Considerações sobre o Revivalismo Gótico na Arquitetura do Rio de Janeiro do Século XIX

Doralice Duque Sobral Filha

SOBRAL FILHA, Doralice Duque. Considerações sobre o Revivalismo Gótico na Arquitetura do Rio de Janeiro do Século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIII, n. 1, jan.-jun. 2018. https://doi.org/10.52913/19e20.xiii1.05

* * *

1.      Segundo Del Brenna (1987, p. 30-32), o surgimento do gótico na arquitetura carioca deu-se no início do século XIX, na primeira reforma do Palácio de São Cristóvão.  A reforma feita pelo pedreiro inglês John Johnston transformou a antiga chácara em um palácio no estilo neogótico-mourisco, que posteriormente foi totalmente reformulado, após a volta de D. João VI a Portugal, para o estilo neoclássico ou classicista.

2.      Segundo a historiografia, não houve nenhuma construção civil gótica, de caráter monumental, construída na capital do Império na primeira metade do século.  Os profissionais atuantes na cidade do Rio de Janeiro, advindos do ensino das Belas Artes ou da Academia Militar, rejeitaram a nova tendência em voga na Europa.

3.      Um dos primeiros acadêmicos a tocar no assunto do gótico foi Manoel de Araújo Porto-Alegre, na Revista Minerva Braziliense; no entanto, nenhuma obra sua foi concebida nesse estilo.  Somente na segunda metade do século, especialmente a partir de 1870, viriam a surgir construções neogóticas na cidade do Rio de Janeiro.

4.      Uma das primeiras utilizações do estilo gótico na arquitetura oitocentista foi nas torres da Igreja do Santíssimo Sacramento, cuja obra foi do arquiteto Francisco Joaquim Bethencourt da Silva.  A igreja oitocentista teve seu projeto iniciado em 1816, segundo preceitos clássicos vigentes (FERREIRA, 1885, p. 311; ALVIM, 1999, p. 300), tendo trabalhado na sua construção o arquiteto João da Silva Muniz, que a concluiu em 1859.  Porém, ficou inacabada toda a parte das duas torres, sendo a primeira delas concluída em 1871 e a segunda em 1875 (ALVIM, 1999, p. 300), quando Bethencourt as projeta e executa.[1]

5.      Felix Ferreira foi um dos críticos de arte que, na época, escreveu sobre as torres da igreja [Figura 1], apontando-as como “um dos trabalhos mais árduos do arquiteto, em que se prontuou a estudar e se esmerar com todo o seu talento” (FERREIRA, 1885, p. 310).  No entanto, o autor coloca que, apesar disso, foi um dos trabalhos que passaram despercebidos, do qual poucos se lembravam: “Nenhum lhe valeu tamanho e tão ingrato esquecimento como o delineamento e direção das torres da igreja Matriz do Sacramento” (FERREIRA, 1885, p. 310).[2]  De fato, na época de inauguração das torres da igreja, outro projeto neogótico estava sendo construído na capital carioca: o prédio da Tipografia Nacional, obra do engenheiro politécnico Antônio de Paula Freitas, que havia alcançado grande repercussão pública e da qual falaremos mais adiante. 

6.      Bethencourt expôs o projeto das torres do Santíssimo na XXV Exposição Geral de 1879 da Academia Imperial de Belas Artes, obtendo somente menção honrosa.  Nele, segundo Ferreira, Bethencourt “estampou o mais bello cunho de seu gênio e deu o mais eloqüente documento do saber em architectura” (FERREIRA, 1885, p. 310).

7.      Apesar de não ser um projeto institucional (de maior valor, por ser obra pública), as igrejas tinham grande importância - social e cultural - na paisagem carioca.  A igreja do Sacramento é de uma arquitetura sóbria, com elementos classicizantes da ordem dórica, aspectos formais bem proporcionados, além de um excelente trabalho de cantaria (ALVIM, 1999). [Figura 2]

8.      Bethencourt projetou as torres em forma de agulhas, “as ogivais”[3] como ficaram conhecidas, fazendo menção à arquitetura gótica.  Apesar de ela possuir características comuns com igrejas cariocas setecentistas, Bethencourt preferiu quebrar a monotonia das torres, que eram sempre terminadas por pequenas cúpulas ou coruchéus, adotando outro modelo no seu projeto.  A grande dificuldade, no entanto, foi de harmonizar dois estilos diferentes, o “dórico romano” e o “ogival.”  Ao fazer a junção desses diferentes estilos, Ferreira (1885, p. 312) compara o arquiteto a Brunelleschi, em relação à construção da cúpula de Catedral de Santa Maria del Fiore, no início do chamado Renascimento Italiano.

