O design do humor: A caricatura na revista “Caras e Carrancas” (1902)
Rosane Kaminski *
KAMINSKI, Rosane. O design do humor: A caricatura na revista “Caras e Carrancas” (1902). 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 3, jul. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/caras&carrancas.htm>.
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As revistas ilustradas de Curitiba e a história do design gráfico
1. Como se sabe, o século XIX foi marcado pela expansão das revistas ilustradas e humorísticas, devido, ao mesmo tempo, ao desenvolvimento industrial das técnicas de impressão e ao aumento do público leitor. Nos países europeus tal fenômeno foi evidente já desde a primeira metade daquele século, mas no Brasil o processo de modernização da imprensa ocorreu mais tardiamente, a partir das suas três últimas décadas, e somente nos principais centros urbanos do país.[1] Todavia, foi na primeira década do século XX que apareceram as principais revistas semanais no Brasil, em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Salvador e Curitiba. Nesta última, ainda que desde a década de 1880 já se observasse o despontar de uma indústria gráfica favorecida pela chegada de imigrantes europeus e a presença de alguns periódicos ilustrados, foi justamente a partir de 1900 que se intensificou um circuito de produção e circulação de revistas, muitas das quais sustentadas pela publicidade comercial.[2]
2. A revista Caras e Carrancas - lançada em Curitiba no ano de 1902 - constitui o objeto de estudo do presente texto, que se insere numa pesquisa mais ampla acerca das revistas ilustradas publicadas na capital paranaense entre 1900-1920. Até aqui, alguns autores realizaram investigações sobre esse material, enfocando sobretudo aspectos literários ou iconográficos (nos quais as imagens são examinadas a partir de recortes temáticos).[3] Seguindo por um novo rumo, a pesquisa que ora vem sendo desenvolvida visa, principalmente, a observação das características visuais e dos recursos expressivos utilizados na produção daquelas revistas ilustradas, inserindo-as nos estudos sobre a história do design realizado no Brasil ainda antes da conformação de um campo profissional neste setor. Ou seja, antes da existência, em nosso país, de uma consciência do design enquanto conceito e profissão.[4] A idéia de design gráfico aqui presente é, pois, bastante larga, pois privilegia a observação das relações entre palavras e imagens no espaço da página impressa independentemente de seus autores serem ou não profissionais do design, e a ênfase deste texto recai nas funções da imagem numa revista de humor.
3. A partir de um levantamento realizado nos acervos de periódicos de Curitiba, foram localizados cerca de sessenta títulos de publicações na cidade entre 1900 e 1920, grande parte deles ilustrados. Independente de sua duração, as revistas analisadas foram divididas em dois grandes grupos: as literárias e as de humor. As revistas literárias eram predominantemente vinculadas ao grupo de poetas simbolistas atuantes em Curitiba naquele momento e, apesar de muitas vezes apresentarem imagens, estas não eram o elemento central. Seus objetivos gravitavam em torno da divulgação das poesias, do fortalecimento de um circuito literário local e do intercâmbio com poetas simbolistas de outros locais, como São Paulo e Minas Gerais.[5] Já as revistas de humor, repletas de caricaturas e de anúncios publicitários, tomavam a imagem como elemento extremamente expressivo e comunicador. Nesse segundo grupo se insere a revista semanal Caras e Carrancas.
Imagens do efêmero em Caras e Carrancas
4. No ano de 1902, o mês de setembro trouxe à cidade de Curitiba uma novidade editorial que veio reforçar o bom humor do ar primaveril. Ao preço de 200 réis, era lançado o exemplar número um da revista Caras e Carrancas que, segundo informado no seu editorial, pretendia ser um “semanário ilustrado de arte, crítica e costumes.”[6] Protegidos por pseudônimos, seus editores diziam que a nova revista tinha como missão “não só rir, mas ferir o ridículo da nossa vida social e dos nossos costumes”. Seu primeiro número continha apenas quatro páginas, sendo duas delas ocupadas por ilustrações de teor satírico, e as demais páginas trazendo anúncios em forma de poemas rimados e também alguns contos e sonetos. A partir desta data, com periodicidade semanal, foram editados mais sete números da Caras e Carrancas, sendo o último datado de 15 de novembro de 1902. Neste número, lia-se a notícia do falecimento do poeta Alfredo Coelho, que assinando sob o pseudônimo de “Alfredo Lebre” era um dos editores da revista. Por este motivo, anunciava-se que o semanário deixaria de existir.[7] Assim foi, tendo a revista se extinguido sem completar ao menos uma primavera de existência.
