Bethencourt da Silva e a Sublimidade da Arte

Doralice Duque Sobral Filha [1]

SOBRAL FILHA, Doralice Duque. Bethencourt da Silva e a Sublimidade da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/bs_sublime.htm>.

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Quando a arte é consequente com ela mesma, leva de maneira bem mais segura cada coisa para seu fim.

Victor Hugo - 1827

Escrever sobre um personagem que ainda é pouco conhecido no campo disciplinar da arquitetura é uma tarefa difícil, pois requer um levantamento minucioso, sobre onde o arquiteto atuou, os agentes com quem interagiu, suas obras, seu pensamento a respeito da arte que produziu, além dos aspectos sócio-culturais com os quais esteve ligado. No entanto, será possível englobar tais aspectos da produção arquitetônica de Joaquim Francisco Bethencourt da Silva (1831-1911), em uma visão biográfica? No tocante da história da arquitetura oitocentista, mostra-se de grande relevância tal faceta, uma vez que poucos estudos sobre este período estão relacionados diretamente à vida de seus projetistas, o que deixa, por sua vez, uma lacuna sobre às influencias teóricas e práticas no decorrer das atividades destes profissionais.

Neste sentido, ao adentrar-nos no universo particular do personagem Bethencourt da Silva, diversas questões que permeiam sua trajetória de vida nos enchem de interrogações e nos instigam a tentar revelar as ideias e os pensamentos presentes em sua atividade artística. Trazer a tona tais revelações não é tarefa fácil, no entanto: os problemas aos quais as obras de arte[2] se relacionam, fazem parte de um sistema cultural e de uma situação histórica, que o historiador busca analisar como um conjunto de relações de fatores interatuantes (ARGAN, 1992, p. 21). Sendo assim, temos como eixo central a figura do arquiteto como sujeito da ação es seu tempo e procuraremos relacioná-lo no sentido objeto-sujeito e sujeito-objeto, proposto por Bourdieu (1995, p. 15), proporcionando a possibilidade de singularizar o objeto literário.

Refletindo sobre o recurso da biografia como método, Bourdieu (1995) alerta sobre o risco de uma "ilusão biográfica" e adverte sobre a “trajetória” reconstituída no campo, artístico e literário, onde se desenvolveu. Uma pequena ideia da vida de Bethencourt da Silva, personagem ainda pouco conhecido em termos de estudos e análises sobre sua obra, demonstra que a necessidade de compor sua trajetória de vida é de grande importância para compreender o pensamento artístico de sua época.

Formado pela Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde foi discípulo de Grandjean de Montigny, Bethencourt da Silva, ao longo de sua carreira como arquiteto de obras públicas, projetou diversas obras importantes na cidade do Rio de Janeiro. Demonstrando a multiplicidade de sua profissão, concebeu desde peças de mobiliário até um bairro - Vila Isabel, na capital carioca. Fundou a Sociedade Propagadora das Belas Artes e, junto a ela, o Liceu de Artes e Ofícios, ainda com 27 anos de idade. Publicou, a partir de 1855, diversos artigos em jornais e revistas, demonstrando também sua aptidão para a crítica literária, expondo sempre suas opiniões sobre o contexto das Belas Artes na capital do Império. Foi professor da Academia de Belas Artes, da Escola Central e do Liceu, atuando na formação técnica, artística e artesanal dos profissionais ligados à construção. Sobretudo, foi poeta romântico, por influência dos literatos, muitos dos quais amigos de juventude, como Álvares de Azevedo, José de Alencar, Machado de Assis, Casimiro de Abreu, Manuel Antonio de Almeida, dentre outros.

Dentro do universo do Romantismo - onde muitos dos escritos de Bethencourt da Silva se delineiam -, buscamos trazer para o campo disciplinar da arquitetura, uma perspectiva diferente e, ao mesmo tempo, esclarecedora, no que diz respeito as teorias em voga no século XIX para a configuração dos chamados estilos arquitetônicos (neoclassicismo, ecletismo etc.), formuladas a partir dos escritos de Bethencourt, associados à autores de referência para a época e para a teoria da arquitetura.

