Tinta, papel e prensa: O design gráfico na coluna Garotas do Alceu
Daniela Queiroz Campos
CAMPOS, Daniela
Queiroz. Tinta, papel e prensa: O design gráfico na coluna Garotas do Alceu. 19&20, Rio de Janeiro, v. XII, n. 2, jul./dez. 2017. https://doi.org/10.52913/19e20.xii2.04
* * *
Um mundo gráfico - o universo das Garotas do Alceu
1. O
universo das Garotas do Alceu, um universo de tinta, papel e prensa. As
polianas cuidadosamente traçadas pelo ilustrador Alceu Penna estavam inseridas em um mundo gráfico. As
“bonecas” eram arranjadas em duas páginas de formato tabloide entre título e
textos. E é esse arranjo dos elementos que constituía imageticamente a coluna
que pretendemos aqui melhor analisar. As páginas da coluna eram também um
projeto do próprio Alceu Penna, da tipografia dos títulos à distribuição entre
textos e imagens, além das cores. Um trabalho que se sobrepunha ao próprio o
ilustrador, o trabalho de Penna como artista gráfico, e quiçá como designer.
2. A
coluna Garotas do Alceu
circulou na grande revista nacional de outrora (COELHO, 2002). A revista O
Cruzeiro (1928-1975) fazia parte do “império de papel” (NETTO, 1998) criado
por Assis Chateaubriand, intitulado de Diários Associados (Morais,
1994). Iniciou sua circulação no ano de 1928 e tornou-se, em meados do século
XX, a revista de mais ampla circulação no país (ALBULQUERQUE; OUROFINO, 2005).
Suas seções de humor, fotorreportagens, contos ilustrados, páginas dedicadas à
mulher (FORNAZARI, 2001) transformaram O Cruzeiro na grande revista nacional de meados do século passado,
que fazia-se presente em inúmeros lares da classe média urbana e era
direcionada à leitura de toda a família (CARVALHO, 2001).
3. Dentre
as conhecidas colunas de O Cruzeiro, uma coluna de jovens mocinhas coloria e divertia suas
páginas: Garotas. As Garotas do Alceu estamparam as páginas em
formato tabloide do periódico de 1938 até 1964 (GONÇALO, 2004); foram editadas
semanalmente por ininterruptos 26 anos no mesmo magazine. Consistia em uma
coluna ilustrada de pin-ups (FABRES, 2012), sobre suas vidas cotidianas,
naquele Rio de Janeiro dos meados de século XX (CASTRO, 1998). Os textos eram
vinculados aos desenhos de Alceu Penna, textos estes assinados por diferentes
escritores ao longo dos anos de edição. A coluna Garotas era considerada
a “expressão da vida moderna no Brasil” (ZIRALDO, 1993).
4. Aquelas
duas páginas semanais apresentavam-se ao leitor em papel e tinta. A imagem era
produzida através da indústria gráfica, da reprodutibilidade que alcançara
750.000 exemplares semanais da revista, no auge da década de 1950. A Indústria
Gráfica O Cruzeiro S.A. que atravessou grave crise, presenciou o
crescimento editorial de sua grande rival - a revista Manchete (Netto,
1998), periódico que ocupou seu lugar nas bancas de revistas e nas casas de
brasileiros na década de 1960.
5. As
técnicas da indústria gráfica são notórias nas imagens investigadas. As rotativas
imprimiram, de forma calcográfica, os textos e imagens da coluna Garotas.
A qualidade de impressão acompanhou as transformações e as mudanças dos
processos gráficos. Modificação de maquinário, retículas fora do registro,
borrões ocasionados pela distribuição heterogênea de tinta, alteração na
qualidade do papel empregado na impressão: muitas foram as variáveis que
acompanharam a impressão da coluna durante 26 anos de circulação.
6. As
imagens analisadas tiveram um contexto de produção. Mais do que isso, tiveram
um contexto de criação e de circulação. O cenário era o Brasil de meados do
século XX e suas jovens mulheres de classe média-alta. O comportamento, os
hábitos, a moda. Os lugares de sociabilidades que se modificavam nas grandes
cidades brasileiras de outrora e com eles os hábitos daqueles que ali viviam
(KORNIS, 2005). A coluna Garotas foi produto dessa imprensa nacional e
do século XX. Suas “bonecas” e seus textos estão permeados de design, de
tendências de moda, de imprensa, de indústria gráfica, de tinta, de papel.
