Escola de Artes e Ofícios (Handwerker und Kunstgewebershule) como a Escola Técnica (Technische Hochschule) que lhe darão as bases para o seu ofício, tanto práticas como teóricas (FRANÇA, 1970, p. 78).

19.   No entanto, os espíritos antiacadémicos[5] do Arts & Crafts e da Arte Nova serão sobretudo absorvidos por Lino aquando da sua estadia no atelier de Albrecht Haupt (1852-1932), arquiteto alemão especialista em arquitetura portuguesa,[6] que lhe transmitirá o amor pelo que é português - algo que marcará a sua obra, é certo - mas que também o fará entrar em contacto com a filosofia Arts & Crafts e com os espíritos emergentes da Art Nouveau - enquanto expressão particularmente francesa - e do Jugend, vertente esta preferida pelo artista devido à sua própria e constante crítica ao afrancesamento de toda a arte europeia.[7]

20.   É, como afirma Pedro Viera de Almeida (1970, p. 120), com Haup que Lino aprende Portugal [...] e isso é importante na medida em que é nesse aprendizado que foram lançadas de facto as sementes que mais tarde iriam definir a sua capacidade de entendimento e desentendimento, da época ou épocas que viria a trabalhar.”

21.   Lino, aquando do seu regresso a Portugal em 1897, encontrará um país totalmente fechado sobre si, num ecletismo poluído pelos “neos,”[8] sem qualquer tipo de contacto com estes já mencionados movimentos emergentes na restante europa.

22.   Será assim que através da influente tutoria de Haupt, Lino absorverá a noção de volkgeist hegeliano[9] e começará a desenvolver o seu forte desejo de respeitar e fundar as bases do que é “verdadeiramente português.” Desde que regressou a Portugal, Raul Lino seria um veemente crítico da “casaria reles, espalhafatosa e sem carácter” (ARTUR, 1897) e da “hibrida confusão alucinada do chalet suíço, do cottage inglês, da fortaleza normanda, do minarete tártaro” (ORTIGÃO, [1896] 1943, p. 131). Quererá assim contrariar a “indiferença transcendente a que era votada a arquitetura em Portugal” (BERMUDES, 1898, p. 34), beneficiando deste jeito germano-austríaco para potenciar o que era nacional.

23.   A influência direta destes referentes na sua obra, mesmo que “um pouco cortada de árabe, como também o é a nossa tradição” (ORTIGÃO, 1900, p. 131), dará a Lino instrumentos para criar obras absolutamente inéditas em solo português.

24.   Falta ainda mencionar que esta breve estadia em território alemão fará com que o jovem Lino absorva e aprofunde um culto romântico a Wagner, Mendelsohn e Beethoven, algo que o influenciará a nível ideológico e estético, acompanhando-o durante todo o seu percurso.[10] Chegará a caracterizar o Convento de Cristo de Tomar como o Montsalvat português, em clara citação à obra wagneriana Parsifal, de 1882, onde o Castelo de Montsalvat dá guarida ao Santo Graal. Em 1901, dará o nome de Montsalvat à casa que construirá, a mando da III Duquesa de Palmela, para Alexandre Rey Colaço (1854-1928), como veremos mais à frente.

25.   Wagner, embora de longe um dos, senão o mais influente compositor na formação de Lino, não será o único germano-austríaco a fecundar o imaginário e obra do artista. O projeto que Lino criará em 1914 para a Sala Beethoven, será exemplo claro da sua proximidade à modernidade germânica e austríaca, tanto pelo seu traçado formal, como pelo ideal de algo somente dedicado à memória de uma figura artisticamente relevante e influente (KERRIGAN, 2015).

26.   Tal ideal não será exclusivo de Lino e nem por ele iniciado. Já em 1902, a Secessão de Viena criará, no seu edifício homónimo inaugurado quatro anos antes, a 14.ª Exposição da Secessão de Viena, a Beethoven-Ausstellung (Exposição Beethoven) exclusivamente dedicada a homenagear a obra de Ludwig van Beethoven (1770-1827), e a personificação da sua figura e obra como a síntese das artes.  

