A Escola Nacional de Belas Artes - Arte e técnica na construção de um espaço simbólico
Claudia Thurler Ricci [1]
RICCI, Claudia Thurler. A Escola Nacional de Belas Artes - Arte e técnica na construção de um espaço simbólico. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/ctricci_enba.htm>.
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É interessante ver como um documento, perdido por alguns anos em um arquivo [Figura 1], acaba por indicar novas leituras e corroborar para pensarmos e repensarmos o processo de constituição de uma edificação, desde o seu primeiro risco até o término da construção e sua ocupação. A composição espacial e formal é fruto de uma soma de fatores - por vezes alheios a vontade do arquiteto que o projetou -, na qual estão presentes erros, acertos, vontades dos ‘cliente’ e mesmo ações políticas, que acabam por moldar a edificação.
O edifício da Escola Nacional de Belas Artes [Figura 2], construído nos anos de 1906-1908 na Avenida Central[2], Rio de Janeiro, pelo arquiteto espanhol Adolfo Morales de los Rios foi resultado da soma destes diferentes fatores e sua trajetória nos aponta para um desenvolvimento surpreendente. Fruto da genialidade deste arquiteto, que foi autor de diversos projetos arquitetônicos importantes na cidade do Rio de Janeiro[3], este edifício nos apresenta uma história interessante, que veio a luz após a descoberta de algumas plantas que remontam ao desejo de construção de uma nova sede para a Escola Nacional de Belas Artes no antigo Mercado da Glória. Esta documentação nos oferece uma nova possibilidade de leitura do partido arquitetônico adotado pelo arquiteto, demonstrando que suas escolhas e soluções foram, muitas vezes, ditadas por aspectos práticos.
O início da história desta edificação tem um mote bastante significativo: a necessidade de instalações dignas, que pudessem sanar os principais problemas apresentados pelo antigo edifício da Academia de Belas Artes [Figura 3] e que fosse, ao mesmo tempo, símbolo dos novos rumos que o ensino artístico brasileiro estava percorrendo, com a proclamação da República. O edifício projetado por Grandjean de Montigny, inaugurado ainda no Império, em 1826, após cerca de 60 anos de uso, reformas e de uma ocupação desastrosa, tornou-se alvo de inúmeras reclamações por parte de professores e alunos . As queixas mais constantes eram: salas com iluminação inadequada para o ensino de artes e instalações precárias para abrigar a pinacoteca e para realizar as Exposições Gerais. A situação se agravou após a ocupação de parte do edifício pelo Tesouro Nacional, demonstrando o quanto a edificação, projetada para abrigar a Academia Imperial de Belas Artes havia se tornado um local impróprio para o desenvolvimento de atividades artísticas. Fosse por motivos como a falta de manutenção, obras não finalizadas ou mesmo por causa do crescimento do número de alunos e do acervo da Pinacoteca, o certo é que o edifício de Grandjean já não bastava para abrigar uma instituição que estava em crescimento. Estas reivindicações acabam por se acentuar com a proclamação da República em 1889.
A mudança do regime político trouxe a ilusão – e, consequentemente, o desejo - de que uma nova sociedade estaria se formando e que novas maneiras de viver e novos hábitos deveriam ser instaurados. A modernização da cidade, e consequentemente dos edifícios públicos e privados, era um assunto em pauta. A “renovação dos ânimos” que o regime político republicano trouxe para a Escola significou novos estatutos, novos professores e o desejo de que a antiga sede fosse substituída por um novo Palácio.