Elementos de tempos, ou melhor, elementos do seu tempo.
Por um
design antes do Design
7. A
história do design como campo de conhecimento é bastante recente, visto que a
própria institucionalização escolar do mesmo também o é. No Brasil, a primeira
instituição chamada de Escola Superior de Desenho Industrial data de
1960, na cidade do Rio de Janeiro. Adentrando especificamente no campo do
design, a fim de estabelecer balizas temporais, pode-se citar Rafael Cardoso
(2008), segundo o qual os primeiros ensaios sobre a história do design datam de
1920 e a aérea atingiu uma maturidade acadêmica principalmente nos últimos 20
anos. No que tange à história do design brasileiro, percebe-se um embate mais
do que teórico, um embate em decorrência da própria datação do design no país.
8. Trabalhos
como os de André Villas Boas (2007) e de Luiz Pedro de Souza (2008) colocam as
balizas temporais do design brasileiro na década de 1960, com a instituição do
ensino escolarizado. Ambos os autores dissertam sobre o início desse processo
no país e buscam definir o métier do profissional designer. Para Villas
Boas:
9.
Design
gráfico é a atividade profissional e a consequente área de conhecimento cujo
objeto é a elaboração de projetos para a reprodução por meio gráfico de peças
expressamente comunicativas. Essas peças - cartazes, páginas de revistas, capas
de livros e de produtos fonográficos, folhetos etc. - têm como suporte
geralmente o papel e como processo de produção a impressão.
10.
O design
gráfico não é a simples diagramação de uma página, embora a diagramação possa
ser ferramenta de trabalho do designer. Também não é a ilustração, embora esta
possa ser um dos elementos utilizados pelo profissional para a execução de um
projeto. (VILLAS-BOAS, 2007. p. 30)
11. Assim,
para esse autor, o design gráfico seria a junção de diferentes atividades da
produção gráfica, como a diagramação, a ilustração, a tipografia, além da
gestão de todo o processo do projeto gráfico. Um projeto gráfico promove um
trabalho com um conjunto desses elementos visuais, textuais e não-textuais. O
profissional designer seria aquele que executa e promove um projeto que ordene
e contenha ilustrações, fotografias, textos. Todavia tal métier não
inclui nenhuma dessas tarefas isoladamente, ele consiste na junção de todos
esses elementos. Sua reprodução necessariamente deve se dar por meio gráfico -
impresso e digital, haja vista o predomínio atual de meios digitais como
propagadores de informação. Villas-Boas ainda pontua que são peças do design
gráfico aquelas que têm por finalidade a comunicação através de elementos
visuais, as que trazem uma mensagem “para persuadir o observador,” vender um
produto ou “guiar uma leitura.” Pode-se, desta forma, considerar o designer um
comunicador visual.
12. Para
Haenz Gutierrez Quintana (2006), o design gráfico pode ser percebido como um
elemento de comunicação multimodal, pois no século XXI tal campo de
conhecimento vem expandindo-se e transpondo as barreiras do visual: “[...] o
termo multimodal remete à co-ocorrência de diversos modos semióticos de
representação e/ou comunicação que, dentro de um determinado texto, co-ocorrem
na construção do sentido. As modalidades podem ser: verbal (oral ou escrita),
visual, gestual, tátil, sonora, etc” (QUINTANA, 2006. p.73). No entanto, essa
colocação de Quintana faz referência a concepções mais contemporâneas do termo.
13. Pedro
Luiz Pereira de Souza (2008) situa o design como uma atividade decorrente do
processo industrial moderno, em especial do período pós-Revolução Industrial:
“A noção de consciência histórica foi a âncora do moderno e o design moderno
incorporou-a por meio do conceito de projeto e da valorização da técnica e da
indústria, do industrialismo” (SOUZA, 2008, p.19). O autor sustenta que o design
moderno constitui a tarefa de criação de bens produzidos a partir da
experiência tecnológica pós-Revolução Industrial. Defender uma suposta
autonomia histórica do design não implica vê-lo enquanto mera consequência
linear e concordante de datas, fatos e acontecimentos. Muito frequentemente, o
design situa-se no vão entre permanências e rupturas: “disciplina ou
turbulência do mercado têm sido polos extremos entre os quais se traçam os
contornos das histórias do design” (SOUZA, 2008, p.32).