27.   Sob a direção de Josef Hoffmann - figura não por acaso de suma importância para o posterior entendimento da obra mobiliária de Lino - vinte e um artistas estiveram envolvidos neste evento, sendo de salientar figuras como Max Klinger (1857-1920), que criará a Estátua de Beethoven - onde o compositor é entronizado e representado como um deus grego - e Gustav Klimt (1862-1918), que criará o Friso Beethoven [Figura 1], representante do intuito da exposição em tornar claro que as artes são a epítome do anseio humano em fugir da perversidade da existência ao procurar a sua beleza e conforto (KERRIGAN, 2015).

28.   Penso que será no edifício da Secessão de Viena, e consequentes produções artísticas do grupo que o cria e gere, que Lino angariará um grande leque de material gráfico que incutirá em várias obras e comprovará a sua estreita ligação com a Secessão de Viena e o seus Jugend e Sezessionstil.

29.   Construído em 1898 com projeto de Joseph Maria Olbrich (1867-1908), aprendiz de Otto Wagner (1841-1918), o edifício da Secessão de Viena [Figura 2] será o palco da modernidade vienense e das exposições da Vereinigung Bildender Künstler Österreichs (Associação de Artistas Visuais Austríacos) sendo crucial para a consolidação do movimento secessionista vienense e criação de caminhos que darão origens a expressões posteriores, como a Wiener Werkstätte, também essencial para a comparação com parte mobiliária da obra de Lino. (KERRIGAN, 2015)  

30.   O edifício, maldosamente apelidado de “couve dourada,” possui vários elementos que o sagram como um dos principais resultados da modernidade secessionista vienense, salientando-se as finíssimas trepadeiras douradas que revestem o seu exterior branco, representadas como proteção ao que de mais precioso este guardaria [Figura 3].

31.   Penso que Raul Lino apropriará estas trepadeiras para criar os frisos azulejares nos beirados da Casa Montsalvat, em Cascais. A semelhança entre ambos é inegável, embora não estejamos a falar de uma mera transcrição [Figura 4]. O artista nunca deixará de trabalhar e personalizar os motivos que utiliza e neste caso não será diferente, marcando permanentemente a sua obra com uma Weltanschauug própria. Utilizando a inscrição de folhas e frutos estilizados numa forma repetida, essencialmente quadrada, Lino criará estes modernos painéis estampilhados vegetalistas, posteriormente ligados entre si através de finos troncos, que também ambicionam guardar[11] o que de precioso o original Montsalvat e o Edifício da Secessão guardavam: o Santo Graal e a nova Arte, respetivamente.

32.   Também em 1898, a Secessão Vienense começará a editar a sua revista Ver Sacrum (latim para Primavera Sagrada), numa erudita homenagem à Antiguidade Clássica, referente ao rito, executado na Primavera, onde os jovens seriam expulsos da sua cidade natal de modo a que fundassem uma nova polis (LASZLO, 2017)

33.   De modo semelhante, os Secessionistas abandonaram a formalidade historicista e académica da Künstlerhaus de Viena para fundar uma nova arte (KALLIR, 1996) e adotaram para esta revista a iconografia dos três escudos de armas de modo a representar a tríade “pintura, escultura e arquitetura” (LASZLO, 2017).

34.   Raul Lino não ficou indiferente a esta representação simbólica da ideal Obra de Arte Total e penso que utilizará estes mesmos três escudos de armas na tarja cerâmica que criará para a ampliação norte da Casa Roque Gameiro, de 1901 [Figura 5]. Esta composição de azulejo alicatado, além de possuir o referido elemento iconográfico, é também coroada com flores e ramos claramente Jugendstil - que envolverão toda a fachada norte - e inscrito com outra flagrante referência às artes: “Non in solo pane vivit homo,” diz a frase latina. “Nem só de pão vive o homem,” pois também vive da pintura, da escultura e da arquitetura, num também claro referente a Alfredo Roque Gameiro (1864-1935). 

35.   Lino abraçará em absoluto os referentes vienenses neste início de século, importando salientar que tanto a Casa Montsalvat, quanto a ampliação da Casa Roque Gameiro, foram executadas em 1901. Será para esta última que o arquiteto também criará, no quarto superior da torre resultante dessa ampliação, um padrão que forma um silhar em redor da divisão - que não ambiciona proporcionar a noção de padrão repetido, embora o seja, mas sim uma noção têxtil (CRAVO, MECO, 1997). Utiliza ali o motivo vegetalista das folhas e flores - não inteiramente divergente dos painéis de Montsalvat - ainda mais geometrizado, num claro sinal da modernidade Jugendstil neste capítulo da obra do artista.