9.      Para o período em questão, segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro, onde não havia ainda obras religiosas de grande porte utilizando o revivalismo gótico,[4] a atitude de Bethencourt só poderia ter sido considerada herética, especialmente por trabalhar no mesmo projeto dois estilos tão diferentes. Segundo Felix Ferreira, Bethencourt tanto simplificou o estilo gótico (ou ogival, como é descrito na época) empregado nas torres, que conseguiu aproximar e harmonizar os dois estilos na igreja sem deixar de distingui-los.

10.    Em estudo recente, Rocha-Peixoto (2004, p. 500) coloca que “se por um lado, a esbeltez exaltada das agulhas foge das proporções clássicas habituais e lembra a verticalidade característica do gótico, um exame das suas características estilísticas não corrobora a classificação.”  O autor coloca que Bethencourt poderia ter buscado inspiração no Chafariz do largo do Paço [Figura 3] e nas pirâmides do Passeio Público, obras setecentistas de Mestre Valentim.

11.    No entanto, podemos observar, segundo o artigo publicado em 1914 pelo arquiteto João Ludovico Berna [Figura 4], discípulo do arquiteto na Academia Imperial de Belas Artes, que nesse projeto Bethencourt da Silva realmente se referenciou no gótico, ou estudou o estilo aplicado a alguns exemplares existentes na arquitetura colonial da cidade.  Segundo Berna:

12.                                  Em uma capital como a nossa, onde o povo só admirava edificios inspirados nas cinco ordens do Vinhola, ou nos templos do culto catholico, cujas torres tem como arremates cúpulas grotescas, de estilo barroco jesuítico, foi realmente arrojo querer conjugar do estylo gothico normando com as pilastras do estylo clássico. Bethencourt da Silva atirou-se, sem vacilar, a dificil solução do problema e resolveu-o. Eil-o, patente, em praça pública.

13.                                  O perfil das torres da egreja do Sacramento dão a ilusão perfeita das obras dos architetos do século XII, obra conhecida pela denominação de gothico lanceolado, ou da primeira época, em que os artistas de meia edade não haviam cogitado de decorarem as linhas architectonicas das cathedrais por meio de florões, folhagens e symbolos do apocalypse.[5]

14.    A simplificação total do estilo (FERREIRA, 1885), ou mesmo a falta dele (ROCHA-PEIXOTO, 2004), talvez fosse um artifício utilizado pelo arquiteto para gerar uma inovação ou mesmo uma mistura de estilos no sentido da parataxia, ou seja, a disposição das coisas lado a lado (COLQUHOUN, 2004, p. 44)[6]. A preferência pelo gótico do século XII,  por parte dos arquitetos do século XIX, foi comum também dentro da Académie des Beaux Arts francesa.  Os trabalhos apresentados dentro daquela academia ainda na primeira metade do século XIX já demonstravam uma atitude mais eclética frente à tendência predominantemente neoclássica. Podemos observar isso no projeto do acadêmico Gabriel Davioud (1823-1881) para uma igreja, que foi vencedor do Concours d'émulation de 1845 [Figura 5]. Segundo Van Zanten (1977, p. 187), “a igreja de Davidoud foi um dos primeiros projetos vencedores de prêmio realizado por um aluno dos ateliês Românticos vinculados à Academia, nesse caso o ateliê de Léon Vaudoyer. Isso também demonstra um novo interesse pela arquitetura medieval, através de um tratamento ousado e eclético que reflete controvérsia contemporânea sobre o desenvolvimento de um estilo gótico oitocentista na França.”[7]

15.    Colquhoun (2004, p. 44) afirma que a imitação medieval nas construções agradava aos românticos, dava margem a um alto grau de liberdade “paratáxica;” sustenta ainda que, embora, à primeira vista, incompatível com a visão de totalidade orgânica preconizada pela estética romântica, “a superfície fragmentária e aparentemente desordenada de uma obra de arte, longe de indicar a falta de unidade orgânica, era, na verdade, um sinal da mais profunda unidade, que escapava à análise por surgir das profundezas da mente do artista” (2004, p. 45). Para Tzonis e Lefaivre (1986, p. 244), a utilização de um esquema paratáxico “é mais permissivo e mais tolerante do que qualquer um dos esquemas de ordem formal do classicismo,” que parte da liberdade criativa e intelectual do artista.