Neste sentido, buscaremos no que segue apresentar algumas de suas ideias a respeito da arte que vinha se desenvolvendo no seu tempo, fazendo referências aos termos utilizados pelo universo romântico tais como gênio, nação, imitação, indústria, ideal, progresso etc., e, sobretudo, o termo sublimidade, refletindo sobre o contexto da teoria e a da prática que vinham sendo desenvolvidas na arquitetura oitocentista.

Acentuamos que, conforme Argan (1992, p. 11), quando se fala de arte que se desenvolveu na Europa e na América durante o século XIX e XX, os termos clássico e romântico esclarecem a cultura artística moderna, centrada na dialética entre esses dois conceitos, onde a busca por uma maior autonomia e expressão artística apontam ideias intrínsecas de nacionalidade da arte.

O Romantismo configura-se, como afirma Guinsburg (2008, p. 13), em uma escola, uma tendência, uma forma, um fenômeno histórico e até mesmo um estado de espírito, muitas vezes de caráter nacionalista, como colocava o próprio Bethencourt (1901, p. 347): “O ideal tem aqui um dos seus templos; e o romantismo, que engrandeceu a arte na Europa, há de com mais razão enriquecer os frutos da musa nacional” [grifo nosso].

É importante ressaltar também, que o Romantismo conheceu um longo período de escassez de pesquisas na área artística, especialmente no campo disciplinar da arquitetura. Nas palavras de Paulo Santos (1976, p. 65):

Se na literatura é possível prescrever as etapas do Romantismo, em que além de Rousseau e Bernadin de Saint-Pierre se inscreveram: Mme de Stael, Goethe, Chateaubriand, Lamartine, Hugo, Vigny, Musset, etc., e no Brasil: Porto Alegre, Gonçalves de Magalhães, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Macedo, Alencar, Bernardo Guimarães, etc. - já o mesmo não se pode dizer para a arquitetura, em que o Romantismo, numa evasão predominantemente para o passado ou para longe, independente da cronologia e sem fronteiras delimitadas, mesclou-se às mais diversas manifestações estilísticas. Invadiu, por exemplo, o neoclassicismo [...].

O Romantismo, como estado de espírito foi associado, na arquitetura, a palavra evasão - para o sonho e para a fantasia (SANTOS, 1976) -, o que pode também sugerir, além de vários questionamentos estilísticos, uma atitude de vanguarda relacionada à rejeição ou mesmo crítica aos procedimentos já estabelecidos.

Zanini (2008) aponta para o fato de que as pesquisas de cunho formalistas contribuíram para desfavorecer a compreensão da expressão plástica romântica, fundamentada em complexos valores ideológicos. O Romantismo, assim, configura-se como arte constituída predominantemente na livre produção do sujeito no seu tempo e no seu espaço, e como fruto do caráter autônomo do artista e de sua imaginação criadora (D'ANGELO, 1998, p. 123). Neste sentido, como adiantado, partimos do pressuposto de que, para identificar a arte romântica, é preciso codificá-la na vida do personagem, nas suas atitudes e escolhas, a fim de captar sua "expressão"[3] - aquilo que, a partir desses condicionantes, transformou-se em singular e característico.

Sublimidade da Arte! Eis a vossa origem!”, assim dizia, em 1884, o arquiteto, professor e poeta Bethencourt da Silva, em seu livro Vulgaridade da Arte: o poeta e o artista, a poesia e a arte, a arte e o artista,[4] que, durante as quase três décadas anteriores, já lutava pela liberdade e autonomia da arte como meio fruitivo de civilizar a nação[5]. Seus pensamentos se encontram na busca do sublime artístico, no enobrecimento e no grau de elevação do imaginatio, do gênio, que surgiria surgisse do aprendizado e da inspiração do gosto.

Para Victor Hugo (2010, p. 81) “toda época tem suas ideias próprias; é preciso que tenha também as palavras próprias a estas ideias”. O termo sublime adquire importância nos escritos do Bethencourt da Silva e revela uma identidade romântica e idealista, profundamente influenciado pela literatura e estética francesa: Chateaubriand, Lamartine, Hugo, Vigny, Musset, Dechamps, dentre outros. Assim, como no significado corrente da palavra - “sublimado, sublime ou sublimidade [Do lat.] o que atingiu um grau muito elevado na escala de valores morais, intelectuais ou estéticos, quase perfeito”, - Bethencourt da Silva buscava uma maneira de civilizar o meio e promover os artistas nacionais. A sublimidade da arte retrataria, no dizer do autor, “a feição moral, o viver religioso, o patriotismo e o amor da família no lar doméstico. O amor do honesto e do justo; o progresso material e intelectual; a riqueza enfim, do paiz em que florescem” (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 207).