36.   Ainda em 1907 terá claramente presentes na sua obra os referentes Jugendstil, materializados na moldura que desenha para um retrato seu que encomenda a Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), no mesmo ano [Figura 6]. Aqui teremos a vertente “cortada de árabe,” como anteriormente referido, neste caso pela identificação que Lino confessa pela expressão “آزاد” - persa para azad, livremente traduzido para “homem livre” ou “aquele que não tem amarras” -, termo esse que inscreve no topo desta moldura, que cria propositadamente para envolver a sua representação.

37.   Esta inscrição será colocada noutro motivo decorativo: as ondas luminosas do bem.[12] Estas, representantes da “luz, fogo, alegria [e] infinito” (RIO-CARVALHO, 1970, p. 220) serão aplicadas ao longo da obra de Lino em variadíssimas ocasiões: é o caso da cortina e da cama que cria para o seu quarto de solteiro (1900), abaixo analisado; do desenho para uma capela num cemitério, onde este motivo é desenvolvido através de vazamentos, no que faz lembrar olhos que choram (1908); de uma grade na Casa do Cipreste (1912); da fachada da loja Gardénia (1917) e do interior da cobertura do Pavilhão do Brasil, criado para a Exposição do Mundo Português de 1940 (1939).

38.   Todos estes exemplos remetem para o tratamento das polidas e elegantes formas com que Gabriele Fahr-Becker caracteriza a essência distintiva do Jugendstil. Como também escreve Rio-Carvalho (1970), estas ondas luminosas do bem não são “um arabesco, mas uma realização plástica consequência de uma intensa inquietação interior do homem ante os fenómenos cósmicos.”

39.   Às ondas luminosas do bem estão aliados mais dois elementos que se interligam: os enrolamentos de espinhos nos quadrantes inferiores do quadro e as linhas paralelas onduladas que o ladeiam. Estes espinhos representam a dor, num sentido também beethoveniano,[13] que se transforma na alegria através de uma aparente sublimação das linhas paralelas onduladas. 

40.   A sensibilidade que fulgura neste período da sua obra, que poderemos, portanto, caracterizar como Jugendstil, não aparta o símbolo da decoração nas ditas “artes decorativas,” estando absolutamente na linha teórica e prática de artistas como Charles Rennie Mackintosh (1868-1928), Joseph Maria Olbrich e Koloman Moser.

41.   A proximidade e semelhança da obra mobiliária de Raul Lino com a obra mobiliária da Wiener Werkstätte, principalmente com Moser e Hoffmann, ajuda a compreender a fase da sua obra que motivou, também, a escrita do presente artigo.

42.   É certo que um arquiteto como Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957) incorporará na sua obra elementos e referentes da Secessão e da Werkstätte com uma semelhança mais evidente; mas Lino fará esta ligação através de leves e elegantes cruzamentos de motivos (MONTEIRO, 2012, p. 343-350).

43.   Embora a Oficina de Viena tenha englobado dezenas de artistas ao longo de vários anos, penso que Lino apenas criará ligações com Koloman Moser e Josef Hoffmann. Enquanto o primeiro será ironicamente o mais conservador da dupla e o único que, à semelhança de Lino, primará pela permanência do símbolo na decoração, Hoffmann será o criador, como afirma Georges Marlier (1963) da “première maison totalement nouvelle du XXe siècle, através do Palácio Stoclet, em Bruxelas e, portanto, um modernista assumido.

44.   Lino criará para si, em 1900, a totalidade da decoração do seu quarto de solteiro [Figura 7]. Este possuirá a já referida cortina, com visíveis referentes jugend através da sua composição bidimensional e elegantes motivos quase abstratos, mas também várias peças de mobiliário na linha de Hoffmann, principalmente semelhantes no jogo de formas quadradas alternadamente claras e escuras.