14. Uma
questão bastante discutida dentro do campo da história do design é a existência
do design sem designers, ou seja, da emersão de produtos de design
anteriores à formulação histórica da atividade profissional, pelo menos
institucionalizada, do designer. André Villas-Boas (2007) é partidário da visão
da impossibilidade de se afirmar a existência de produtos de design antes mesmo
da formação do designer, não considerando apropriado o termo design sem
designers. Ele pontua a incoerência de se fazer design sem a consciência do
design, pois, segundo ele, tal acepção “[...] perde sentido diante da
constatação da atividade projetual como fundadora da própria noção de prática
do design” (VILLAS-BOAS, 2007, p.37).
15. Com
opinião diversa, Rafael Cardoso (2005) acredita no design antes do designer.
Para ele, a gênese do design brasileiro na década de 1960 trata-se de um mito:
“como todo mito trata-se de uma falsidade histórica patente. Como todo bom mito
de origem, trata-se também de uma verdade profunda, para além dos limites de nossas
vãs metodologias. O que ocorreu, sem dúvida alguma, foi uma ruptura” (CARDOSO,
2005, p.7). No país ocorre uma fissura com a institucionalização de institutos
e escolas que modificam o design. Cardoso propõe como balizas temporais a
inauguração, em 1951, do Instituto de Arte Contemporânea do Masp e a abertura,
em 1963, da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI). E, se para o autor
essas datas não fazem referência ao surgimento do design propriamente dito, com
suas atividades projetuais ligadas à produção e ao consumo em larga escala,
fazem referência ao menos, a consciência do design como ideologia, conceito - e
principalmente como profissão:
16.
Alguns
considerarão equivocada a aplicação do termo “design” a qualquer situação
anterior ao período heroico dessa gênese. Sem dúvida, há certa dose de
anacronismo em descrever como “designer” alguém que provavelmente não conhecia
o sentido da palavra e talvez nem soubesse pronunciá-la [...] o aspecto mais
problemático de afirmar o início de um design brasileiro por volta de 1960
reside na recusa a reconhecer como design tudo que veio antes. (CARDOSO, 2005,
p.7)
17. Para
Cardoso, seria inadequado deixar de pensar nas atividades projetuais
sofisticadas, com arranjado nível tecnológico e complexidade conceitual aliada
ao valor econômico utilizado para fabricação, distribuição e consumo daqueles
produtos industriais. Produtos industriais, tanto da área nomeada de “design de
produtos,” quanto da gráfica. Não obstante, a área gráfica é apontada por
muitos especialistas por ter mais elevados níveis de sofisticação e
complexidade de produtos naquele período: “Tanto do ponto de vista lógico
quanto do empírico, não nos resta dúvida que a existência de atividades ligadas
ao design antecede a aparição da figura do designer” (CARDOSO, 2008, p.22).
18. Dentre
as duas teorias defendidas, não pretende-se tomar partido, e sim posição.
Acredita-se na existência de atividades e produtos de design antes da
institucionalização escolar e do uso do termo no Brasil. Isto porque, do
contrário, concordaríamos que a história só passou a existir após a sua
institucionalização como disciplina, ou que a arte só passou a ser considerada
como tal após a institucionalização do artista. E, se André Villas-Boas não
pensa que isso possa desqualificar as atividades gráficas e de produtos
elaborados no país anteriormente a 1960, aqui acredita-se que há, sim, uma
desqualificação. Logo, Alceu Penna não enquadra-se na profissão de designer,
mas seus trabalhos - tanto na coluna estudada, Garotas, quanto nas
demais páginas de O Cruzeiro e de outras revistas projetadas por ele -
enquadram-se como produtos de design. Produtos que, antes de mais nada, a
partir de sua diagramação e de seus grides, comunicavam visualmente
moda, estética, humor e comportamento.
19. Muitos
trabalhos acadêmicos já foram produzidos tendo como fontes impressos
considerados obras de design, anteriores a década de 1960. Dentre os artistas
gráficos estudados, alguns chamam bastante atenção pela qualidade técnica e
sofisticação projetual de seus trabalhos. Um nome de destaque na imprensa
brasileira do início do século XX é o de J.