Este desejo de modernização e de instalações dignas ficou claro no relatório de 1891, enviado pelo diretor da Escola, o escultor Rodolpho Bernardelli, para o Ministério de Estado da Justiça e Negócios Interiores. Nele o diretor solicitava que fosse construída uma nova sede para a Escola na rua da Relação, com projeto do arquiteto italiano Sante Bucciarelli, professor de Estereotomia da Escola Nacional de Belas Artes. Em documentação avulsa existente no Museu D. João VI, temos o “Resumo do sistema e materiais” que devem ser empregados na construção.[4] Infelizmente, as plantas do projeto e o orçamento não foram localizados para que pudéssemos detalhar melhor os materiais e métodos de construção a serem empregados. Temos noticia somente da fachada que, inclusive, já foi publicada em estudo sobre a Escola pelo prof. Donato Mello Junior.[5]
Contudo, neste documento que nos restou, vemos que o edifício a ser construído previa a utilização de materiais e técnicas contemporâneas de construção dando a ele os ares de modernidade que o período apregoava, que a república exigia e que a Escola tanto almejava. A tecnologia e os materiais a serem utilizados garantiriam a qualidade da edificação: emprego do ferro para a estrutura; uso de materiais industriais como ladrilhos e cerâmicas para revestimento (ao contrário do uso de madeira); utilização de ferro nas janelas; cúpula de cobre ou zinco. O que indica o desejo de consolidação de um tipo de arquitetura que se valia de materiais industriais e formas mais modernas. E foi com orgulho que o diretor da Escola afirmou em sua correspondência que o edifício “[...] será o primeiro da América do sul no seu gênero especialmente utilizado para o ensino artístico, poderá ser construído em dois anos e meio, se o governo conceder a verba necessária.” [6]
Mas, temos noticia que o alto custo da edificação fez com que o projeto de Sante Bucciarelli fosse abandonado. No meio de inúmeras negativas por parte do Ministro da Justiça e Negócios Interiores em construir uma nova sede para a Escola, o diretor Rodolpho Bernadelli decidiu, em 1894, solicitar ao ministério o edifício do mercado da Glória [Figura 4 e Figura 5] [7], para que lá fossem instaladas as dependências do ensino artístico. Esta solução apresentava-se mais econômica e viável, pois, segundo Bernardelli, após algumas reformas e obras de menor importância, “[...] desde logo se poderia realizar a instalação das aulas e galerias”.[8] A ansiedade do diretor para se transferir do edifício de Grandjean era tão grande que ele chegou a afirmar para o ministro que
[...] mesmo não tendo caráter arquitetônico o edifício do mercado, por possuir um bom tamanho, seria satisfatório para a instalação da Escola. Sua bela e alegre situação, seu tamanho demonstram o acerto da escolha e a economia que se fará para os cofres públicos. [...] seria necessário apenas as despesas de transporte, tapamento de portas, abertura de janelas e outras obras de menor importância, de modo que desde logo poderia realizar a instalação das aulas e galerias.[9]
Significativa esta frase, pois ao contrário do que se esperava do diretor da Escola - e do que ele havia apregoado -, decidiu-se, como solução conciliatória, mais uma vez, por reformar um prédio existente para que ali se abrigasse uma função publica.
Felizmente, os planos de Rodolpho Bernadelli caíram por água quando a Associação IV Centenário do Descobrimento do Brasil[10], na figura de Ramirez Galvão, decidiu auxiliar a instituição a construir um verdadeiro palácio para a Escola Nacional de Belas Artes, aproveitando as fundações do antigo Mercado da Glória. E foi neste momento que a história se tornou mais interessante. Os primeiros estudos para o projeto do edifício da Escola Nacional de Belas Artes, de autoria de Adolfo Morales de los Rios, resultam da adaptação da estrutura básica do Mercado da Glória ao programa da Escola de Belas Artes. Por anos, estas duas versões ficaram perdidas ou esquecidas e ao serem novamente localizadas trouxeram à luz alguns fatos interessantes que nos ajudam a pensar a própria conformação espacial que o atual edifício do Museu Nacional de Belas Artes acabou por adquirir. É possível perceber que ao projetar o edifício da Escola para o terreno da Avenida Central, atual Rio Branco, o arquiteto somente inseriu algumas modificações e adaptações nos dois projetos que fez para o Mercado. Fossem eles de reforma, de adaptação ou de reconstrução.
