Charles Baudelaire e Constantin Guys - Arte e Moda no Século XIX [1]
Elaine Dias
DIAS, Elaine. Charles Baudelaire e Constantin Guys - Arte e Moda no Século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/baud_guys_ed.htm>.
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Há alguns anos, o Musée de la Vie Romantique de Paris exibia uma interessante e reconciliadora exposição sobre o artista Constantin Guys. Intitulada Constantin Guys - Fleurs du Mal[2], evocava não somente a ligação que se estabeleceu entre Charles Baudelaire e este artista, mas também a íntima relação de Guys com a crua, instigadora e moderna realidade do século XIX francês. Ao mesmo tempo, a exposição resgatava a importância deste que foi considerado por Baudelaire “o pintor da vida moderna”, e que foi, durante anos, considerado por muitos como o artista jornalista e, portanto, menos apreciado no âmbito do sistema artístico.
No Salão de 1845, Baudelaire escrevia sobre a relação que deveria se estabelecer entre o pintor e a vida cotidiana, entre o artista e a modernidade. Quem deveria ser o pintor da vida moderna?
Celui-là sera le peintre, le vrai peintre, qui saura arracher à la vie actuelle son côté épique, et nous faire voir et comprendre, avec de la couleur ou du dessin, combien nous sommes grands et poétiques dans nos cravates et nos bottes vernies[3]
A célebre frase acerca do heroísmo da vida moderna se associaria, no Salão de 1846 e, sobretudo, nas décadas de 1850 e 1860, à ideia de que a modernidade é a reunião do eterno e do transitório, revelando um interesse especial na moda e sua relação com a beleza, com o imprevisível e o passageiro, com a fascinação feminina pela aparência.
O interesse de Baudelaire pela vestimenta, pelo transitório e pela modernidade assistida nas ruas de Paris levará o crítico a iniciar uma coleção dos desenhos de Constantin Guys. Será Champfleury quem dará a Baudelaire o alerta sobre o artista, comprando para ele os primeiros desenhos de sua coleção[4], que crescerá demasiadamente ao longo dos anos. Ali estavam contidos os testemunhos de Guys na sua observação da realidade parisiense. Homens bem vestidos, mulheres elegantes, as ruas de Paris, a prostituição.
Ainda que Champfleury o tenha feito, o próprio Baudelaire ressalta, em carta de 16 de fevereiro de 1860 ao seu amigo e editor Auguste Poulet-Malassis, que teria ele próprio apresentado o artista a Champfleury e Duranty, e que eles teriam declarado ser Guys um “vieillard insupportable”. “Décidement les réalistes ne sont pas des observateurs; ils ne savent pas s’amuser. Ils n’ont pas la patience philosophique nécessaire”[5], teria dito Baudelaire acerca da opinião dos amigos, ressaltando, desde já, a diferença de Guys e do flâneur em relação à corrente realista debatida por ambos, anteriormente proposta por Courbet e que já havia sido criticada por Baudelaire. Para o crítico, Courbet transmitia em suas obras a “natureza imediata” porém ausente de “imaginação”, elemento este que será fundamental para a concepção da modernidade de Baudelaire e conduzirá durante anos sua admiração por Delacroix. No entanto, a nova inspiração advinda dos desenhos de Guys faria o crítico entregar-se completamente à questão do efêmero, da passante, do transitório, da moda, da rua enquanto espaço moderno, que ele discutirá em seu fundamental texto escrito entre 1859 e 1863, Le Peintre de la Vie Moderne, onde coroará definitivamente a obra de Guys e seu papel como artista moderno.