Carlos (LOREDANO, 2002). Artista responsável pelo projeto gráfico de
inúmeras revistas como O Cruzeiro, A Cigarra, Careta e O
Malho (Loredano, 2007). J. Carlos era considerado, por Alceu Penna, como
grande mestre e ilustrador.
Entre
verso e prosa - modificações da diagramação da coluna
20. A
autoria da coluna Garotas sempre esteve relacionada ao nome de seu
ilustrador: Alceu Penna. No entanto, os textos da coluna tiveram diferentes
assinaturas ao longo de seus 26 anos de circulação. Dentre os versos e prosas
contados pelas Garotas estiveram presentes muitos outros autores; foram vários,
principalmente até o ano de 1946.
21. Millôr
Fernandes, por exemplo, assina os textos da coluna em dois momentos. O primeiro
com o próprio nome Millôr e o segundo sob o pseudônimo de “Vão Gôgo.” Os textos
aparecem pela primeira vez com a assinatura de Millôr no ano de 1941. Essas
primeiras colaborações apresentaram-se de forma bastante intervalada: seu nome
era mesclado aos de Milton Brandão, Maurício Cunha, João Velho, Lyto e
principalmente ao próprio nome de Alceu Penna. A partir de 1944, Millôr
Fernandes passaria a assinar as colunas como “Vão Gôgo.” Apenas no mês de
novembro daquele ano, suas participações tornar-se-iam mais fixas e contínuas.
A partir daquele momento, seu nome nos textos se mesclaria apenas com o de
Alceu Penna.
22. Entre
1946 e 1957, os textos da coluna Garotas estiveram a cargo de “A.
Ladino,” pseudônimo de Edgar Alencar. A partir da edição de 16 de novembro de
1957 os textos passaram às mãos de “Maria Luiza,” pseudônimo de Lia Castelo
Branco, e os versos foram substituídos por prosas mais sérias e educativas. No
entanto, a modificação dos textos pouco interfere no gride da coluna ou
na configuração das ilustrações de Alceu. Todavia, se compararmos as colunas
assinadas por “A. Ladino” com as escritas por “Maria Luiza,” podemos perceber
algumas diferenciações referentes à diagramação da coluna.
23. Na Figura 1, temos a coluna O Cadillac das Garotas,
publicada na edição de 6 de março de 1957; na Figura 2,
temos a coluna intitulada Um certo “que” das Garotas, da edição
de 21 de setembro de 1957: ambas tem textos de A. Ladino. Já na Figura 3 e na Figura 4, temos
respectivamente as colunas Garotas fazem compras, de 7 de dezembro de
1957, e Garotas e o natal, de 21 de dezembro de 1957. Essas duas últimas
colunas foram assinadas por Lia Castelo Branco. As ilustrações pontualmente não
se modificam com a alteração da autoria nos textos. Por outro lado, uma mudança
gráfica na coluna pode ser facilmente percebida na diagramação, na distribuição
dos elementos pelas duas páginas.
24. As
quatro colunas datadas de 1957 estão impressas em duas folhas da revista,
dispostas em sentido horizontal. Podemos considerar que elas têm a mesma
qualidade de impressão e de papel. As páginas que contêm as colunas
apresentam-se no mesmo papel do restante da revista. Em cada uma dela,
observamos o uso predominante de alguma cor, mas a diferença na preponderância
das cores não pode ser atrelada à modificação do texto: provavelmente ela
resultou de uma escolha em virtude do tema e da própria ilustração.
25. Os
títulos pouco variam tipograficamente: a palavra “Garotas” vem em todas as
colunas em caixa alta e em letra que obedece à “tipografia moderna”[1]
[Figura 1a, Figura 2a, Figura 3a e Figura 4a]. Em contraponto, a tipografia é ornamentada
nas palavras restantes do título. Nos dois primeiros exemplo, os títulos
ocupavam apenas a parte superior de uma página na coluna, onde apenas o temo Garotas
era impressa na cor preta, sendo as outras palavras impressas em cores. Isto
ocorre no caso da coluna O Cadillac das Garotas, na cor azul [Figura 1a], e em Um certo “que” das Garotas,
na cor vermelha [Figura 2a]. Com
a mudança de autoria dos textos, os títulos passaram a ocupar a parte superior
das duas páginas da coluna, além de serem impressos na cor preta em sua
totalidade [Figura 3a e Figura 4a].