A documentação localizada no Arquivo Nacional nos indica que foi feito um minucioso levantamento da construção existente na Gloria, com o objetivo de aproveitar as fundações do Mercado [Figura 6]. Assim, além do arremedo de reforma proposta por Bernadelli, temos noticias de mais 2 projetos, desta vez feitos por Morales de los Rios para o terreno do Mercado: um com dois pavimentos e outro, resultado de uma adaptação, ou melhor, uma modificação do que acreditamos ser o primeiro projeto, com dois pavimentos somente no corpo da frente da edificação
Morales manteve a organização do prédio em torno do pátio interno do mercado, criando mais uma ala intermediária - que antigamente servia como passagem - destinada a abrigar o Museu de Escultura. Com um programa de grande complexidade, a edificação foi projetada com dois pavimentos, assemelhando-se muito com a configuração que a Escola teria em seu projeto para a Avenida Rio Branco. O primeiro pavimento foi destinado prioritariamente às atividades de ensino: temos 14 salas de aula, todas com amplas janelas e consequentemente uma boa iluminação para o desenvolvimento das atividades pedagógicas, exigência sempre feita pela diretoria da Escola, mesmo quando ainda se encontrava sob a égide do regime monarquista. Além do ensino, o primeiro andar [Figura 7] foi destinado às funções administrativas como sala do diretor, secretaria, arquivo, conselho escolar e biblioteca e etc.
O segundo pavimento [Figura 8] é inteiramente destinado ao museu. Esta também era uma reclamação constante da direção nos relatórios anuais: a necessidade de espaços dedicados a abrigar a coleção de quadros da pinacoteca, bem como as obras das exposições gerais que aconteciam anualmente. Segundo Rodolpho Bernardelli, no antigo prédio, para que as exposições gerais acontecessem, era necessário recobrir as obras existentes nas galerias com estruturas de madeira para então expor - sobre estas estruturas - os trabalhos selecionados.[11]
Desta forma Morales, sob os auspícios de Rodolpho Bernardelli, se dedica a organizar neste segundo pavimento amplas galerias de exposição. Este pavimento possui poucas janelas e iluminação zenital, impedindo que a luz direta incidisse sobre as obras. Embora o arquiteto não mencione para que coleção as galerias foram destinadas, todas são nomeadas com datas históricas significativas para a Escola: Galeria “16 de agosto de 1816”, “12 de outubro de 1820” e a galeria de “Exposições anuais setembro de 1901” data de aprovação do empréstimo para a construção do prédio da Escola no terreno do Mercado da Glória.[12] As quatro salas situadas nos ângulos da edificação abrigavam as coleções por período histórico: Centúria de 1500, Centúria de 1600, Centúria de 1700 e Centúria de 1800. Na ala que domina a fachada principal, temos o Salão de Honra ladeado por dois “corredores” que abrigam as coleções “Indumentária” e “Quadros Pequenos” [Figura 9 e Figura 10].
Entretanto, este projeto ideal, no qual Morales buscou resumir todos os desejos do diretor da Escola Rodolfo Bernardelli, acaba por não vingar. Mesmo tendo sido aprovado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, a Associação do IV Centenário, representado por Ramirez Galvão, solicita que o sejam apresentados novos planos [Figura 11]. Como “[...] não se encontrou nenhum empreiteiro ou arquiteto quis [sic] contratar a obra pelo preço estipulado.” - 650.000$00 - a Associação e o diretor da Escola afirmam a necessidade de “[...] organizar uma nova planta que se acomodasse aos recursos financeiros fornecidos pelo estado e às necessidades estéticas do estabelecimento”.[13] Três meses depois, em abril de 1902 é aprovada uma nova planta, desta vez, com cortes significativos.
Esta segunda versão, que pretendia ser a mais econômica possível, possuía dois pavimentos na fachada principal e somente um nas demais fachadas [Figura 12]. O interessante na comparação entre a primeira versão e a que se seguiu é percebemos que, mesmo com o drástico corte de área continuamos com a valorização e predominância dos espaços destinados a abrigar a coleção da Escola [Figura 13]. Temos então os espaços destinados ao “Museu de Escultura”, “Museu de Pintura”, “Museu de Escultura e Arqueologia” e “Museu de Quadros Pequenos, Cerâmica e Indumentária” que ocupam quase que todas as alas do primeiro andar da edificação [Figura 14].