A busca do sublime na arte que, ao ser açcançada, retrataria este grau de civilidade da sociedade, e se manifesta também na procura da liberdade expressiva e na simplicidade da ação criativa:

Vida intelectual e moral do homem, a alma é essa faculdade invisível, esse poder pelo qual, segundo o dizer de Thales, o homem manifesta necessidades, exigências e dons distintos, imateriais e assaz diferentes das precisões do corpo e da existência animal. É enfim uma substância intelectual que percebe as ideias e os sentimentos na complexa majestade de ver, sentir e criar no seu próprio ser. (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 197)

Para a filosofia Romântica, iniciada pelos alemães (Schlegel, Schiller, Wackenroder, Tieck) nos finais do século XVIII, sublime significou uma forma linguística, literária ou artística que expressava o sentimento ou atitudes elevadas. A individualidade, desta forma, opera por meio do gênio[6], numa união da atividade consciente e inconsciente (D’ANGELO, 1998, p. 116). O gênio, que para Schelling compreende a única faculdade capaz de explicar a contradição entre o que é belo ou não, está presente em qualquer produto artístico. Já Victor Hugo iria pregar, como principio de liberdade da arte, no seu Prefácio de Cromwell, publicado em 1827.

É da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão complexo, tão variado nas suas formas, tão inesgotável nas suas criações, e nisto bem oposto à uniforme simplicidade do gênio antigo. (VICTOR HUGO, 2010, p. 28)

O “gênio moderno”, capaz de distinguir e se apoderar da união do feio com o belo, constitui o herói que Hugo busca na variedade expressiva das formas: “O belo tem somente um tipo, o feio tem mil”, coloca este, quando se dá conta que a limitação tolhe os sentidos da expressão do sujeito. O grotesco seria um pormenor presente em grande quantidade nas formas, das mais variadas possíveis, e se harmonizava não apenas com o homem, mais com toda a criação. (VICTOR HUGO, 2010, p. 36)

Imprime sobretudo seu caráter a esta maravilhosa arquitetura que, na Idade Média, ocupa o lugar de todas as artes. Prende seu estigma na fachada das catedrais, emoldura seus infernos e seus purgatórios sob a ogiva dos portais, fá-los flamejar nos vitrais, desenrola seus monstros, seus cães de fila, nas bordas dos telhados. Estende-se sob inúmeras formas na fachada de madeira das casas, na fachada de pedra dos castelos, na fachada de mármore dos palácios. (VICTOR HUGO, 2010, p. 38)

O “sublime rodeado de todos os grotescos” seria, assim, a harmonização mais criativa do produto artístico: a compreensão do universo das formas e a imersão do sujeito na história da arte levaria a esse caminho libertário. A história da arte revelaria, portanto, uma variedade de modelos existentes que, por sua vez, corresponderiam a cada momento e lugar, onde o artista reverteria à fonte de sua experiência subjetiva. Bethencourt coloca que

Estudar a arte em todo o poder de sua força, predispol-a para todos os esforços do trabalho do homem, vencer as suas leis formando combinações admiráveis, para igualando um briareu de mil braços e força hercúlea, levantar um muro, polir o mármore, moldar o corpo, dar-lhe belleza e graça, estudar todo o alcance do seu emprego, tal é por sem duvida o dever de todos os artistas. (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 206)

O sublime resultaria em um processo de associação de imagens e formas que se transformariam em deleite, porém sem regras fixas que garantissem a expressão do belo. Partindo da individualidade de interesse e da imaginação, o termo configuraria um dos correlatos do valor da autonomia da arte: “No domínio intelectual da arte as imagens são mais prefixas do que as da natureza e da história; - os símbolos são mais ideais e por isso mesmo mais belos, mais sublimes e mais duradouros do que essas existências imóveis e fugitivas do mundo real” (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 199).