26. A
distribuição dos textos pelas páginas também modifica-se consideravelmente.
Quando em versos, os textos estavam distribuídos de forma livre, quase se
movimentavam por entre as ilustrações. Existia uma pequena introdução aos
versos, em prosa, composta de 4 linhas. O restante do texto era organizado em
forma de versos. Na Figura 1, constam
5 estrofes com 8 versos cada; na Figura 2, constam
6 estrofes, com 6 versos cada. Já quando em prosa, os textos passaram a ocupar
um lugar mais rígido na diagramação da coluna. Na Figura 3,
o texto encontra-se localizado em um retângulo de cor amarela, que ocupa a
parte inferior das duas páginas da coluna, entretanto o texto apresenta-se
compactado na página da direita. Existe uma introdução de 4 linhas, seguida por
um pequeno diálogo e um parágrafo de conclusão. Entre a introdução, o diálogo e
a conclusão, existem dois pequenos sinais em formato de estrela. Na Figura 4, a prosa também se encontra em um retângulo,
de cor azul, que ocupava as duas páginas da coluna. O texto está disposto em
apenas uma página, também a da direita. A prosa está dividida em duas colunas e
em 3 parágrafos; não constam sinais, nem diálogos.
27. A utilização
das colunas nesse ponto se deu por amostragem, para perceber as modificações na
distribuição gráfica ocorridas em virtude da mudança de formato dos textos (de
verso para prosa). As ilustrações contidas nelas também se modificam, mas isso
não ocorre em virtude das mudanças ocorridas no ano de 1957. As mudanças na
disposição e na representação das colunas apresentam-se constantes durante os
26 anos de circulação da mesma.
Borrões
- Uma somatória de experiências gráficas
28. As
folhas - agora amareladas e empoeiradas - da antiga revista fazem-nos pensar
nos avanços gráficos atravessados pela imprensa brasileira durante as últimas
décadas. Hoje, quando folheadas em arquivos, as páginas enviam-nos a um passado
que, para alguém que vive em plena “Era da Informática”, não remete ao novo,
tampouco ao moderno. A qualidade gráfica, assim como as normativas do
comportamento propagadas pela coluna, hoje, nos encaminha a coisas passadas,
por muitos consideradas superadas. Encaminha-nos, como rastro de um tempo que já
se foi. Encaminha-nos, como uma fenda, um rasgo na linha do tempo. Ao ler e
visualizar a velha revista, nos vem a ligeira impressão de que podemos penetrar
na realidade e no tempo daquelas pessoas que produziam, imprimiam, gerenciavam
e liam o periódico. Mas esta impressão é como um sopro, uma brisa refrescante
em uma tarde ensolarada de verão, que passa e causa uma sensação de aconchego
por frações de segundo. Depois da brisa, estamos mais uma vez em um arquivo,
deparados com as páginas desgastas de uma antiga revista. Páginas que
infelizmente não nos permitem atravessar a linha do tempo. Mesmo porque uma
linha do tempo sequer existe, é uma convenção - e, nos tempos de hoje, talvez
nem convenção mais o seja.
29. Mas,
se as antigas folhas de O Cruzeiro não são uma fenda, são um leve e
delicado rastro. Tão leve e delicado que quase nos seduz a nostalgia do
passado, a nostalgia dos “anos
dourados.” Passado passado (SARLO, 2005), passado presente (SARLO,
2007), passado futuro, passado reavivado quando folheado nas alhures páginas
amareladas da antiga revista. O tempo passado sobre o qual tanto escrevei
Beatriz Sarlo, intelectual argentina que debruça-se sobre as formas usadas pelo
presente de tratar a história e as formas usadas pela história para tratar o
presente.
30. Talvez,
o mais interessante seja pensar que as antigas páginas, as antigas normas de
comportamento, a antiga e “ultrapassada” técnica gráfica eram, à época,
consideradas modernas e avançadas. Modernos, avançados, pródigos tempos da
indústria gráfica, hoje por muitos avaliados como um momento superado. Contudo,
ninguém supera algo que faz parte de si. Um indivíduo não supera nem seus
avanços, nem seus traumas, são coisas que ele deve levar consigo para toda a vida.