Constantin Guys era, para Baudelaire, mais que um artista. Era o que ele denominava homem do mundo. Era o que Edgar Allan Poe denominava homem das multidões. Curioso e interessado no trivial, nos aspectos comuns da vida comum, Guys dava aos seus desenhos uma outra forma de representação que, para Baudelaire, ia de encontro com a modernidade de seu tempo. A fugacidade do tempo e das coisas se evidenciava na fugacidade do desenho, nos traços rápidos e na composição em movimento. Uma nova estética se anunciava, embora Guys nunca tivesse sido reconhecido em seu tempo e nem mesmo por alguns importantes historiadores da geração futura como um verdadeiro pintor, ainda que considerado um marco na questão relativa à modernidade. Ilustrador da revista Illustrated London News[6], foi por vezes considerado jornalista e, por consequência, um artista menor, um repórter gráfico. Em seu livro La Peinture au XIXeme. Siècle, Henri Focillon destaca esta questão:
La vie moderne - non seulement comme spectacle, mais comme poésie d’humanité, - réclamait des interprètes qui fussent pétris de ses inquiétudes et capables d’inventer un art dont chaque fibre en fût galvanisée. On en trouve la préface et comme l’annonciation chez Guys : mais Guys vit obscur, son oeuvre est longtemps de faible rayonnement, enfin il n’est pas peintre.[7]
Ele reforça novamente nas páginas seguintes que Guys, “reporter graphique”, “não é pintor”, embora tenha nos dado a “nota aguda da sensibilidade moderna”, “a síntese viva do modernismo”.[8] É justamente aí que reside a inovação de Guys levada em conta por Baudelaire.
Se, na década de 1840, o crítico coroava a modernidade poética e inventiva de Delacroix, agora a coroa passava para a cabeça de Guys. Ao mesmo tempo, se havia a admiração pela pintura de Delacroix, o crítico mostrava-se sedento por formas novas e pedia a transformação de uma estética ainda baseada no modelo antigo, que insistia em se relacionar com a modernidade parisiense. É nesse sentido que, em contraposição a Delacroix, surgem as críticas mais duras a Ingres, um dos maiores pintores do século XIX francês, em razão de sua insistente representação da cultura do Oriente, de um mundo repleto de odaliscas e de retratos ainda baseados no universo da Antiguidade. De forma aguda, o debate entre as pinturas de Delacroix e Ingres conduzirá ao encontro definitivo da obra de Guys.
Baudelaire e a questão do Antigo versus Moderno em Ingres
A crítica à exposição universal de 1855 conduziu o pensamento de Baudelaire para a análise da vida moderna e do papel do artista. Naquele ano, dois artistas opostos apresentavam um grande número de obras. Eram os grandes homenageados em uma espécie de retrospectiva que, como ressalta Baudelaire, obtinha a admiração e o ódio públicos. Estes artistas eram Ingres e Delacroix. Do lado de fora, Courbet exibia em seu Pavillon du Réalisme uma nova maneira de conduzir a pintura e a carreira do artista em sua independência e individualidade. Baudelaire, então, faz sua escolha e concentra-se na genialidade, na invenção do drama e do mistério produzido pelas obras de Delacroix e, sobretudo, em uma análise sobre o neoclassicismo davidiano e a necessidade de transformação a partir da pintura de Ingres.