Ainda no século XVIII, a palavra foi definida por Edmund Burke no seu livro Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo, de 1757. Segundo Argan (1992, p. 19), quase ao mesmo tempo, John Robert Cozens definia o “pitoresco”. As duas categoria possuíam uma relação humana com a natureza diferente da visão classicista[7]. No entanto, “cada uma dessas categorias tem seus precedentes históricos: o belo, já prestes a desaparecer, vem de Rafael; o 'sublime', de Michelangelo; o 'pitoresco', dos holandeses” (ARGAN, 1992, p. 19).

Em Vulgaridade da Arte, bem como em vários outros textos de Bethencourt da Silva[8], encontramos sua afinidade com a obra de Michelangelo e, consequentemente, com as ideias do sublime:

Aqueles que só nas formas da natureza terrestre descobrem o belo de que revestem suas obras, não podem sentir nem avaliar talvez o que há de febril e de fantasioso, de sublime e de magnânimo, na inspiração olímpica do poeta, que evocando do limitado da natureza, do bronze, do mármore, da tela dos vocábulos ou do nada - a criação do seu ideal, acorda do sepulcro dos tempos, como Cristo a Lázaro, a existir do herói que foi na terra, para perpetuá-lo então a luz do sol, ou que descortinado ao caos dos increados séculos, diz ousado, ao futuro que há de vir:

Ai tens a norma do teu viver de um dia.

Michelangelo, esculpindo a estátua de Moisés que o empoeirado véu da campa escondia da admiração dos vivos, ou rasgando as névoas do porvir, ainda tenebroso, na excelsa prova do seu gênio [...] é a onipotência do talento que engrandecido das lutas do trabalho se eleva às regiões do Criador dominado pela impetuosa paixão da imortalidade. (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 207)

Argan (1992, p. 19) aponta Michelangelo como ponto de referência para diversos artistas, como exemplo supremo do artista inspirado, diferente da visão classicista daquele que é capaz de compor sabiamente uma obra de arte, mas aquele “que capta e transmite mensagens ultra terrenas”. Assim, como os pintores William Blak e William Blake, Bethencourt não esconderia sua admiração pelo trabalho do artista maneirista. O impacto do momento da criação, como pura espontaneidade revela-se como a sinceridade artística, “assim, o valor da obra passa a residir em algo que não está nela objetiva e formalmente, e sim subjetivamente no seu autor” (GUINSBURG, 2008).

A arte torna-se, a partir desse ponto de vista romântico, uma expressão[9], ao invés de imitação da natureza, e nesta antítese entre mimesis e poeisis, o romantismo é visto como oposição violenta ao classicismo (GUINSBURG, 2008). Para Victor Hugo (2010, p. 63) “a arte dá asas e não muletas”. Seguir as regras, imitar os modelos tem, para Victor Hugo,comporta um dualismo e um questionamento: se foram as regras que formaram os modelos, antes deles existiam modelos segundos os quais tornaram-se regras (Ibid, p. 62).

Percebemos a influência deste literato nos escritos de Bethencourt, que acrescenta: “a arte não é escrava, mas antes emula da realidade”. A imitação para ele, “esteriliza o engenho, assim como a cópia destrói as belezas da originalidade”. No entanto o arquiteto se questiona:

Se o estudo, a observação, o trabalho e as regras não são elementos vivificadores da imaginação e do talento, desse mesmo talento que mais tarde se chama gênio, temos que admitir o paradoxo de alguns artistas dissidentes do amor ao trabalho e ao estudo, que querem estabelecer o sentimento e o gosto como a causa eficiente e absoluta da arte, o que seria pretendê-la, por absurdo, sem regras nem preceitos. (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 218)

Esta superação da arte pela arte[10] é um dos elementos que vai se destacar no arquiteto brasileiro. Segundo Rocha-Peixoto (2004, p. 438), Bethencourt não rejeitou a tradição clássica recebida, mais ampliou seus domínios, construindo no seu dizer, um classicismo sublimado”[11]