16.    A relação do ecletismo com a fase de liberdade e de propostas artísticas diferenciadas é intrínseca a um momento de ruptura com os modelos greco-romanos.  Sobre o significado do estilo eclético, Jean-Pierre Épron afirma que o “Ecletismo é um processo, uma atitude mental, uma capacidade de foco, uma tendência a não submeter sua ação a qualquer dogma; é uma busca apaixonada e paciente da verdade, por meio das múltiplas verdades possíveis, da busca de uma beleza, sem outro guia que não sejam outros argumentos sobre ela; uma exigência, por fim, à utilidade prática de ação e escolha.”[9]

17.    Durante quase toda metade do século XIX, foi comum, em diversas cidades europeias, o “revival” gótico ou neogótico, como busca de raízes culturais ou de um estilo nacional, pelos arquitetos e engenheiros (PATETTA, 1987, p. 12).  O historicismo - ou arquitetura revivalista - proveniente da democratização dos estilos do passado durante finais do século XVIII e início dos XIX, tinha como finalidade reviver fielmente os modelos antigos, mesmo fazendo uso de novos materiais e técnicas construtivas arrojadas para época.

18.    Segundo Epron (1997) e Collins (1970), os arquitetos historicistas buscavam na história um vocabulário arquitetônico que imprimisse ao edifício uma postura política ou religiosa.  Já a arquitetura eclética, que se baseava na mistura dos estilos, evocava uma constante inquietude intelectual (PATETTA, 1987, p. 12), em que os arquitetos se utilizavam dos estilos históricos não para transmitir uma ideia ou um princípio, mas sim para permitir a inscrição do seu próprio projeto no quadro da história da arquitetura.

19.    Colquhoun (2004, p. 29) também coloca que, ao se representar um período histórico, o pensamento sobre o campo da própria história estaria claramente retornando a uma prática eclética de arte e que, no entanto, o ecletismo a priori nunca rompeu seus laços com a tradição clássica.  Segundo o autor, o ecletismo “meramente qualificara essa tradição com exemplos de outros estilos, ora utilizando esses estilos para dar variedade aos temas clássicos, ora utilizando-os para purificar a noção do classicismo” (COLQUHOUN, 2004, p. 29).  Pateta (1987, p. 10) reafirma que “o ecletismo é a expressão da arte e da arquitetura que se segue ao neoclassicismo.”

20.    Nesse sentido, podemos concluir que Bethencourt da Silva não fez uso do historicismo, mas sim foi eclético no seu procedimento intelectual e projetivo, ao utilizar numa mesma construção dois estilos diferentes, combinados de forma criteriosa para uma composição harmoniosa.  A atitude experimental de Bethencourt da Silva foi pioneira e o separa, de certa forma, dos conceitos neoclássicos trazidos por seu mestre Grandjean de Montigny ou, segundo Rocha-Peixoto (2004), do “classicismo habitual” dos alunos do mestre francês.

21.    Voltando ao projeto da Igreja do Santíssimo, segundo Felix Ferreira, o arquiteto não projetou somente as agulhas e as torres, mas também a fachada recebeu sua intervenção.

22.                                  Ainda que despidas de ornamentação própria do estylo, as agulhas ficaram tão elegantes e graciosas, que, empobrecendo o pórtico do templo, prejudicavam a harmonia que suavisa a alliança entre tão oppostas architecturas; para remover esse senão, o architecto praticou dous grandes nichos nos apainelados de cantaria que ficam aos lados da porta; converteu também em nicho uma janela isolada com que terminava o frontão; cortou umas pontas que se levantam sobre as quartelas, para collocar nessas as estátuas da Caridade e da Esperança, no nicho superior a da Fé, e nos inferiores as de S. João e S. Lucas, os dous apóstolos que mais escreveram sobre o Sacramento. (FERREIRA, 1885, p. 315)

23.    A leveza e a verticalidade alcançadas pelas agulhas tornaram-se um dos marcos da produção arquitetônica de Bethencourt da Silva.  Segundo Felix Ferreira, nenhum operário, quer pedreiro, quer canteiro, havia antes realizado esse tipo de empreitada.  Toda ornamentação em pedra foi moldada em gesso no tamanho natural, no canteiro de obras, assim como os ajustes da inclinação da pirâmide foram também estudados matematicamente in loco, utilizando tábuas de madeira para dar o melhor resultado de execução.

24.    As agulhas das torres projetadas por Bethencourt possuem a base piramidal octogonal semi regular.  A base piramidal foi mais comum nas igrejas góticas do século XI e XII, ainda sob influência do estilo românico. Viollet-le-Duc, no seu Dictionnaire Raisonné,[10] explica os tipos de flechas utilizadas na arquitetura medieval e coloca as de bases circular e piramidal octogonal como exemplos mais comuns [Figura 6]. Possivelmente, Bethencourt da Silva fez uma leitura do Dictionnaire no seu projeto, tendo em vista as proporções parecidas das agulhas da igreja com o exemplo da flecha de Viollet-le-Duc [Figura 7].