5. Apesar de sua efemeridade, a revista curitibana chama a atenção historicamente ao menos por dois aspectos. Primeiro, pelo frescor de sua qualidade visual e ênfase às imagens de teor humorístico, de certa forma inovadoras na cidade, considerando-se as características dos outros periódicos locais. Segundo, pelo fato de ter sido lançada exatamente no mesmo mês e ano do que a revista carioca O Malho,[8] que em diversos aspectos se parecia com a Caras e Carrancas. No seu primeiro número, O Malho também se propunha ser um semanário humorístico ilustrado e era vendido ao preço de 200 réis. A grande diferença foi que o semanário carioca alcançou décadas de existência e veio a se tornar uma das mais conhecidas revistas brasileiras. Porém, é partindo da observação do surgimento coincidente da revista curitibana e da revista carioca, bem como de seus objetivos afins, que foram traçados os propósitos do presente texto: (1) apresentar ao leitor informações históricas e visuais acerca de Caras e Carrancas; e (2) realizar um cotejo entre as características gráficas dos números que foram editados em 1902 dessas duas revistas, destacando traços que são comuns entre ambas.
6. O fato de Caras e Carrancas ter sobrevivido apenas umas poucas edições pode ser interpretado com certa naturalidade num contexto em que a imprensa atravessava uma fase de proliferação de revistas efêmeras e, na maior parte dos casos, humorísticas. O que as salvava, segundo Werneck Sodré, era a “arte da caricatura” (SODRÉ, 1999: 303 e 326). Se muitas destas revistas tiveram curta existência, os assuntos que estampavam também eram, geralmente, de “curta duração”: anúncios publicitários, frivolidades da vida social e acontecimentos políticos cotidianos, todos voltados ao público mundano. Nesta cultura de flâneur, o tom satírico das imagens que buscavam expressar a atmosfera urbana, os personagens sociais e políticos em moldes caricatos, se tornou um expediente recorrente, para o qual acorreram diversos poetas e desenhistas que, anônimos ou protegidos por pseudônimos, fizeram troça da vida social. Ironicamente, o aspecto “instantâneo” daquelas caricaturas correspondeu, quase sempre, à sua descartabilidade, fato que as relegou a um quase completo esquecimento - tanto das imagens quanto de seus autores. Considerando que a “curta duração” define um tipo específico de caricatura, também conhecido como charge, pode-se dizer que as revistas ilustradas que proliferaram nas maiores cidades do Brasil comportavam esse tipo de caricatura, e que sua comicidade estava vinculada ao conhecimento do “fato do dia” que elas representavam.[9] Grande parte da potência de humor social que as charges e demais caricaturas de Caras e Carrancas (como de tantas outras revistas satíricas) carregam fica geralmente vinculada à interpretação dos eventos, gírias e modismos que marcaram seu contexto imediato, escapando àqueles que as contemplam com o distanciamento histórico. Como não é propósito aqui adentrar nos temas representados pelas ilustrações das revistas do início do século XX, tentaremos, então, direcionar o olhar para as suas características visuais mais recorrentes.