Os instrumentos de maior precisão matemática, os processos físicos ou filosóficos de que servem o poeta e o artista para revelar a arte constituída na faculdade produtiva do espírito, são dificuldades que cumpre vencer e dominar sob os caprichos da sua múltipla vontade; e se isto é assim, está claro que tanto mais hábil será o artista quanto mais adestrado for o mesteiral no emprego desses mesmos fatigantes e indispensáveis meios de revelação da arte. (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 207)

Percebe-se pela colocação acima, que o arquiteto via as regras como meio e não fim, como uma maneira libertária, embora fatigante no seu exercício, de alcançar um conhecimento e um processo superior de enobrecimento da própria arte e assim “atingir a pureza da forma”. Sem a veia ortodoxa do Classicismo, Bethencourt se integra a uma visão tanto poética quanto racionalista. Argan (1992, p. 12) colabora na compreensão, deste fato nos mostrando que, na questão do estilo, o próprio neoclassicismo foi uma fase do processo de formação da concepção romântica e que os artistas, de início, adotavam modelos com formas clássicas[12]. Zanini (2008, p. 186) aponta que a quebra de uma estrutura repressiva da liberdade individual corresponde, na arte, à superação dos cânones, e, embora a época romântica tenha adotado normas formais de base classicista, a arte abre-se à introspecção e à nova responsabilidade da consciência histórica.

Numa tomada de decisão frente à própria história, o artista é dono do seu tempo e constrói sua arte por meio de uma nova relação entre os campos artístico, ideológico e literário. A nova problemática assumida pelos artistas do século XIX, de construir uma arte que correspondesse aos anseios de seu tempo, é de fato um dos questionamentos em comum sobre o campo disciplinar da arquitetura oitocentista e uma aventura na formulação de conceitos próprios para cada artista.

Considerando, no sentido de sublimidade, a questão da nacionalidade, a busca de uma raiz ideal comum no mundo ocidental se submeteu ao cristianismo, como fonte de expressão; assim, também, os temas mitológicos e medievais tornam-se frutos de uma ideia de origem comum.  A valorização do Gótico na arquitetura do século XIX, por exemplo, representou não apenas o sentimento popular, mas a variedade e a riqueza na decoração, a complexidade estrutural, o alto nível da técnica empreendida pelos artesões locais e o objeto como produto de várias gerações que perpassam a história das comunidades. Zanini (2008, p. 191) vai salientar que:

Motivações de ordem nacionalista foram primordiais nesse reaproveitamento de uma expressão antepassada e na redescoberta de monumentos prestigiosos e de cidades que haviam conservado a aura medieval. além do Gótico, outros elementos de estilo, da Idade Média e da Renascença, foram absorvidos por uma nação que procurava símbolos e razões para a sua afirmação no presente.

Nos escritos de Bethencourt observamos uma preocupação no estudo da arte, seja por meio da história (teoria ) ou da prática, a educação artística se tornaria um alicerce para a constituição da própria arte nacional. Este tipo de pensamento revela, por sua vez, uma atitude crítica da própria cultura arquitetônica vigente, expressando também uma busca por compreender os motivos da sua diversidade. Quando o arquiteto brasileiro projeta as agulhas torres da Igreja do Sacramento no estilo Gótico [Figura 1], em 1875, denota uma inclinação para a individualidade e a criatividade imbuídos no espírito romântico e nacionalista[13].

Para Felix Ferreira (1875, p. 35-36) harmonizar os dois estilos na Igreja do Sacramento denotava muito estudo e profundo conhecimento de arte. O crítico de arte acrescenta:

A ordem dórica, simples e severa, a custo pôde ser continuada pelo estylo ogival, gracioso e florido, sem que, ao mais simples lanço d'olhos, na passagem desta para aquella architectura o espírito não experimente o mesmo choque que ao passar do pomar cheio de arbustos cobertos de flores e fructos para a campina rasa e monótona. No entanto, tão bem andou o artista nesse commetimento, tanto simplificou o ogival, tão suavemente aproximou as duas architecturas que, sem deixar de serem distinctas, chegam a harmonisar perfeitamente.