Se a área destinada a abrigar a coleção da Escola foi muito bem dimensionada, o mesmo não poderia ser dito com relação às instalações relativas à Escola. Neste pavimento temos somente 10 salas de aula, embora todas fossem confortáveis e algumas possuíssem inclusive iluminação zenital (sala de pintura e aulas de desenho). Nas áreas situadas nos ângulos da edificação temos um espaço destinado a cada curso, seguindo a divisão acadêmica da Escola: “Aula de Pintura”, “Aula de Escultura”, “Aula de Desenho Geométrico Arquitetônico e Desenho de Ornatos” e “Aula de Gravura”. Mesmo as demais funções da Escola - fossem elas administrativas ou mesmo destinadas ao ensino, como laboratórios de disciplinas práticas, ateliês e demais salas de aula - ficaram reduzidas. Certamente o privilegiar das áreas destinadas à exposição decorre de uma antiga solicitação da direção da Escola tendo em vista que a coleção de peças se ampliava a cada ano [Figura 15].
Em primeiro de junho de 1902, o jornal Correio da Manhã noticiou a cerimônia de colocação da pedra fundamental e inauguração das obras da nova Escola de Belas Artes na Praça da Glória.[14] Ainda não se sabe exatamente o motivo, mas a construção do edifício na Glória acaba por não se concretizar e em 1904 começamos a ter noticias sobre a possibilidade de o edifício ser erguido na Avenida Central, que estava sendo construída..[15] No final do ano de 1905 a Comissão Construtora da Avenida Central envia carta ao diretor da Escola comunicando que o lote situado entre os números 199 e 211 da Avenida Central (atual Rio Branco) seria destinado ao prédio a ser construído. Em 1906, Adolfo Morales de los Rios entrega o novo projeto para o Palácio das Belas Artes, e a cerimônia de lançamento da pedra fundamental acontece com a presença do presidente Rodrigues Alves [Figura 16].
No projeto realizado por Adolfo Morales de los Rios para o terreno da Avenida Central [16], foi mantido o partido geral adotado no edifício a ser construído na Glória, aumentando-se cerca de 5 metros em cada lado da edificação para que se adequasse as dimensões do novo terreno. Assim, podemos afirmar que o arquiteto decidiu por uma simples adaptação do primeiro projeto, decisão que foi facilitada pelo fato de os terrenos da Avenida ainda estarem sendo definidos na época. A comparação entre as duas plantas deixa claro que poucas foram as modificações efetuadas: na planta do segundo pavimento [Figura 17], o vestíbulo de entrada, anteriormente “mesquinho”, ganha dimensões maiores, tornando-se mais suntuoso, o pátio central ganhou mais espaço com a supressão da escada de dois lances e das duas salas de aula localizadas na parte posterior do edifício (que viriam a ser construídos posteriormente). No andar superior [Figura 18], a setorização das funções é a mesma, sendo que, como o edifício ganhou mais um pavimento, teremos uma pequena escada de acesso. O último pavimento [Figura 19], novidade em relação ao projeto anterior, ocupa somente o corpo principal do edifício e são projetados quatro salões destinados à restaurações e quatro salões-gabinetes para concursos de prêmios de viagem.
Anteriormente, ao olharmos para a edificação construída, acreditávamos que o edifício havia sido organizado em torno de um pátio central, tomando como referência a organização espacial do Palais des Etudes, da École des Beaux-Arts de Paris [Figura 20], onde Morales havia estudado. A forte imagem que relacionava os dois espaços destas instituições artísticas, somado a declaração de Morales de que o pátio interno deveria ser “[...] plantado e ornado com estátuas e motivos escultóricos, destinando-se para execução de trabalhos pictóricos ou recreio dos alunos”[17], nos fez acreditar que o partido adotado surgia desta lembrança parisiense. Contudo, com a descoberta destes dois projetos para o Mercado da Glória percebemos que o arquiteto, ao construir o edifício situado na Avenida Rio Branco foi, na verdade, movido por um fato anterior: a solicitação de um projeto de reforma de um prédio existente. Certamente, ao perceber a engenhosidade existente na sua solução, adotou o mesmo recurso para o novo terreno situado no centro da cidade. Pouco - ou nada -, se sabe sobre as negociações para a obtenção do terreno da Avenida Rio Branco, mas, a coincidência entre as medidas das duas edificações projetadas nos leva a crer que houve uma adaptação no traçado da via e na delimitação dos lotes para que o projeto se adaptasse a nova avenida.