Se não nasce, morre com essas experiências. São as únicas coisas que o sujeito
leva para a lápide: o que viveu, o que experimentou, as pegadas sobre as quais
construiu sua trilha.
31. O
mesmo se dá com as coisas: a imprensa de hoje é a somatória de todas as
imprensas anteriores. É uma somatória de borrões gráficos, uma somatória de
antigas máquinas, uma somatória de erros e acertos. Erros que, na maioria das
vezes, se fizeram e se fazem mais marcantes e com um significado mais
interessante do que os acertos. Mas a sociedade que poda qualquer tipo erro,
que, muitas vezes, parece preferir os eventuais e copiados acertos, considera
as técnicas da imprensa gráfica brasileira de meados do século XX superadas.
32. Um
passado superado, um passado que tinha a pretensão de ser quase um passado
futuro, O Cruzeiro almejava ser um “passado moderno.” Um passado que,
nossa arrogância de um tempo líquido (BAUMAN, 2001) e sublime (MARSHALL, 2007),
julgamos retrógrado e ultrapassado. No entanto, não pretendemos
visualizar, nem mesmo construir pontes que liguem a indústria gráfica de meados
do século XX com a do tempo de agora. Vamos nos ater às mudanças gráficas que
podem ser percebidas na própria coluna. As modificações nas técnicas da Industria
Gráfica O Cruzeiro são notórias. Se compararmos uma coluna de 1952 com
uma do ano 1964, visualizamos uma considerável diferença na qualidade da
impressão tanto tipográfica, quanto das imagens.
33. A fim
de perceber tais modificações, utilizaremos duas diferentes colunas de anos
distintos. As colunas aqui selecionadas obedecem às normativas gráficas do
período - não são a exceção, mas sim a regra. Para ilustrar as modificações,
utilizaremos, assim, estas duas colunas como amostragem dentro do montante de
1269 colunas pesquisadas e digitalizadas nos diferentes arquivos pesquisados.
34. A
primeira, A dança das Garotas, data de 8 de março de 1952 [Figura 5]; a segunda, Garotas no “Reveillon” de
11 de janeiro de 1964 [Figura 6]. O
texto da primeira dessas colunas apresenta-se, em sua totalidade, impresso na
cor preta. O título estampa as partes superiores das páginas, concentrando-se
principalmente no lado esquerdo. O mesmo está dividido em duas linhas: na
primeira encontramos o tema da coluna - a dança -, em letra cursiva; na segunda
linha, a palavra que dá nome à coluna, Garotas, apresenta-se com
singular destaque, em caixa alta e fonte serifada da família romana (é a
palavra com maior destaque de toda a coluna). O texto está distribuído em 11
blocos, colocados no gride da página esquerda com uma diagramação
bastante espaçada. Os blocos estão dispostos em 3 colunas: a primeira com 4
estrofes, e a segunda e a terceira com 3 estrofes cada. A letra do texto é
serifada em fonte romana. A tinta foi distribuída de forma bastante irregular.
Em algumas partes, apresenta-se em tão pequena quantidade, que torna partes do
texto quase ilegíveis; em outras, o excesso e a intensidade da tinta não possibilitam
sua total absorção pelo papel, o que ocasionou borrões em algumas letras, como
é perceptível na Figura 5a.
Todavia, a maior parte do texto encontra-se com qualidade satisfatória. Além dos
versos e do título, existem textos informando a autoria dos versos e das
imagens, localizados acima da segunda coluna de blocos. Informações como o nome
e a data da circulação da revista, localizam-se nas extremidades internas das
páginas. Os números das páginas em que circularam a coluna vêm dispostos nas
extremidades externas das duas páginas.
35. A
ilustração foi impressa através de rotogravura[2]
em offset[3],
provavelmente usando o sistema de cor pigmento[4]
CMYK[5].
A quantidade de cores que se observa na imagem, a sorte de matizes e
nuances, se dá pela sobreposição e acúmulo de retículas dos pigmentos de 4
cores: azul ciano, magenta, amarelo, preto ciano. Apesar de saturadas, as cores
mostram-se pouco vibrantes, tal fato pode ser decorrente do desgaste temporal
ou da qualidade de impressão, do papel e da tinta. O processo de impressão das
imagens - offset em rotogravura - implica a impressão por etapas. A
impressora offset é composta por chapas flexíveis e cada chapa é
utilizada para a impressão de uma cor. A impressora da Indústria Gráfica O
Cruzeiro era rotativa: o papel entrava na bobina e era impresso de maneira
giratória; cilindros conduziam tanto a tinta quanto o papel.