25.    No Rio de Janeiro, a grande referência de igreja anterior ao século XIX cuja torre era terminada em pirâmide era o Mosteiro de São Bento (1617-1690), cujo acabamento das torres e coruchéus esféricos remetem ao maneirismo português (ALVIM, 1999).  Vale salientar que somente a partir de 1870 é que diversas igrejas cariocas passaram a utilizar as torres arrematadas por agulhas de base piramidal, principalmente como acréscimos posteriores à data da construção original, como aconteceu na Igreja de N. S. da Penha, Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge, Matriz de N. S. da Glória, etc. [Figura 8].

26.    Diversos elementos utilizados na torre e nas agulhas do Santíssimo são recorrentes da arquitetura colonial carioca: terraço com balaustradas clássicas, óculos ovais, molduras em cantaria, rosáceas, florões etc. Toda construção foi executada em alvenaria de pedra, observando-se alvenaria de tijolo apenas nas aberturas.  Bethencourt da Silva não utilizou materiais de construção novos, como o ferro, talvez para não encarecer o projeto, tendo em vista os poucos recursos de que dispunha a irmandade.  As paredes externas foram revestidas de pedra lioz, contrastando com os relevos mais escuros do gneiss bege - comum nas igrejas setecentistas -, evidenciando uma preocupação com a policromia.

27.    O experimentalismo de Bethencourt da Silva, nesse projeto, demonstra uma busca por um repertório arquitetônico condizente com o antigo projeto do Santíssimo, do início do século, e demais construções coloniais cariocas.  No entanto, ele possivelmente adotou o estilo gótico pela sua necessidade em registrar para a posteridade as tendências do seu tempo.  O experimentalismo da arquitetura de Bethencourt da Silva nos anos de 1870 haveria de visar também, além da simples inovação sobre os modelos clássicos, a constituição de um novo estilo que seria naturalmente brasileiro pelo simples motivo de haver nascido no Brasil.[11]

28.    Se observarmos o seu projeto para a Igreja da Matriz de São João Batista, de 1876, a adoção pelo estilo mais próximo das igrejas coloniais de influência portuguesa fundamenta-se apenas na busca de uma arquitetura de identidade nacional.  Segundo Rocha-Peixoto, a Matriz dialoga com as igrejas da Candelária e de Santa Cruz dos Militares e, a nosso ver, também se aproxima com a sua contemporânea Igreja de São Francisco Xavier, reconstruída em 1869 [Figura 9].

29.    Dentre os projetos neogóticos realizados pelo engenheiro, o edifício para a Tipografia Nacional de Antônio de Paula Freitas, construído entre 1872-1874 [Figura 10], teve grande importância na cultura arquitetônica carioca do período.  O edifício foi o primeiro prédio público que foge à estética classicista e vai buscar no revivalismo gótico a ideia de caráter para a edificação.

30.    Segundo o próprio Paula Freitas, a escolha do tipo “gótico inglês” para a fachada do seu edifício não foi aleatória, já que estava de acordo com a história da criação das tipografias na Europa. O "gótico inglês" teve origem no momento em que o gótico era o estilo dominante; a Inglaterra, referência por ser a potência industrial mais importante do período, era admirada pelos engenheiros politécnicos. Esse paralelo entre a história e a construção com explicação ordenada e criteriosa da edificação viria a ser um fator comum, entre os engenheiros vinculados especialmente, às revistas de engenharia e ao Instituto Politécnico.

31.    Muitos programas, desenvolvidos no século XIX e que não faziam parte do panorama da arquitetura ocidental adotaram estilos consagrados como forma de representação tipológica. Segundo Picon (apud SALGUEIRO, 2001, p. 87), para os engenheiros, o abandono de uma exigência da poesia arquitetural em nome de uma tipologia dos equipamentos associados às novas técnicas construtivas levou a invenção formal para uma posição secundária.

32.    No caso da Tipografia Brasileira, como edificação monumental que era, não foi diferente.  No entanto, um dos critérios que Paula Freitas levanta no seu projeto, está relacionado à questão do nacional.  Ela foi resolvida num discurso a favor da utilização de materiais construtivos nacionais, feito pelo engenheiro na própria descrição do seu edifício. Em planta [Figura 11], observam-se ainda as lições de J. N. L Durand, cujo método foi bastante usual nos projetos dos engenheiros e arquitetos.