No que se refere a fachada da construída para o prédio da Escola [Figura 21], ela também se assemelha aos projetos do Mercado, ganhando contudo uma ornamentação mais profusa e delicada. Segundo Morales de los Rios
A fachada principal leva cobertura mais baixa mas em nível superior às mansardas laterais e sobre esses telhados erguem-se três cúpulas, sendo duas laterais de planta quadrada feito a mansard, com altura total de 36m sobre o nível da Av. No centro ergue-se a mansarda central do salão de honra do 3ºpav e ainda na frente desta cúpula de secção ogival do corpo central que se elevará até 42m de altura sobre o plano da Avenida. As fachadas são de uma pureza de linhas [18]
Completando as fachadas, Morales buscou criar uma identidade artística nacional e demonstrar que o país participava da ordem internacional, construindo desta forma uma história da arte internacional, que legitimava a instituição, dotando-lhe de raízes ancestrais. Na fachada principal, os medalhões, pintados a fresco por Henrique Bernardelli, representavam os membros fundadores da Academia Imperial de Belas Artes e os discípulos dos mestres franceses, como Pedro Américo, Victor Meireles e Manuel de Araújo Porto Alegre. Para completar o universo das citações, Morales escreve o nome de Dürer, Mantegna, Fra Angelico, Rubens, entre outros. Já os mosaicos das fachadas laterais, com risco de autoria de Henrique Bernardelli, representam grandes artistas como Leonardo da Vinci, Vignola, Vasari, Scamozzi [Figura 22] e Viollet Le Duc [Figura 23].[19]
Entusiasmado, Rodolpho Bernardelli escreve, em seu relatório anual para o Ministro, que “as obras já estão em andamento e que certamente, no ano de 1908, a Escola poderá se mudar do antigo prédio de Grandjean para o novo palácio da Avenida Central”. E continua:
No novo edifício as galerias serão amplas e terão luz convenientemente distribuídas para que se possa exibir as obras do museu, as salas terão luz distribuida racionalmente, salas adequadas para oficina de restauração, à biblioteca, ao museu... em útima análise teremos um edifício com todas as acomodações e dependências exigidas pela moderna pedagogia e que se prestem igualmente aos serviços da administração, exposições gerais e etc.[20]
Se o projeto entregue havia sido pensado com esmero e dedicação pelo prof. Adolfo Morales de Los Rios - com a colaboração e cumplicidade de Rodolpho Bernardelli -, os relatos acerca da sua construção não foram os mais satisfatórios. A pedido do Ministro Dr. J. J. Seabra, o Dr. Lauro Muller , encarregou a Comissão Construtora da Avenida Central de executar as obras do edifício da Escola, ficando a fiscalização a cargo do Dr. Francisco Augusto Peixoto.[21] Já no final de 1907, o responsável pela obra passou a ser o engenheiro Gabriel Junqueira, que deu o seguinte depoimento, detalhando alguns itens da construção: “Todas as coberturas do edifício são em forma de terraços, os soalhos como os forros e paredes divisórias são de cimento armado com metal distendido, sendo empregado o metal n.21 para soalhos, o n.4 para paredes e o n.1 para forros. O vigamento tem sido importado em bruto e preparado nas oficinas das obras. O novo edifício da Escola Nacional deverá ficar concluído em setembro de 1908”.[22] Agora, quem fala sobre o projeto ou dá declarações aos jornais acerca da construção do edifício não é mais o arquiteto que o projetou. A obra acontece em detrimento do que está desenhado, ganhando uma aparência que passa a ser determinada pelas necessidades do canteiro, pela falta de mão de obra ou mesmo por cortes orçamentários.
O que se percebe é que as alterações feitas pela Comissão Construtora da Avenida Central no projeto não foram poucas, ou pelo menos, deixaram o seu autor bastante descontente. Sua insatisfação tornou-se explicita em seus depoimentos: “desenhei florões e não repolhos; concebi consolos e não coisas que me tornam inconsoláveis, desejei que as galerias fossem cobertas com vitrais e jamais admiti que fossem feitas coberturas de fábrica” ou “graciosa mansarda foi substituída, com absoluta infelicidade pela curvilínea e descomunal cúpula” [23] [Figura 24 e Figura 25]. A Comissão Construtora interferiu não só nos aspectos que resultaram em problemas estéticos, mas também, na composição espacial da edificação: a escada do vestíbulo havia sido pensada para ser em um único lance, e acabou sendo transformada em uma escada de dois lances.