7. Nesse sentido, a capa da Caras e Carrancas, desde o seu primeiro número, apresenta uma diagramação bastante usual em outras revistas ilustradas já desde o século XIX: a página é dividida em duas partes principais, com o título do periódico estampado na parte superior em letras desenhadas à mão, e uma imagem principal ocupando o restante do espaço [Figura 1]. Ou seja, o mínimo de informações escritas e o máximo de sedução visual criada pela iconicidade da imagem. O próprio título é ornamentado com uma série de pequenos personagens: alguns são animais com expressões ou hábitos humanizados (o abutre usando óculos, a macaca segurando um leque, o sapo fumando), outros são humanos com feições exageradas e estilizadas. Todos acabam entrelaçados pelas letras e por uns ramos de folhas que parecem brotar da letra “C” da palavra “Caras”, criando uma moldura orgânica do lado esquerdo da margem. Quanto à imagem que ocupa a metade inferior da página, sob a legenda “Pynachotheca Paranaense”, trata-se de um retrato do jornalista e poeta paranaense Domingos Nascimento. Essa ilustração fica a meio caminho entre uma representação naturalista e uma representação caricata, pois apesar da estilização da figura, o desenhista não se utiliza de deformações ou exageros nos traços do personagem, e recorre a efeitos de luz e sombra para representar o volume do rosto e pescoço por meio de hachuras bem mais comportadas do que as utilizadas no cabeçalho-título. Apesar de não conter assinatura, a execução desse retrato pode ser atribuído ao poeta e desenhista Silveira Netto, tanto pela comparação com outras ilustrações que realizou à mesma época, quanto pelo fato de ser ele um dos colaboradores da revista.
8. Silveira Netto era um dos principais poetas simbolistas na virada dos século XIX para o XX, e colaborou com diversas revistas literárias da cidade. Paralelo à vida como escritor, ele também estudou desenho com Mariano de Lima na Escola de Artes e Indústrias do Paraná, e foi auxiliar do litógrafo Narciso Figueras, de modo que acabou atuando como ilustrador em alguns periódicos, como por exemplo O Guarany, lançado em 1891.[10] Essa atuação híbrida de Silveira Netto exemplifica um aspecto social importante de se destacar quando do estudo dessas revistas: a insipiência do seu caráter empresarial e a existência dependente de um mecenato difuso, conforme já apontada por outros autores acerca das revistas cariocas e paulistas (ver SALIBA, 2002: 41-43). Geralmente, os mesmos poetas que encampavam a direção da revista, também escreviam os textos, vendiam assinaturas e faziam as vezes de publicitários. Quando uma revista não vingava, muitas vezes os seus autores logo propunham outra, como o fez Alfredo Coelho, editor de Caras e Carrancas que veio a falecer em fins de 1902. Ele era também um poeta simbolista, e já havia sido editor da revista de arte O Breviário, em 1900. Assim, a condensação de atividades num mesmo agente tratava-se de um fenômeno social mais amplo que caracterizou aqueles anos de insipiência empresarial na sustentação das revistas ilustradas, e o caso de Silveira Netto é um exemplo disso. Integrante de um grupo literário erudito, ele escrevia textos para revistas ao mesmo tempo em que fazia charges e também produzia retratos que homenageavam personagens que ele admirava. E é nesse quadro de atuações híbridas - e, portanto, pouco especializadas - que as suas ilustrações devem ser avaliadas.
9. Note-se que as imagens produzidas por Silveira Netto dividem-se em dois tipos: (1) os retratos celebrativos, e (2) as charges. O “meio-termo” entre naturalismo e estilização observado no retrato de Domingos Nascimento repete-se em várias outras ilustrações feitas por Silveira Netto, pois elas apresentam os personagens sempre com as feições do rosto muito parecidas, sem explorar os detalhes individualizadores e a expressividade dos seus elementos faciais, o que empobrece a potência da imagem em evocar emoções, traços do caráter ou do humor do retratado. Isso ocorre tanto nos retratos laudatórios feitos por Netto quanto nas suas charges: compare-se, por exemplo, as características sóbrias de expressão facial na representação do escritor francês Emile Zola, e os rostos dos diversos personagens na charge sobre a “greve da imprensa”, publicados na mesma página [Figura 2]. Todos parecem indiferentes ao que se passa. A única diferença é a proporção entre a cabeça e o corpo do retratado, pois o tamanho dos ombros do Emile Zola está mais “adequado” ao tamanho da sua cabeça do que os dos personagens que constam na charge. Nesta, como em outras caricaturas feitas por Netto, o recurso expressivo utilizado é sempre a desproporção entre o tamanho da cabeça e o corpo - e isso certamente foi apreendido de Narciso Figueras, que usava do mesmo expediente -, mas a repetição desse macete se desgasta, e ao compararmos vários desenhos do mesmo autor eles soam ingênuos. No fundo, Silveira Netto não era um humorista[11] e nem um caricaturista, mas um agente ávido em fazer florescer na cidade a aproximação entre literatura e imprensa que se processava em âmbito mais amplo, noutros centros urbanos do país, e que resolveu ocupar por conta própria os espaços ainda vazios na provinciana Curitiba. É possível, aliás, que o fato de representar personagens que ele admirava tenha sido fator inibidor para a sátira que poderia ter saído da pena do desenhista. Estava por demais integrado ao “assunto” que representou. Além do mais, apesar de Caras e Carrancas se apresentar como revista humorística, há uma nota na sua primeira edição dizendo que sua função não era “somente rir, stigmatizar as tolas presumpções [...]. Nascemos também para exalçar o mérito, premiar a virtude, venerar o talento”[12]. Em seguida, estão traçadas algumas linhas elogiosas à poesia e ao caráter do próprio Domingos Nascimento, retratado na capa da revista.