33.    A busca de uma raiz ideal comum no mundo ocidental submeteu o gótico como fonte de expressão de modernidade e de conhecimento; assim também os temas mitológicos e medievais tornaram-se frutos de uma ideia de origem comum.  A valorização do gótico na arquitetura do século XIX, por exemplo, representou não apenas o sentimento popular, mas a variedade e a riqueza na decoração, a complexidade estrutural, o alto nível da técnica empreendida pelos artesãos locais e o objeto como produto de várias gerações que perpassam a história das comunidades. Zanini (2008, p. 191) salienta que:

34.                                  Motivações de ordem nacionalista foram primordiais nesse reaproveitamento de uma expressão antepassada e na redescoberta de monumentos prestigiosos e de cidades que haviam conservado a aura medieval. Além do Gótico, outros elementos de estilo, da Idade Média e da Renascença, foram absorvidos por uma nação que procurava símbolos e razões para a sua afirmação no presente.

35.    Nessa mesma década, no Rio de Janeiro, dois grandes projetos nos quais se utilizou do revivalismo gótico foram os da Escola São José e do Gabinete Português de Leitura. Segundo Del Brenna (1987, p. 44), a “enfeitadíssima fachada” da Escola tinha como características o estilo manuelino - dissidente do gótico em Portugal -, sendo que o nome do arquiteto foi omitido.

36.    Não podemos atribuir a autoria do projeto à Bethencourt; entretanto, cabe ressaltar que, nesse período, ele estava encarregado de várias obras na cidade do Rio de Janeiro e fora dela, como arquiteto da cidade e arquiteto das obras imperiais.  O Gabinete Português, porém, teve uma proposta de projeto elaborada pelo arquiteto [Figura 12], que, embora não executado, demonstrou uma ligação com a comunidade portuguesa que vivia na capital carioca.

37.    No tocante à produção arquitetônica dos demais profissionais do período, o neogótico foi empregado nos projetos de igrejas cariocas especialmente na década de 1880.  Como exemplos, podemos citar: o Templo Metodista de 1881-1886, cujo projeto foi do construtor italiano Antônio Januzzi, e a Capela do Hospício de N. S. da Saúde, de Ernesto da Cunha Araújo Viana [Figura 13].  Esse último publicou na Revista dos Constructores, de agosto de 1889, a descrição do seu projeto. Fora da cidade do Rio de Janeiro, em Petrópolis, outra construção neogótica ficaria conhecida: a Catedral de Petrópolis, cujo projeto foi de Francisco Caminhoá.[12]

38.    Nas descrições do edifício, a fachada e a torre do projeto de Araújo Viana para a Capela de N. S. da Saúde são consideradas como novidade em relação às construções religiosas existentes no Rio de Janeiro.  Segundo as informações publicadas nos jornais: “Trata-se de uma composição ogival com feição geral da architectura do século XIII, em que a ornamentação mathemática era preferida, gozando de grande emprego e combinação de figuras geométricas.”[13]  Podemos notar que a busca pela simplicidade das formas, dentro de um víes racionalista, fez com que o engenheiro trabalhasse com o revivalismo gótico, especialmente o gótico inglês.  Cabe salientar que os engenheiros, racionalistas por formação, buscaram em alguns estilos particulares uma forma de denotar a função do edifício.

39.    A capela foi construída quando o engenheiro era responsável pelas obras da Santa Casa de Misericórdia, cargo anteriormente assumido por Bethencourt da Silva.  Araújo Viana fora incumbido da reforma da antiga capela, a qual, devido ao estado precário da construção, acabou decidindo pela necessidade de reconstruí-la.  Não há indícios de como era a construção anteriormente, apenas a descrição sobre a adoção do estilo para o projeto. Toda a explicação sobre a Igreja foi baseada e justificada no uso dos materiais construtivos nacionais e técnicas construtivas novas.

40.                                  A capela apresenta um aspecto exterior de monumento pela severidade das molduras e mais ornamentação de cimento.

41.                                  No espaço limitado para a fachada, o engenheiro conseguiu dar movimento necessário. Assim figurou pelo emprego de cordões e pilastras terminadas por pontas góthicas, a existência de três corpos, sendo mais largo e mais largo o do centro, limitado por pilastras com agulhas mais elevadas que ficam de cada lado do frontão triangular encimado por uma elegante cruz de ferro, pintada cor de cimento. Uma platibanda ogival de cimento forma a parte superior dos três corpos ligando-se entre si e a torre.[14]

42.    A preocupação com os materiais de construção empregados no projeto (cimento, tijolo, madeiras) foi uma característica comum dos engenheiros brasileiros do período.  A ênfase é dada principalmente à matéria prima nacional: o granito, a madeira etc., e às empresas executoras regionais. Dessa forma, podemos concluir, mais uma vez, que foi no sentido técnico e científico que o nacional foi visto pelos engenheiros.  As questões formais da composição eram, por sua vez, baseadas na história dos estilos arquitetônicos e em fundamentados critérios de conveniência e economia.