45.   Também a linearidade que este utiliza na sua obra - já bastante afastada da linha vegetal da Secessão -, mais objetivamente visível na porta e janela de 1900 apresentadas na Exposição Universal de Paris, da autoria de Lino, estará inteiramente na linha do mobiliário do Palácio Stoclet, por exemplo.

46.   No quarto de solteiro de Lino, é visível o ponto que será comum entre os artistas associados a este grande e vasto movimento que é a Arte Nova, desde o belga Henry Van de Velde (1863-1957), o francês Hector Guimard (1867-1942), passando pelo italiano Carlo Bugatti (1856-1940) e pelo espanhol Gaspar Homar (1870-1953): a articulação do espaço com o mobiliário que o ocupa.

47.   Adolf Loos (1870-1933) criticará esta posição, anedotizando os espaços destes designers e afirmando que, de tão pensados, se tornariam inabitáveis, pois pelo simples ato de deslocar um objeto corriqueiro, como um livro, toda a harmonia intencionada pelo arquiteto seria destruída (cf. LOOS, 2006). Lino nunca se identificará com o design de Loos, nem mais tarde com Le Corbusier (1887-1965), criando espaços pensados, tanto no exterior - na vertente arquitetónica - como no interior - na vertente mobiliária e decorativa no geral -, num discurso perfeitamente orgânico entre todas as partes.

48.   No mobiliário do quarto de solteiro de Lino podemos concluir exatamente isso. A cómoda que cria para este espaço, desprovida de decoração vegetalista e primando pela ritmada linearidade hoffmaniana já referida, estará em perfeita sintonia com as cadeiras da mesma divisão - semelhantes às que Hoffmann cria, em 1903-04, para o estúdio de Klimt - e até com a cama, que tendo a colcha com o mesmo padrão das cortinas, cria uma sintonia notável, resultante de uma influência modernista vienense clara e de um sentido estético semelhante ao da Werkstätte.

49.   Será mais tarde, em 1907, no terceiro andar do número 38 da Avenida António Augusto de Aguiar, que fará a sua mais notável obra no que diz respeito ao capítulo moderno do seu mobiliário [Figura 8]. Aqui, na sua própria casa, ainda com algum reaproveitamento dos já referidos motivos quadrangulares, cria toda a decoração com grande influência Arts & Crafts mas também com inegável semelhança às obras de Moser e Hoffmann.

50.   Embora estas peças sejam de difícil rastreio, devido à demolição do edifício, podemos, através das fotografias que restam, analisar partes do espaço e do mobiliário para um entendimento mais aprofundado do mesmo.

51.   Em duas das salas podemos observar a redução da utilização do ornamento, numa vertente extensiva, a apenas um têxtil - também ele dentro das tendências estéticas dos têxteis da Werkstätte e ainda reminiscente de Morris - e alguns apontamentos simbólicos no mobiliário, não totalmente díspar do modus operandi de Moser.

52.   Também o ritmo, mais uma vez, pontua estas salas. As paredes são cobertas de uma cor escura - mais escura que a madeira do mobiliário - e através de pequenas faixas verticais de círculos, Lino quebra a monotonia opaca do tingimento parietal, através de elegante e simples solução.

53.   As influências e semelhanças da Jugendstil e da Wiener Werkstätte no mobiliário de Raul Lino não se poderá assim caracterizar como cópia ou pastiche, mas sim como uma apropriação criativa dos referentes que foi absorvendo ao longo da sua estadia na Alemanha e em Inglaterra, adaptando-os sempre à sua Weltanschauug e às situações em que os aplica.

54.   Embora possamos afirmar, de modo facilitista, que a ligação a Wagner, Beethoven e restante cultura germano-austríaca - em particular do Jugendstil e da Werkstätte -  possa contradizer a posterior noção de uma “portugalidade” do artista, é certo que esta o influenciou no primeiro período da sua obra - de 1900 a 1920[14] - e lhe permitiu criar obras inéditas em solo português, como é o seu quarto de solteiro ou o apartamento na Avenida António Augusto de Aguiar.

55.   Embora Raul Lino tenha dito que era “muito lento em absorver ideias” (FRANÇA, 1970, p. 111), o presente artigo urge contrariar essa ideia. Lino prova-se, no seu período de formação e proposta, um arquiteto que ultrapassa o mero saudosismo dogmático ou a construção de uma “portugalidade” sufocante, abrindo a sua fruição de referentes a um espectro europeu, absolutamente contemporâneo e moderno, pejando-se de uma sensibilidade germano-austríaca em solo português.