10. Algumas das outras capas de Caras e Carrancas também apresentam retratos de personalidades locais feitos provavelmente por Silveira Netto, por exemplo: o recém falecido Marechal Roberto Ferreira (revista n. 2) e o poeta Nestor Vítor (revista n. 5) ambos observáveis na Figura 3. E na segunda página de cada uma dessas edições sempre há textos apresentando os retratados e enaltecendo seus feitos. Na revista de número quatro aparece o próprio Silveira Neto que se auto-retrata partindo para Corumbá - conforme indicação contida na mala que o personagem carrega na imagem -, quando então a segunda página traz um cântico lamentoso redigido pelo poeta que parece estar deixando a cidade com alguma mágoa: “Sou orpham dos Sonhos todos que sonhei.”[13]
11. Nota-se, enfim, que uma parte da capa se manteve fixa - aquela do cabeçalho ornamentado, contendo o título da revista e uma série de pequenas caricaturas - enquanto que a outra parte sempre trazia uma imagem nova, relativa a algum fato recente ou à celebração de alguma personalidade local. Quanto às páginas centrais, continham textos e quadrinhas publicitárias (com anúncios de chapelarias, alfaiatarias, restaurantes, fábricas, etc.), acompanhadas de umas poucas imagens com caráter mais ornamental do que opinativo. E a página final sempre apresentava charges ou retratos de pessoas que houvessem sido mencionadas em algum dos textos, como é o caso observado na Figura 2.
12. A última edição de Caras e Carrancas é a única que traz uma diferença nesta estrutura básica. Na capa, vê-se um retrato ainda mais “naturalista” de Alfredo Coelho, que ocupa toda a metade inferior da pagina, e a eliminação de boa parte daquela estrutura ornamentada que antes acompanhava o título [Figura 4]. Esse desenho se distingue dos anteriores, pelo estilo do traço e do tratamento mais suave do hachureado. Entretanto, em termos estilísticos, não apresenta grande diferença em relação àqueles atribuídos a Silveira Netto. Não se nota, nas imagens deixadas pelos ilustradores que atuavam na cidade naquele momento, o desejo ou a tentativa de cunhar um estilo pessoal de caricatura. Quanto ao interior da revista de número oito, ele está repleto de comentários acerca da morte do Alfredo Coelho. E na página final, sob o traço do mesmo ilustrador que fez o retrato da capa, vê-se uma imagem mais alegórica do que caricata. Trata-se de uma jovem seminua, coberta apenas pela bandeira nacional do Brasil, que tem numa das mãos uma coroa de louros, e na outra um grilhão que está sendo rompido pelo bico de uma águia [Figura 5]. No lado direito, bastante esmaecida, aparece a inscrição “15 de novembro de 1889”, referindo-se à data da proclamação da República que ocorrera exatamente treze anos antes da edição daquela revista. O desenho sintetiza, enfim, uma alegoria da República brasileira que aparece representada sob a forma de uma jovem moça, como era bastante usual naqueles anos. Os desenhistas costumavam contrapor a “jovem república” à “velha monarquia”, através de metáforas visuais relativas ao corpo feminino. Quanto à forma de representação, e apesar dos erros de proporção na anatomia do corpo feminino, esse desenho que fecha o último exemplar da revista Caras e carrancas é mais idealizado do que satirizado, aos moldes das deusas-musas gregas tão caras aos poetas simbolistas curitibanos.