Mas a história da edificação não acaba aqui. Tendo sido inaugurada em setembro de 1908, a mudança da Escola Nacional de Belas Artes para o novo edifício ocorreu no inicio de 1909 e o ano letivo foi atrasado, pois as instalações ainda não se achavam prontas. As obras continuam e a bem da verdade não acabaram até hoje. Sintomaticamente, por falta de verba, um ofício de 1912 suspende o concurso para execução das estátuas que deveriam ocupar os 8 nichos da parte externa [Figura 26] e dos ângulos do edifício e sugere que as estátuas da parte superior (representando os maiores artistas da história da arte mundial) sejam feitas pelos pensionistas da Escola.
Como que uma continuação da história a que estava fadado este edifício, ou o ensino de artes no Brasil, em 1915, ou seja, poucos anos após a inauguração, os relatórios do então diretor retomam as antigas reclamações: as galerias estão em péssimo estado de conservação, principalmente as de pintura, sendo necessário que haja modificação nas claraboias para que não entre calor, luz e, principalmente, as águas da chuva. É necessário que o fechamento seja trocado por vidros foscos e que estes sejam levantados em toda extensão para possibilitar a renovação do ar e impedir o calor excessivo que já estragava a coleção da Escola.[24]
Caso se faça um acompanhamento minucioso na documentação sobre a Escola de Belas Artes, veremos que as ampliações, modificações, obras e reformas foram inúmeras. Uma das mais drásticas aconteceu em 1922, por ocasião da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil. Havendo a necessidade de mais espaço para galerias destinadas a abrigar a Seção de Arte Contemporânea e de Arte Retrospectiva, propôs-se a criação de uma comissão que reformularia o interior do Edifício. Esta comissão era composta por Gastão Bahiana, Heitor de Melo, Correia Lima, Raul Lessa Saldanha da Gama e Morales de los Rios (não participou dos trabalhos, pois estava em licença para tratamento de saúde). Assim, a antiga escada nobre construída por Morales, situada no pátio das esculturas, foi demolida, alargando-se o compartimento que ela ocupava, acrescentando também as duas salas adjacentes. Desta forma obteve-se um suntuoso hall, que possui 8m de largura por 34m de comprimento. Duas novas escadarias nobres foram abertas, dando acesso ao pavimento superior, ficando o salão de honra independente, facilitando sua utilização para cerimônias solenes, e separando-o do Museu e das exposições temporárias. Desse arranjo e disposição das escadas, resultou a separação entre a Escola e os demais serviços.
Segundo o filho de Morales de los Rios esta obra deixou o arquiteto desolado, pois “deformou o seu projeto original”.[25] Mesmo não sendo mais o “dono” nem do projeto nem da edificação, o arquiteto acabou vendo mais uma “intromissão” em sua obra, sem que pudesse interferir. Se desde o inicio houve a preocupação de projetar o espaço ideal, não se percebeu que o espaço ideal não existe e que a obra é sempre o resultado de sua história: da história que ela vive e da história que por ela passa..
Esta é uma pequena parte da saga deste projeto - e daqueles que dele participaram - que ainda não teve toda a sua história revelada.
[1] Formada em arquitetura pela FAU/UFRJ, Doutora em Historia Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais IFCS/UFRJ, autora da tese Construir o passado e projetar o futuro: o projeto civilizatório Brasileiro, trabalha atualmente na Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro.
[2] Atualmente, o edifício abriga o Museu Nacional de Belas Artes e está situado na denominada Avenida Rio Branco, demoninação que usaremos a partir de então.
[3] Ver o seguinte artigo sobre a trajetória de Adolfo Morales de los Rios: RICCI, Claudia Thurler. Sob a inspiração de Clio: O Historicismo na obra de Morales de los Rios. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_mlr_ctr.htm>.