Alan Colquhoun (2004, p. 29) informa que a imitação medieval da construção, que agradava aos românticos, dá margem a um mais alto grau de liberdade "parataxica"[14] e que embora, a primeira vista, incompatível com a visão de totalidade orgânica preconizada pela estética romântica, "a superfície fragmentária e aparentemente desordenada de uma obra de arte, longe de indicar a falta de unidade orgânica, era, na verdade, um sinal da mais profunda unidade, que escapava à analise por surgir das profundezas da mente do artista" (Ibid, p. 45). Para Tzonis e Lefaivre (1986, p. 244) a utilização de um esquema paratáxico "é mais permissivo e mais tolerante do que qualquer um dos esquemas de ordem formal do classicismo" que parte da liberdade criativa e intelectual do artista.

Sobre a mistura de estilos o poeta alemão Wackenroder (Apud d’Angelo, 1998, p. 124-125) coloca que se a arte romântica é revelação do sentir do artista, não se podem comparar as obras de arte de autores, e ainda menos as de países e de épocas diferentes, a termos de comparação abstrata; pelo contrário, é preciso operar uma transferência, por assim dizer, para o sentimento daquele que a produziu, procurando compreender aquilo que pretendia exprimir. "Agora, a obra de arte, em uma concepção romântica, deve expressar em vez de imitar" (SOLÁ-MORALES, 2003, p. 36) o que, neste sentido, rompe completamente com o classicismo.

Colquhoun (2004, p. 29) coloca que ao representar um período histórico o pensamento sobre o campo da própria história estaria claramente retornando à uma prática eclética de arte, e que, no entanto o ecletismo a priori, nunca rompeu seus laços com a tradição clássica. Segundo esse autor, o ecletismo “meramente qualificara essa tradição com exemplos de outros estilos, ora utilizando esses estilos para dar variedade aos temas clássicos, ora utilizando-os para purificar a noção do classicismo”. Como exemplo, podemos citar Viollet-le-Duc instrumentalizando reduzidamente alguns princípios da arquitetura gótica na busca de sua essência, ou mesmo como modelo de prática construtiva.

A associação de temas de outras culturas como a egípcia, chinesa, indiana, árabe etc., bem demonstra o pluralismo do século XIX, aportado pelo maior conhecimento histórico e dos procedimentos normativos, o que colocou “em crise a unidade da cultura antiga” (SOLÁ-MORALES, 2003, p. 16).  No se refere a vanguarda, a arte volta-se para o futuro num ensejo de consciência histórica, e, nessa atitude de rejeição às normas pré-estabelecidas, insere no modelo já instaurado novas formas e novos conteúdos.

Nas palavras de Bethencourt:

Procurar, pois, as leis estéticas da arte, conhecer teoricamente os princípios filosóficos em que ellas se baseiam; desenvolver praticamente, isto é, submeter ao trabalho de cada mister as conseqüências dessas teorias, de modo porém, a governar essas leis e esses princípios como senhor e não escravo delles, tal parece ser o anhelo e o fim de todos os artistas. (BETHENCOURT DA SILVA, 1901, p. 218)

O sentido da superação na arte é identificado como principal propósito da sublimidade, e a liberdade requerida pelo artista, que por sua vez busca assumir responsabilidade no seu papel profissional - no seu projetar -, o faz livre para utilizar temas históricos e temáticas diversas em suas obras.

A visão do sublime, trazida do pensamento romântico, e fruto ainda das suas aventuras poéticas da mocidade ou mesmo da influência do seu mestre de formação acadêmica, Grandjean de Montigny, é repensada por Bethencourt como meio de alcançar a autonomia do artista, sua individualidade imaginativa e sua expressão.

Numa panfletagem a favor da intuição, criatividade e individualidade, frente a adoção cega e rígida das normas, o arquiteto busca na valorização do artista o fator chave para sua superação, advindas também pelo profundo conhecimento e estudo histórico. A capacidade produtiva do artista - o gênio - faz com que a arte seja pensada como livre produção do sujeito, o que implica em apresentar sua expressão diante da realidade pré-estabelecida.

Compreender e associar, entretanto, alguns elementos chaves do romantismo brasileiro na arquitetura, aproximar a teoria à prática, ou melhor, unir ao estudo os escritos e a obra do arquiteto brasileiro, talvez nos aponte um caminho de novas descobertas sobre a produção arquitetônica oitocentista. Assim, demonstramos que a estética romântica faz parte da literatura artística e é crucial para adentrar nas ideias e conceitos colocados por Bethencourt em seus textos.