Análise comparada entre Caras e Carrancas e os primeiros números de O Malho
13. Pouco mais de um mês após o surgimento de Caras e Carrancas em Curitiba, lia-se, na sua edição de número seis, uma quadrinha que anunciava a também jovem revista carioca O Malho:
14. Que título! Por ahi
15. Não há outro. E’ bem cabido
16. Isto, é ferro, nunca vi
17. Tanto aço reunido [14]
18. O anúncio fazia menção ao título da revista e à figura do ferreiro com sua marreta e bigorna, pronto a “malhar” com a sua sátira tudo o que lhe surgisse pela frente, e que aparecia representado em forma de caricatura na primeira edição de O Malho [Figura 6]. Este periódico apresentava-se mais ácido e impiedoso do que a revista curitibana, e isso era assumido logo em seu primeiro número - “Iconoclasta de nascença, o Malho começa por atacar e destruir a praxe: não tem programma. Ou, mais exactamente, tem todos, como o seu nome bem o indica: elle é o Malho; tudo que passar a seu alcance será a bigorna.”[15] A apresentação física da revista carioca também ostentava uma estrutura financeira mais privilegiada: continha vinte páginas, sendo que algumas delas eram impressas em cores, assim como sua capa, enquanto a Caras e Carrancas era impressa totalmente em preto e branco e composta de apenas quatro páginas. A quantidade de anúncios presentes na revista oferece uma boa pista de sua sustentação no empreendimento publicitário, atividade esta que vinha se desenvolvendo no Brasil desde a segunda metade do século XIX, conquistando a adesão de diversos literatos e artistas que atuaram na elaboração de textos e imagens para reclames.[16] Como já foi dito antes, a Caras e Carrancas também continha anúncios, mas em quantidade significativamente inferior a de O Malho.
19. De qualquer modo, à parte de suas diferenças, ambas as revistas faziam parte de um mesmo fenômeno, qual seja, a proliferação de revistas de humor naquele período da Belle Époque brasileira, quando então a publicidade se tornava uma interlocutora importante para a produção cultural, produzindo um intelectual cuja profissionalização está ligada ao seu trabalho como anunciante. Deste modo, além do seu surgimento coincidente em termos cronológicos, as duas revistas aqui apresentadas possuíam diversas características afins: a capa ilustrada, a presença de publicidade em forma de sonetos e quadrinhas, a presença de charges. Apontarei, a seguir, apenas alguns traços da diagramação das capas que já servem como termômetro para uma comparação das semelhanças e diferenças entre as duas revistas, considerando apenas exemplares do ano de 1902, visto que depois disso a revista curitibana se extinguiu, enquanto a carioca ampliou seu esquema empresarial e seu alcance de público, até se tornar uma das principais revistas brasileiras da primeira metade do século XX.
20. Algumas das características visuais presentes na capa da Caras e Carrancas número um repetem-se na capa do primeiro exemplar de O Malho, outras são bem distintas [Figura 4 e Figura 6]. A disposição do título na parte superior e a imagem ocupando a maior parte da página responde a uma estrutura semelhante, inclusive a presença de um elemento horizontal que marca a divisão entre as partes da capa aparece nas duas revistas. O mesmo ocorre quanto à forma de indicação do número da revista e do local de publicação, ambas no alto da página em letras pequenas - apesar de que no periódico curitibano se optou pela colocação das informações nos cantos da página. O tratamento dos detalhes, porém, é diferente. Em O Malho, há mais limpeza na disposição do título, cujas letras desenhadas foram colocadas dentro de um retângulo claro e sem elementos figurativos. Os ornamentos restringem-se a umas pinceladas vermelhas, que proporcionam uma certa ilusão de volume às letras, quando tomadas de relance. Aliás, uma diferença gritante é a questão da cor: Caras e Carrancas resolve tudo em preto, branco, manchas de cinza e as hachuras que criam tons médios. Em O Malho chama a atenção a presença do vermelho principalmente nas vestes do personagem humano e do tom ocre aquarelado que cria a moldura das duas partes principais da capa. A ênfase no vermelho também apareceria em outras capas da revista, como pode ser observado nas edições de número quatro, sete e oito [Figura 7].