36. Na
ilustração da coluna de 1952, observa-se que uma ou mais cores apresentam-se
fora do registro, como se estivessem desencaixadas da imagem. Provavelmente em
alguma, etapa da impressão ocorreu irregularidade no transporte do papel de uma
cor para outra. As retículas não se encaixaram exatamente no mesmo local do
papel. Esse é um fenômeno de visível recorrência na impressão da revista O
Cruzeiro. Principalmente no início da década de 1950, é perceptível tal
irregularidade de impressão, tanto na coluna Garotas, quanto nas demais
colunas impressas em cores no mesmo periódico.
37. Como
mostra a Figura 5b, é
claro que a cor magenta estava fora do registro no momento da impressão. Na
imagem da mulher loira em destaque, percebe-se que a cor da boca está bastante
fora de seu contorno, na cor preta. A matriz vermelha apresenta-se um pouco
elevada e à esquerda dos contornos e da disposição das demais cores. No vestido
da mesma mulher, também se percebe o deslocamento da matriz: a cor magenta
transpõem os contornos do vestido. Do mesmo modo, no cabelo das duas mulheres
morenas do detalhe, nota-se o vermelho ultrapassando o contorno, misturado ao
preto para tonalizar o cabelo da cor castanha.
38. As
“polianas” traçadas por Alceu Penna ocupam as duas páginas da coluna da Figura 5. Podemos separá-las em dois diferentes blocos:
o primeiro, composto pela imagem de uma mulher e de um homem, representados de
corpo todo dançando; o segundo, formado por quatro casais ilustrados em meio
corpo. No primeiro bloco, uma mulher loira traja um vestido de saia branca e
rodada com a parte superior em “tomara-que-caia” xadrez vermelho com azul;
também existe um laço com a mesma estampa na parte traseira no vestido. O homem
veste um smoking tradicional, calça e
terno pretos e camisa da cor branca. A mulher e o homem apresentam-se
representados de lado. A imagem ocupa a maior parte da página esquerda da
coluna. No segundo bloco, quatro casais e uma mulher sozinha estão dispostos na
meia porção superior das duas páginas da coluna. Dois homens vestem terno da cor
branca e dois da cor preta. Cada mulher usa um vestido de cor diferente: verde,
vermelho, amarelo e rosa. Atrás dos casais existe uma composição na cor azul,
um pano de fundo aparentando mais casais, dando a impressão de as “bonecas”
estarem dançando em um baile.
39. Ao
visualizarmos a coluna Garotas no “Reveillon” [Figura 6]
são nítidas as alterações gráficas pelas quais a revista O Cruzeiro,
e a própria indústria gráfica brasileira, passaram no decorrer das décadas de
1950 e 1960. Iniciemos pelas letras, pelas palavras, pelo texto da coluna. Os
textos continuam impressos, no tocante à tonalidade, na cor preta. O título
estampa o canto inferior esquerdo da página esquerda, em 3 linhas, uma contendo
cada palavra. Todas as palavras foram impressas em caixa alta e em fonte
serifada da família romana. Na mesma página, logo acima do título constam as
informações de autoria de desenhos e textos, em uma letra consideravelmente
menor que a do título, também em caixa alta e em fonte serifada da família
romana. O texto da coluna propriamente dito apresenta-se na página direita. Em
um bloco único e contínuo, concentra-se em um canto interno da página. As
letras, em caixa baixa, também com fonte seriafada da família romana. A
qualidade gráfica da impressão das letras é evidente: a tinta apresenta-se
distribuída de forma bastante regular em toda a coluna e regularmente absorvida
pelo papel.
40. As
cores da ilustração da coluna apresentam-se perfeitamente encaixadas no registro.