[4] Resumo do sistema e materiais: 1.Alicerces serão feitos com pedras miúdas e argamassa composta de cal e areia; 2.Toda superfície do edifício terá espessura de 30 cm de argamassa de pedra média, para impedir a infiltração e umidade na parte subterrânea do edifício; 3.Até a altura de 3m o edifício será construído de granito; 4.As cornijas e arquivoltas do edifício deverão ser de granito; 5.Colunas da parte central da fachada e os grande portões laterais e as salas de conferência deverão ser de granito polido, com base e capitéis de mármore; 6.Muros externos deverão ser de tijolo sem reboco e os muros internos de tijolo com a parede coberta de argamassa e cal e pó de mármore; 7.Decorações externas serão em mármore e terra-cota; 8.Escada principal e secundária em mármore; 9.Armações de todos os pavimentos deverão ser de ferro; 10.Edifício será coberto de terraços, também com armação de ferro; 11.Os pavimentos se continuarão com tijolos e Mosaicos; 12.No terraço haverá um leito de asfalto para receber ladrilhos; 13.Soleiras das portas e janelas serão de madeira, a armação da janela de ferro; 14.Parte superior do edifício que forma a cúpula será de tijolo, fazendo-se a cobertura de cobre ou zinco com armação de ferro; 15.Todos os condutores serão de ferro fundido. Resumo do sistema e dos materiais que se devem empregar na construção da Escola Nacional de Belas Artes. Maio de 1892. Notação 192. Museu D. João VI.
[5] MELLO JUNIOR, Donato. O Edifício do Museu Nacional de Belas Artes. Boletim do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, maio, 1983/abr., 1984.
[6] Resumo do sistema e dos materiais que se devem empregar na construção da Escola Nacional de Belas Artes. Maio de 1892. Notação 192. Museu D. João VI.
[7] O Mercado da Glória, situado no bairro da Glória, nunca foi efetivamente ocupado com a função para a qual foi construído.
[8] Carta avulsa do diretor para o Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 24de dezembro de 1894. Pasta 31 DOC 1. Arquivo Histórico da Biblioteca do Museu de Belas Artes.
[9] Idem.
[10] A Associação do IV Centenário do Descobrimento do Brasil era composta por Ramirez Galvão, presidente e Adolfo Morales de los Rios, vice-presidente.
[11] Relatório do ano de 1900, referente à Escola Nacional de Belas Artes. Fundo do Ministério da Justiça e Negócios do Interior. Arquivo Nacional.
[12] Jornal A Noticia. Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1901. Álbum 54, Recortes de Jornais de Adolfo Morales de los Rios. s/d, sn.
[13] Carta Ramirez Galvão para o ministro da Justiça e Negócios Interiores, solicitando a aprovação da nova organização das plantas para a Escola Nacional de Belas Artes. 1902. Fundo do Ministério da Justiça e Negócios do Interior. Arquivo Nacional.
[14] Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 01 de junho de 1902. IHGB, Álbum 54, Recortes de Jornais de Adolfo Morales de los Rios. s/d, sn.
[15] RICCI, Claudia Thurler. Construir o passado e projetar o futuro. Tese de Doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação em História Social IFCH/UFRJ, 2004.
[16] Escola Nacional de Belas Artes - Avenida Central, n. 199/211. Projeto: Adolfo Morales de los Rios. Construtor: Comissão Construtora da Avenida Central. Proprietário: Ministério dos Negócios Interiores.
[17] Adolfo Morales de los Rios Filho. Adolfo Morales de los Rios - Figura, vida e obra. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1959. p. 185.
[18] Idem.
[19] Sobre a relação de Adolfo Morales de los Rios com a história e a construção de uma memória nacional brasileira ver: RICCI, Claudia. Adolfo Morales de los Rios: uma História construída com pedras e letras. Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC/RJ, 1996.
[20] Relatório do ano de 1907, referente à Escola Nacional de Belas Artes. Fundo do Ministério da Justiça e Negócios do Interior. Arquivo Nacional.
[21] O Rebate, Rio de Janeiro, 12 de maio de 1906. IHGB, Álbum 54, Recortes de Jornais de Adolfo Morales de los Rios. s/d, sn.
[22] Jornal do Commércio, 26 de novembro de 1907. IHGB, Álbum 54, Recortes de Jornais de Adolfo Morales de los Rios. s/d, sn.
[23] Morales de los Rios Filho. Adolfo Morales de los Rios...op. cit. p.185-186.
[24] Relatório do ano de 1916, referente a Escola Naiconal de Belas Artes. Pasta 306.4098153 E74RE, Arquivo Histórico da Biblioteca do Museu de Belas Artes.
[25] Morales de los Rios Filho. Adolfo Morales de los Rios....op. cit. p.186.