21. Quanto à imagem principal da capa de O Malho número um, assinada por Crispim do Amaral, a representação do ambiente de trabalho do personagem integra-se às palavras que indicam o teor da revista: um homem caricato com uma enorme marreta e sentado sobre uma bigorna indica, com o braço, os dizeres “semanário humorístico, artístico e literário”. Ao seu redor, os embrulhos com formato de materiais impressos prontos para serem despachados contêm palavras que indicam alguns dos temas contemplados pela revista - arte, política, assuntos diversos, com “cumprimentos à imprensa”. Título, imagem e palavras confluem, assim, para a unidade da capa. Já não se pode dizer o mesmo das capas de Caras e Carrancas, às quais geralmente falta unidade estilística, uma vez que os desenhos (humorísticos) utilizados para emoldurar o título são bastante diferentes das cenas e/ou retratos (celebrativos) que aparecem na sua metade inferior.
22. Um outro aspecto que chama a atenção nas capas das edições de O Malho ao longo de 1902 é a variação constante no desenho das letras do título, o que indica uma carência de raciocínio em termos de design gráfico. O fato de trazer um estilo diferente de letreiro a cada nova edição parece-me dificultar a fixação de uma identidade visual para a revista, ao contrário do que ocorria com as capas de Caras e Carrancas, onde a presença do mesmo letreiro ornamentado em todas elas criou uma constância visual que perseverou do primeiro ao último número. O risco, aí, seria o da monotonia. Mas jamais a falta de identidade que parece ocorrer entre algumas edições de O Malho. Por exemplo, entre as capas número quatro e número seis [Figura 7]. Na capa de número quatro, também assinada por Crispim do Amaral, vê-se uma caricatura de um homem de perfil, com imensos bigodes, e o título da revista em destaque no alto da página, na qual realça a cor vermelha, tanto na faixa que serve de fundo para o título, quanto no uniforme do personagem. Já na capa de número seis, assinada por F. Aurélio, a imagem parece ter função apenas ornamental. Não traduz o humor e a sátira que o conteúdo da revista expressa, tendendo mais à temática do Art Nouveau (figura feminina e elementos orgânicos da natureza), ainda que sem a resolução formal desse estilo originário da Europa. O tipo de sombreado com hachuras, buscando representar os volumes e os planos que distinguem rosto, pétalas e folhas, fica a meio caminho entre estilização e desenho naturalista, como acontecia nos retratos feitos por Silveira Netto. Sem falar que a legibilidade do título da revista ficou bastante prejudicada por ter sido ele colocado como parte da imagem: em curvatura que acompanha o movimento visual do galho, separando a letra “o” da palavra “malho”, e sem contrastes cromáticos.
23. Em resumo, pode-se dizer que as duas revistas aqui apresentadas deixaram evidências, na sua diagramação, de que buscavam um caminho de afirmação dentro do universo de periódicos ilustrados que circulavam no país naquele início do século XX. Entre acertos e carências, ambas recorreram às imagens para atender a diversas funções, desde a simples ornamentação, até a emissão de juízos críticos sobre os assuntos representados, fosse em forma de homenagens ou de sátiras sociais. Quanto à sua diferença de duração, seu estudo exigiria a consideração das particularidades de cada contexto. No caso de Curitiba, uma estrutura mais firme para a existência desse tipo de revista seria visível somente alguns anos mais tarde, sendo que entre 1907 e 1913 floresceriam as principais revistas de humor na cidade. Caras e Carrancas foi, em certa medida, pioneira naquela capital de província, e por esse esforço merece ser revisitada.