56.   Lino demonstra que a adoção de referentes internacionais não se incompatibiliza de modo algum com a defesa da “portugalidade,”[15] utilizando mais tarde na sua obra um volkgeist germano-austríaco para potenciar a defensa do “gosto português” e da “nossa casa,” sem cair no pastiche, apropriando-se criativamente - através da sua Weltanschauug - das várias produções artísticas portuguesas anteriores e continuando, mesmo assim ,a criar obras próprias e caracteristicamente suas.

57.   Raul Lino apresenta-se assim como um exemplo de um estudo necessário, e ainda por fazer, da ligação que vários artistas e intelectuais portugueses do século XIX criaram à mentalidade germano-austríaca e aos seus resultados, sendo também contributário do estudo da compatibilidade entre a “Portugalidade” construída e a adoção de referentes internacionais, contribuindo para uma análise mais ampla, e informada, de vários conceitos latamente aplicados.

58.   Conclui-se, portanto, que tomar a obra de Lino como algo que, utilizando as palavras de Pedro Vieira de Almeida (1970, p. 120): Repropõe o problema do nacionalismo na arquitetura, e que por ela se deve recomeçar a estudar os parâmetros de um ‘estilo português’ [...] é porque não entendeu nada [...] da própria obra de Raul Lino.”

59.   Raul Lino prova-se, através de inúmeras obras, um artista que procura o desenvolvimento através do contínuo trabalhar das fórmulas várias que absorve e não um mero pastiche de exemplos anteriores, unindo e moldando-as para obter resultados inéditos, influenciadas e semelhantes à realidade austríaca que penso ser-lhe cara.

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[1] Possível desenvolvimento da questão em “Representações da Portugalidade” (Barata, Perera, 2011).

[2] Apesar da Secessão de Viena ainda hoje expor e, portanto, servir parte do seu ideal original, atribuo 1905 como a data do seu fim devido à demissão dos seus fundadores e consequente decadência.

[3] A Werkstätte será semelhante ao Arts & Crafts na esfera da produção, tendo ambos atelier próprio com vários artesãos a produzirem as obras encomendadas.

[4] Assim, através da recusa veemente da máquina, William Morris politizará esta posição para o espectro socialista, na linha do que Marx fará no primeiro volume de O Capital, quando afirma: “Like every other instrument for increasing the productivity of labour, machinery is intended to cheapen commodities [and] a means for producing surplus-value” (MARX, [1867] 1990, p. 492).

[5] Na medida da sua recusa em integrar a Academia na sua conceção artística.

[6] Albrecth Haupt doutorou-se, em 1890, com a tese Die Baukunst der Renaissance in Portugal.

[7] Merece ser mencionada a incompatibilização de Lino com o arquiteto Ventura Terra, claro defensor dos cânones beauxartianos.

[8] Esses mesmos que Manuel de Macedo criticaria retoricamente, perguntando “quem nos livra da folha de acantho?” (MACEDO, 1895)

[9] Já Alexandre Herculano seria marcado por esta ideia, transformada por si na ideia de índole nacional, como é possível constatar no seu texto de 1873, Monumentos Pátrios.

[10] À sua segunda filha Raul Lino chamará Isolda, claramente influenciado pela obra de Wagner Tristan und Isolde, de 1859.

[11] Neste caso, claramente a obra e a pessoa do tangerino Alexandre Rey Colaço.

[12] Utilizarei esta terminologia devido à sua anterior utilização na maior parte da bibliografia que analisa a obra, particular ou geral, de Raul Lino.

[13] Beethoven terá dito “Através da dor, a alegria,” frase que o seu biógrafo Romain Rolland lhe atribui, em 1903, na obra Vie de Beethoven.

[14] Pedro Vieira de Almeida (1970), no seu artigo Raul Lino: Arquitecto Moderno,  apelidará este período de “Formação e Proposta.”

[15] Enquanto valorização e recuperação dos valores tradicionalmente portugueses (cf. COSTA SANTOS, 2017).