Como se pode perceber no detalhe da Figura 6a, estas
alterações gráficas provavelmente possibilitaram o ilustrador representar muito
mais detalhamento em seus desenhos. A impressão das imagens continuava a
ocorrer a partir da rotogravura em offset, utilizando a cor pigmento no
sistema CMYK. Os desenhos podem ser subdivididos em dois blocos. O primeiro
ocupa toda a página esquerda e o canto esquerdo da página direita. Nesse bloco,
localiza-se a imagem de maior destaque da coluna, a representação de uma mulher
com o corpo de costas e o rosto de lado. A mulher tem os cabelos curtos, lisos
e loiros, com a parte da frente levemente penteada para trás. No rosto em
perfil, destacam-se os longos cílios. O nariz é pequeno e delicado. A boca, bem
delineada, está pintada de um tom levemente rosado. A figura apresenta-se em
meio corpo e veste um top branco,
provavelmente a parte superior de um vestido, com detalhe em flores e com laço
no decote das costas. A mulher apoia-se em uma imagem masculina, dando a
impressão de estarem dançando. O homem, de cabelos da cor castanha, veste um
traje social preto e camisa branca.
41. As
seis colunas utilizadas como exemplo neste item obedecem à norma geral de
circulação. Duas páginas, cada uma em formato tabloide do periódico, com 26 por
33 centímetros, ocupando a coluna, assim, a área total de 52 por 66
centímetros. Foram impressas na forma horizontal. Mas essa forma de
apresentação da coluna não era uma regra. Foram feitas algumas tentativas de
modificar esta apresentação, são evidenciadas a partir de 1958, ano a partir do
qual a coluna ensaiaria outras formas de apresentação como a impressa
verticalmente em duas páginas.
42. Do
total de 1269 colunas catalogadas, 126 foram impressas ocupando verticalmente
os espaços reservados da coluna; destas, 112 ocupavam as duas páginas [Figura 7] e apenas 14 apenas uma [Figura 8].
O restante das colunas apresentava-se da forma tradicional, impressas
horizontalmente em duas páginas.
Páginas
em tinta, papel e prensa
43. As
páginas da revista O Cruzeiro permitem-nos perceber as translações
vividas e passadas pela indústria gráfica brasileira de meados do século XX. À
primeira vista, podem-nos parecer variações mínimas; não obstante, se
observadas com maior cautela, tais alterações apresentam-se de singular
importância. Aquelas páginas nos falam do seu tempo, da sua opinião pública, da
política, da economia, do comportamento e dos sonhos daqueles que as produziam
e daqueles que as liam. Contam-nos como a informação circulava nos tempos de
outrora, como eram impressas e diagramadas as páginas das revistas daquele
tempo. A revista das Garotas assistiu às alterações gráficas passadas
pela indústria brasileira dos “anos
dourados,” bem como participou delas. “Foi nas páginas de O
Cruzeiro que as imagens começaram a ganhar um destaque, antes, só reservado
ao texto [...]” (MELLO, 2006, p.100). Foi naquelas páginas que milhares de
homens e mulheres viram a indústria gráfica do país se alterar e se
transformar, muito provavelmente sem se darem conta à época. E as “bonecas”
traçadas e coloridas por Alceu Penna viram e participaram ativamente de tais
transformações. As transformações de um mundo gráfico do qual elas faziam
parte; de um mundo que, tão alterado e transformado, não reservou lugar para as
divertidas “bonecas” de Alceu. Não reservou lugar sequer para a famosa e
renomada revista O Cruzeiro. Às Garotas e ao O Cruzeiro
restou o mundo do acervo, um mundo de uma porção páginas amareladas e
empoeiradas.
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______________________________
[1] O termo “tipografia
moderna” aqui é utilizado com base na Nova
Tipografia, termo cunhado por László Moholy-Nagy no catálogo de exposição
da Bauhaus em 1923, devido à introdução do Movimento Moderno gráfico. Ver:
TSCHICHOLD, Jan. Tipografia elementar. São Paulo: Altamira Editorial, 2007,
p. 37.
[2] Rotogravura é um
sistema de impressão direta. Seu nome faz referência aos cilindros utilizados
para a colocação das matrizes flexíveis, as chapas de impressão. O princípio
utilizado pela impressora é rotativo.
[3] Offset é um tipo de impressão utilizado em larga escala,
principalmente para as grandes e volumosas tiragens.
[4] O sistema cor pigmento
é utilizado para a obtenção das mais diferentes colorações através da mistura
de quatro cores, ciano, magenta, amarelo e preto.
[5] Sigla na língua inglesa:
CMYK, as letras fazem referência direta às cores ciano (Cyan), magenta
(Magenta), amarelo (Yellow) e preto (Black - Key).