Referências
bibliográficas
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* Doutora em História, UFPR. E-mail: rosane.kaminski@bol.com.br
[1] Para maiores detalhes sobre o surgimento da imprensa ilustrada e humorística no Brasil, ver os livros de Nelson Wernek Sodré e de Elias Thomé Saliba citados na lista de referências bibliográficas.
[2] Segundo o historiador Newton Carneiro, a atividade gráfica em Curitiba foi favorecida pela chegada de profissionais urbanos e artesãos a partir da emancipação da província, ocorrida em 1853. O primeiro estabelecimento litográfico na cidade data de aproximadamente 1884, quando da vinda do desenhista catalão Narciso Figueras. Tratava-se da Litografia do Comércio. A partir daí passaram a surgir revistas ilustradas em Curitiba, como a Revista do Paraná, de 1887, da qual foram editados sete números, e logo em seguida a Galeria Ilustrada. Mas nas duas primeiras décadas do século XX, quando se multiplicaria o número de empresas gráficas especializadas, é que se constituiria na cidade uma estrutura técnico-industrial capaz de sustentar a existência de diversas revistas satíricas, algumas das quais impressas em policromia e em papel couchê (CARNEIRO, 1975b: 10-24).
[3] Como exemplo, podem ser citados os estudos iconográficos das revistas de humor que foram desenvolvidos pela historiadora Marilda Pinheiro Lopes Queluz.
[4] Sobre a discussão acerca da existência do design como prática social (atividade projetual relacionada à produção e ao consumo em escala industrial) antes da formação de uma consciência do design enquanto campo profissional, sugiro a leitura da introdução de CARDOSO, 2005: 7-16.
[5] Caracterizado por uma atmosfera esotérica e anticlerical, o grupo de escritores ligados ao simbolismo no Paraná foi bastante expressivo na virada do século XIX para o XX. Dario Vellozo, Emiliano Perneta, Rocha Pombo e Silveira Netto estiveram entre os de maior destaque. Os simbolistas foram responsáveis pela publicação de diversas revistas entre 1890 e 1920, como por exemplo: Pallium, A Pena, Turris Eburnea, Azul, O Sapo, Victrix, entre outras.
[6] Caras e Carrancas n. 1. Curitiba, 27 set.1902, p. 2.
[7] Caras e Carrancas n. 8. Curitiba, 15 nov.1902, p. 2.
[8] A revista O Malho número 1 data de 20 de setembro de 1902, exatamente uma semana antes do que o lançamento de Caras e Carrancas.
[9] De acordo com Joaquim Fonseca, o que diferencia a charge de outros tipos de caricatura é justamente o seu caráter temporal, pois trata de algum “fato do dia”, geralmente de conhecimento público (FONSECA, 1999: 26).
[10] A Escola de Artes e Indústrias do Paraná, fundada pelo português Mariano de Lima em Curitiba no ano de 1887, foi o primeiro estabelecimento de ensino de artes na cidade, e formou a primeira geração de desenhistas que atuaram como caricaturistas na virada do século XIX para o XX (DIEZ, 1995). Sobre a passagem de Silveira Netto pelas aulas de Mariano de Lima e pela oficina litográfica de Figueras, ver: CARNEIRO, 1975a: 41.
[11] Para um perfil dos principais “humoristas” que foram responsáveis pela imprensa de humor na Belle Époque brasileira, bem como da sua condição sócio-cultural, geralmente à margem dos circuitos institucionalizados da cultura erudita, ver: SALIBA, 2002: 152-153.
[12] Caras e Carrancas n. 1. Curitiba, 27 set.1902, p. 2.
[13] NETTO, Silveira. Cântico Erradio. Caras e Carrancas n. 4. Curitiba, 19 out.1902, p. 2.
[14] Caras e Carrancas n. 6. Curitiba, 31 out.1902, p. 2.
[15] O Malho n. 1. Rio de Janeiro, 20 set. 1902, p. 10.
[16] Sobre os primórdios da indústria publicitária no Brasil, em fins do século XIX e sobre a grande adesão dos escritores à publicidade, uma vez que encontravam ali um novo espaço de profissionalização, ver: SUSSEKIND, 1987: 60-70.