43.    Segundo Collins (1970, p. 211), a valorização dos exemplares medievais no século XIX esteve relacionada a expressão honesta dos materiais e do sistema construtivo.  Os engenheiros e arquitetos do período consideravam, de certa maneira, que essas formas arquitetônicas procediam de princípios racionais. Collins (1970, p. 211) também salienta que muitas construções que pareciam ser simples exemplos de historicismo, são, na verdade, tentativas de pôr em prática as idéias racionalistas.

44.    No tocante às referencias estilísticas, Araújo Viana publica em um artigo para Revista dos Constructores a situação da arquitetura do século XIX.  Nele, o engenheiro retrata o esgotamento da arquitetura greco-romana, o surgimento do ecletismo e as vantagens da tecnologia e do conhecimento dos estilos na dinâmica projetual dos arquitetos. Segundo Viana:

45.                                  Houve um tempo em que a architectura não progredio, apesar do movimento romântico que revolucionou a pintura, a esculptura e a poesia. O grande sopro lyrico que animou as almas não somente na França, mas também na Inglaterra e na Alemanha, penetrou egualmente nos estudos históricos. [...]

46.                                  A sciencia archeologica e a critica apaixonam-se pelos objetos e comprehendem que o estudo dos costumes, das armas, dos moveis, dos utensis devem singularmente esclarecer o estudo da existencia daquelles, que delles se serviram. Entre esses objetos as obras de architectura estão em primeiro lugar. Nos enthusiasmam então as velhas egrejas romanas, as velhas fortalezas feudais em ruinas, as magestosas catedrais gothicas, e vemos que os vitrais, as estátuas os baixos-relevos são um thesouro inexgotavel de preciosas informações.

47.                                   [...]

48.                                  Seria pouco interessante e muito longo citar os edificios restaurados na Europa, recordemos simplesmente Notre Dame de Pariz, porque considerada como um modelo de architectura da idade media, nella executaram trabalhos dignos de admiração os notaveis architectos, Lassus e Viollet-le-Duc.

49.                             Não houve exclusivismo para a architectura da idade media, não tem sido esquecida nem a antiguidade nem o renascimento...

50.                             Essa simultaneidade, essa imparcialidade de investigações produz um ecletismo architectural que se manifesta pela construção de edificios de todos os typos.

51.                                   [...]

52.                                  Alguns espíritos descontentes fazem uma censura aos architectos de nossa epoca de não haver nenhum estylo particular. Porem restaurar as obras do passado com respeito e fidelidade, e, para uma obra nova tomar nos estylos conhecidos o que for mais apropriado ao fim e a collocação do edificio que se constroe, é dar prova de grande inteligencia e de um grande sentimento esthetico![15]

53.    O gótico, para os engenheiros, foi uma atitude revivalista ou historicista e tinha como principal necessidade a busca por uma arquitetura moderna, condizente com os novos materiais e com as pesquisas científicas.  Nesse sentido, inscrever a nova arquitetura numa roupagem antiga é plausível desde que sirva como emblema de atitude científica e tecnológica.

54.    A valorização do estilo gótico, por parte dos engenheiros, deu-se especialmente pelo aspecto estrutural que ele detém.  Viollet-le-Duc foi um dos principais porta-vozes dos princípios estruturais da arquitetura gótica.  Segundo Collins (1970, p. 219), Viollet-le-Duc, na base de seus princípios, especulou sobre a natureza de uma arquitetura própria para o seu tempo; porém, diferentemente de muitos historicistas góticos, não somente aceitou o ferro fundido, mas também afirmou que somente utilizando os novos materiais estruturais que se poderia evoluir para uma arquitetura nova:

55.                                  Lo repetimos, la construccion gótica, a pesar de sus defectos, sus errores, sus investigaciones y tal vez a causa precisamente de todo esto, es um tema de estúdio eminentemente útil; es la iniciación más segura para ese arte moderno que no existe todavía, pero que busca su próprio camino porque ella pone los verdaderos princípios a los que todavía seguir sujetos; porque roto con lãs antiguas tradiciones; porque es fecunda em aplicaciones.[16]

56.    O estudo do gótico pelos engenheiros possivelmente deu-se por meio dos livros de Viollet-le-Duc[17] e se firmou numa tentativa de se criar uma arquitetura condizente com a nova realidade tecnológica e com os aspectos científicos, evidenciando a simplicidade das formas.  O arquiteto francês foi muito citado em diversos artigos publicados na Revista dos Constructores, como podemos observar no texto abaixo, do engenheiro Rodolpho Pao Brasil, cujo título Architectura gótica no Brazil e Portugal foi parte de uma conferência por ele proferida, em 1888, no Instituto Polytécnico:

57.                                  O meu guia, neste penoso trabalho de desaterro archeológico, é, na Persia, no célebre explorador do Iran, o engenheiro Diculafoy, na Syria Central, o conde Melchior del Vogae, famoso antiquario e autor da Architecture civile et religieuse de la Syrie Centrale du IVe au VIIe siècle, e, na França o immortal Viollet-le-Duc, ao mesmo tempo eminente architecto e archeologo, autor do Dictionnaire raisonné de l'architecture française.[18]

58.    A popularização do estilo gótico fez surgir diversas construções neogóticas e neomanuelinas na arquitetura civil carioca.  Igrejas e diversas residências mostravam uma roupagem diferenciada dos modelos da primeira metade do século no Rio de Janeiro.  A diversidade de ornamentação e as características peculiares do gótico, revividas em diversos programas, fizeram do historicismo um dos principais argumentos de modernidade para as construções da cidade.

59.    Dadas as diferenças entre historicismo e ecletismo levantadas desde a construção das torres do Santíssimo Sacramento, podemos concluir que, na década de 1870, não houve, por parte dos engenheiros, no ato de projetar, uma atitude eclética e sim historicista, dentro de um pensamento racionalista no tocante à adoção das formas simplificadas da composição gótica.

60.    No entanto, é importante colocar que, em relação aos materiais de construção nacionais, os primeiros apontamentos sobre o tema foram de fato dos engenheiros brasileiros, sendo esses materiais aplicados por eles nos projetos executados na cidade do Rio de Janeiro.  Embora Bethencourt tenha se utilizado em quase todos os seus projetos do granito carioca das madeiras nacionais e dos empreiteiros locais, os engenheiros foram os que angariaram o discurso em prol do uso quase que exclusivo dos materiais nacionais nas obras públicas da capital carioca.[19]

61.    No tocante à atitude eclética de Bethencourt, ela não se limitou somente às torres da Igreja do Santíssimo Sacramento.  No seu projeto institucional para a escola da Freguesia de N. S. da Glória, podemos evidenciar diversas nuances estilísticas diferenciadas, o que faz corroborar o fato, de que essa é uma das primeiras obras públicas - e da capital - onde o estilo eclético foi adotado criteriosamente, introduzindo na paisagem carioca uma nova fase para a cultura arquitetônica local.

Referências bibliográficas

ALVIM, Sandra Poleshuck de Faria. Architeture Religieuse Coloniale a Rio de Janeiro: Une Methodologie d’etude. Paris: Tese de Doutorado apresentado à Universidade de Paris - Sorbonne, 1991. Vol. I-VII.

ALVIM, Sandra Poleshuck de Faria. Arquitetura religiosa no Rio de Janeiro. vol. 2. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.

AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. O Rio de Janeiro: sua historia, monumentos, homens notáveis. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora B. L. Garnier, 1877.

COLLINS, Peter. Los ideales de la arquitectura moderna: su evolucion (1750-1950). Barcelona, Gustavo Gili, 1970.

COLQUHOUN, Alan. Modernidade e Tradição Clássica - ensaios sobre arquitetura. Tradução Christiane Brito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

CZAJKOWSKI, Jorge. Guia da arquitetura colonial, neoclássica e romântica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Prefeitura do Rio de Janeiro, 2000.

DEL BRENNA, Giovanna Rosso. In: FABRIS, Annateresa (org.) Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp, 1987, p. 28-67.

ÉPRON, Jean-Pierrs. Comprendre L’Ecletism. Paris: Éditions Norma, 1997.

FERREIRA, Felix. Bethencourt da Silva: Perfil Artístico. Rio de Janeiro: Typ. Academica, 1875.

FERREIRA, Felix. Bellas Artes: estudos e apreciações. Rio de Janeiro: Typ. Academica, 1885.

PATETTA, Luciano. Considerações sobre o ecletismo na Europa. In: FABRIS, Annateresa (org.) Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp, 1987, p. 8-27.

ROCHA-PEIXOTO, Gustavo. Arquitetos do Brasil Imperial: A obra arquitetônica dos primeiros alunos da Academia Imperial de Belas Artes. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ, 2004.

SALGUEIRO, Heliana Angoti (org). Cidades Capitais do Século XIX. São Paulo: Edusp, 2001.

SOLÁ-MORALES, Ignasi. Ecletismo y Vanguardia. Barcelona: Gustavo Gili, 2004.

SZAMBIEN, Werner. Symétrie Goût Caractere. Paris, Picard, 1986.

TZONIS, Alexander; LEFAIVRE, Liane. Classical Architecture: The Poetics of Order. London: The MIT Press, 1986.

VAN ZANTEN, David. Architectural composition at the Ecole des Beaux Arts from Charles Percier to Charles Garnier. In: DREXLER, Arthur (ed.). The Architecture of the Ecole Des Beaux-Arts. New York, Museum of Modern Art, 1977, p. 111-323.