Jacques-Louis David mostra-se mais compreendido no embate entre Ingres e Delacroix, que tem este último como vencedor. Baudelaire destaca que David, Guérin e Girodet fizeram uma grande revolução no mundo das artes na virada do século XVIII e início do XIX. Eles agiram de forma clara e objetiva contra a arte vaporosa e feminina do Antigo Regime e levaram aos franceses o “gosto do heroísmo”. A esta ideia associa-se o fato de que até mesmo a escola davidiana, em seu próprio cerne, sofreu suas transformações, vale dizer o caminho romântico iniciado por Girodet e Gros. A arte de David, intitulado por Baudelaire de astre froide, é compreendida ainda porque se remete claramente ao seu tempo, isto é, aquele em que a sociedade respirava os ares do modelo grego. Vestiam-se e decoravam suas casas como tal, desfilavam a moda da antiguidade, com seus cabelos alla Brutus e Tito. vestidos copiados dos afrescos de Herculano e Pompéia usados por Josephine, Madame Récamier e Madame Rivière, e procuravam incutir na sociedade o patriotismo e o heroísmo advindo do exemplo antigo. O Marat Assassinado de David será respeitado pela crítica até mesmo neste momento, considerado por Baudelaire como o divino Marat:
Tous ces détails sont historiques et réels, comme un roman de Balzac; le drame est là, vivant dans toute sa lamentable horreur, et par un tour de force étrange qui fait de cette peinture le chef-d’oeuvre de David et une des grandes curisiotés de l’art moderne [...]. Marat peut désormais défier l’Apollon, la Mort vient de le baiser de ses lèvres amoureuses, et il repose dans le calme de sa métamorphose.[9]
David transforma Marat em um mártir da Revolução. Morto dentro da sua banheira, ele permanece sereno, em um ambiente construído a partir da racionalidade da linha, evidenciando com poucos e suficientes objetos a razão e a forma do assassinato, a calma do ambiente fúnebre. Esta era, justamente, a modernidade do tempo de David, isto é, a renovação pictórica baseada no modelo antigo que, por sua vez, caminhava de mãos dadas com a sociedade em que eles viviam.
Ingres nutriu-se da arte de David neste período, estendendo a sua relação ao classicismo à maneira de Raphael e dos artistas do Quattrocento. O retrato de Madame Rivière [Figura 1], de 1806, identifica a opção pelo caminho do classicismo associada ao gosto da moda da corte, que conecta a antiguidade clássica com a cultura do Oriente. O vestido de Mme. Rivière é feito em mousseline de cor creme, em decote quadrado, coberto com um leve véu em cetim. As bijuterias são finas e simples, com algumas voltas no pescoço e no punho. Copiadas dos afrecos antigos, não deixam de revelar, em sua simplicidade e riqueza, o luxo daquele período. O cabelo mostra pequenos cachos alla Caracalla O xale decorado e com franjas remete ao presente de Napoleão a Josephine em seu retorno do Egito, iniciando, de certa maneira, a moda feminina relativa ao Oriente. A peça também é usada à maneira das mulheres orientais e serão amplamente copiadas durante o século XIX, tornando-se ainda um símbolo de distinção social, segundo nos relata Magali Simon.[10]
Nos anos seguintes, principalmente após sua longa estadia na Itália, Ingres tornará mais evidente seu gosto pelo renascimento de Raphael, além de se aproximar da forma maneirista na execução do desenho. O gosto pelo Oriente e as suas relações com o mundo antigo continuarão presentes na execução dos retratos, gênero que o pintor se dedicará durante o século XIX, com todos os seus percalços e sua obsessão pela perfeição.