No entanto, se para os românticos o belo é resultado de uma escolha e uma escolha é um ato crítico e racional, cujo ponto de chegada é o conceito, podemos pensar numa atitude vanguardista nos escritos e ou nas obras de Bethencourt da Silva?

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[1] Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Arquitetura PROARQ - FAU - UFRJ

[2]Uma obra de arte é vista como tal quando tem importância na história da arte e contribuiu para a formação e desenvolvimento de uma cultura artística” (ARGAN, 1992, p. 19)

[3] Dos vários termos utilizados na linguagem artística moderna, 'expressão' nasce no Romantismo, como tradução da personalidade, uma afloração das vivências reais.

[4] O Livro publicado sobre a forma de folheto em 1884 encontra-se na seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional em processo de restauração e não foi possível acessá-lo até o momento. O mesmo texto foi publicado posteriormente em 1901, no livro Dispersas e Bosquejos Artísticos (páginas 179 a 224) que é uma compilação de vários textos publicados por Bethencourt da Silva no qual utilizamos como fonte primária para a constituição do artigo.

[5] Ver seus escritos iniciais na seção de Bellas Artes das revistas: O Brazil Illustrado (1855-1856), O Brazil Artístico (1857), O Espelho (1859-1860) e Revista Brasileira (1879).

[6] Para Rosenfeld e Guinsburg (2008), o conceito de gênio reúne, de certa maneira, todos os conceitos, todas as ideias e aspirações do Romantismo. “Em seu âmbito fica compreendida particularmente a revolta radical contra as regras tradicionais, canonizadas do Classicismo, contras as “autoridades” clássicas, contra os padrões consagrados, porque o gênio, evidentemente não se deixa guiar por modelo nenhum; ele cria livre e espontaneamente; ele não se atém a norma nenhuma, porque nem sequer conhece as normas”.

[7]Poética do Absoluto, o “sublime” se contrapõe ao “pitoresco”, poética do relativo”. (ARGAN, 1992, p. 20)

[8] Ver seus escritos iniciais na seção de Bellas Artes das revistas: O Brazil Illustrado (1855-1856), O Brazil Artístico (1857), O Espelho (1859-1860) e Revista Brasileira (1879).

[9] Segundo Benedito Nunes, “a estética do Romantismo refletiu na sua terminologia, principalmente no metaforismo do conceito de "expressão" significando, como "tradução" da personalidade, uma afloração das vivencias reais” ( NUNES, 2008, p. 58).

[10] No Romantismo: "É, certo, um período em que os postulados da arte pela arte, como resultado da situação da excepcionalidade em que o artista se coloca diante da sociedade, adquirem uma força ponderável mas é também o momento em que desperta a consciência do exercício da arte no encontro com realidade social" (ZANINI, 2008, p.188)

[11]A palavra [sublimado] pode ser entendida no sentido de controlado já que foi a partir do domínio magistral da composição que essa invenção se deu. Do controle vem o ‘domínio’ que permite transcender e subjugar o vocabulário para alargar seus domínios. Mas pode ter também o sentido de elevado a grau sublime, uma vez que a vontade subjacente é de superação”. (ROCHA-PEIXOTO, 2004, p. 438).

[12]Pode-se, pois, afirmar que o Neoclassicismo histórico é apenas uma fase do processo de formação da concepção romântica: aquela segundo a qual a arte não nasce da natureza, mas da própria arte, e não somente implica um pensamento da arte, mas é um pensar por imagens não menos legítimo que o pensamento por puros conceitos” (ARGAN, 1992, p.12)

[13] Para Solá-Morales (2003, p. 48), o movimento romântico e nacionalista encontra no gótico uma referência,especialmente por revelar uma certa idéia de liberdade individual e de criatividade, além de se converter em um grito e uma afirmação do indivíduo de deus valores pessoais frente a sociedade e a ordem estabelecida.

[14] Disposição das coisas lado a lado: "O que agradava os românticos em relação à arte medieval era a sua mistura de estilos e sua parataxia" (COLQUHOUN, 2004, p. 44).