ZANINI, Mario. A Arte Romântica. In: GUINSBURG, J. (org). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 185-208.

______________________________

[1] Somente em 1870 é que a irmandade consegue obter os recursos para a execução e finalização das torres e, em forma de agradecimento, por abrigar no consistório da Igreja os primeiros anos de existência do Liceu de Artes e Ofícios em 1858, Bethencourt ofereceu-se para projetar e dirigir as obras das torres sem receber nenhum honorário.  Sua oferta foi bem aceita pelos membros da irmandade, sendo que apenas um mesário manifestou-se contra, alegando ter um mestre mais competente que o arquiteto (FERREIRA, 1885, p. 312).

[2] As palavras de Felix Ferreira mais parecem tristes depoimentos de Bethencourt da Silva, tendo em vista uma possível entrevista para a escrita do seu perfil artístico, pois eram amigos.  Conquanto, notamos ser, pelo empenho no projeto e execução, um dos trabalhos que o arquiteto mais admirava.

[3] O termo “ogival” ou “estilo ogival” foi muito utilizado no século XIX, como sinônimo de arquitetura no estilo gótico.

[4] A igreja da Matriz de Nossa Senhora da Glória, localizada no Largo do Machado, é de uma arquitetura de caráter monumental no estilo neoclássico. A igreja foi projeto de dois engenheiros estrangeiros que atuavam no Rio de Janeiro: Julius Friedrich Köller e Charles-Philippe Garçon Riviere.  A Matriz da Glória foi construída entre 1842 e 1872 (AZEVEDO, 1877). Segundo Czajkowski (2000, p. 88), sendo que a torre sineira, com terraço panorâmico e arremate agulhado, foi construída no final do século XIX, possivelmente por outros profissionais.

[5] BERNA. Ludovico. As torres da Igreja do Sacramento da Antiga Sé - O edifício da Praça do Commercio - Rio de Janeiro. Illustração Brazileira, n. 133, 1 de dezembro de 1914. págs. 450-451.

[6] Por exemplo, “o que agradava os românticos em relação à arte medieval era a sua mistura de estilos e sua parataxia” (COLQUHOUN, 2004, p. 44).

[7] Livre tradução da autora. O texto original é: Davidoud's church is one of the first prize winning projects of the student of the romantic ateliers, in this case that of Leon Vaudoyer. It also shows a new interest in medieval architecture though in a bold and ecletic treatment which reflects contemporary controverse over the development of a nineteenth-century Gothic style in France.”

[9] Livre tradução da autora. O texto original é: “L’éclectisme est une démarche, une attitude de l’esprit, une aptitude à la discussion, um parti pris de ne soumettre son action à aucun dogme; c’est une recherche passionnée et patiente de la vérité à travers de multiples verités possibles, une quête de labeautê sans autre guide que lês arguments des uns et des autres à son propôs, une exigence, enfin, de la l’utilité pratique de toute action et de tout choix.”

[10] O Dictionnaire Raisonné de l'architecture française de XIème ao XVIème siècle de Eugène E. Viollet-le-Duc, publicado em 10 volumes entre 1858 e 1868, teve uma rápida difusão pela Europa e tornou-se uma bíblia nos conhecimentos sobre o gótico, sendo muito apreciado pelos arquitetos e engenheiros da segunda metade do século XIX,

[11] ROCHA-PEIXOTO, 2004, p. 506.

[12] Como proposta do artigo, buscaremos trazer para o discurso apenas as obras dos arquitetos e engenheiros formados no país. Porém, não podemos deixar de registrar a passagem dos profissionais estrangeiros que atuaram no Rio de Janeiro e colaboraram de certa forma na cultura arquitetônica local.

[13] Araújo Viana limitou-se apenas a colocar as publicações feitas na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio, em 1889, feitas sobre sua obra. Possivelmente, as descrições foram fornecidas por ele mesmo a esses periódicos, pois a publicação dos artigos estava na sua Revista dos Constructores e atesta a comprovação dos dados pelo engenheiro.

[14] Revista dos Constructores, agosto de 1889.

[15] ARAÚJO VIANA. A architectura do século XIX. Rio de Janeiro: Revista dos Constructores, jul. 1889, p. 90 e p. 92.

[16] VIOLLET-LE-DUC apud SOLÁ-MORALES, 2003, p. 56-57.

[17] No levantamento da antiga biblioteca da Escola Politécnica, feita por Paulo de Frontin quando era diretor da instituição, em 1925, constam os seguintes exemplares: Entretien ssur l’architecture (dois textos e um atlas) de 1863 e o Dictionnaire raisonnè de l’architecture française de 1873.

[18] Revista dos Constructores, dez. 1888, p. 146-152.