Em 1855, Ingres será visto aos olhos do crítico Baudelaire como um artista imóvel ou imobilizado pelo tempo, cuja obra tornava-se difícil de compreender e de explicar, porque não revelava a mesma sensação de poder que a obra de David demonstrava. Em Ingres, o sentimento heroico de David desaparecia. Para Baudelaire, Ingres, em sua “bizarrerie”, transita entre dois tempos:
Je croirais volontiers que son ideal est une espèce d’idéal fait moitié de santé, moitié de calme, presque d’indifference, quelque chose d’analogue à l’idéal antique, auquel Il a ajouté les curiosités et les minuties de l’art moderne.[11]
Sobre os retratos de Ingres, Baudelaire repousa sua crítica mais contundente no Salão de 1859, enfatizando a relação do artista com o mundo antigo: “C´est une poésie étrangère, empruntée généralement au passé”[12] . Para ele, Ingres é incapaz de dar a seu modelo sua “verdade” e sua “grandeza”, elas próprias sem o artifício da tradição, de algo advindo do romano, do etrusco, do renascimento de Raphael ou do maneirismo, que aparece na anatomia, nos desenhos e contornos, na atitude do modelo:
M. Ingres est victime d’une obsession qui le contraint sans cesse à déplacer, à tranposer et à altérer le beau.[13]
E completa, no texto em que proclama sua admiração a Constantin Guys, Le Peintre de la Vie Moderne:
le grand défaut de M. Ingres, en particulier, est de vouloir imposer à chaque type qui pose sous son oiel un perfectionnement plus ou moins complet, emprunté au répertoire des idées classiques.[14]
O Retrato de Madame Moitessier [Figura 2], atualmente conservado na National Gallery em Londres é, certamente, o alvo de Baudelaire em sua crítica, onde o pintor demonstra uma verdadeira aproximação ao mundo moderno, expondo em sua obra a riqueza da burguesia com seu rico vestido estampado com saia de crinolina, joias e seu cenário burguês e moderno, com leques, ventarolas e objetos orientais. Porém, o pintor retira da sua modelo a naturalidade de sua época, impondo a ela uma pose clássica retirada possivelmente de um afresco antigo de Herculano intitulado Herculers e Telephos, conservado no Museu Nacional Arqueológico de Nápoles, e o perfil no reflexo do espelho com características italianas, remetendo-o seja à medalhística antiga ou ao Retrato de uma Senhora “La Schiavona”, de Tiziano.
A escolha de Baudelaire por Delacroix como “o verdadeiro pintor do século XIX” relaciona-se direta e contrariamente a Ingres. Baudelaire irá trabalhar durante anos com estes opostos, onde Delacroix ocupa o posto do “inventor”, enquanto Ingres, embora dotado de qualidades, sobretudo no que se refere ao desenho, permanecerá imóvel e carente do “temperamento enérgico” intrínseco ao gênio.
A questão relativa à modernidade, cara a Baudelaire e amplamente discutida nesses anos, irá tomar corpo na década de 1860. A representação do mundo moderno e a maneira de pintar do artista conduzirá sua crítica ao encontro definitivo, para Baudelaire, de um novo caminho para as artes. A “imaginação viajante” proposta por Delacroix como a modernidade do século XIX irá, aos poucos, ceder espaço a outra questão, mas sem abandoná-la, verdadeiramente. Delacroix terá sempre seu lugar de destaque. Amadurecendo a questão da modernidade, Baudelaire irá se concentrar na representação das formas fugazes da vida moderna, no acaso dos encontros, de “dégager de la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du transitoire”.[15] Para ele, o artista que conduzirá este caminho é Constantin Guys.
A essência da modernidade na obra de Guys.
Le Peintre de la Vie Moderne é publicado no jornal Le Figaro em 26 e 20 de novembro e 3 de dezembro de 1863. Baudelaire chama a atenção para o tempo presente. O mundo moderno que está na rua e que passa aos nossos olhos, as pessoas que vão ao teatro, que se vestem de preto ou que usam a crinolina, a rapidez e a fugacidade da passante, a mulher anjo-demônio :
La modernité, c´est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable.[16]
M. G., Monsieur Guys ou Constantin Guys é o artista em questão que faz, para o crítico, a perfeita tradução visual desta ideia. Guys transitava entre as ilustrações para o jornal inglês, conforme indicamos acima, e as cenas relativas à Guerra da Criméia, entre o mundo burguês que impecavelmente assistia aos espetáculos parisienses ao submundo das prostitutas.
O interesse de Guys transita por diferentes mundos e atém-se, de modo detalhado e inspirado, na questão feminina, em seu modo de vestir, de se portar, de se colocar nos variados universos do Segundo Império e da Terceira República. A elegância de seu tempo oscila entre as damas vaporosas, a lascívia dos gestos, a sedução noturna:
Avec un oeil lucide et curieux, Guys a observé inlassablement, où qu’il se trouve, tous les milieux sociaux, des pompes officielles et des élégances de la high life aux bas-fonds les plus sordides, pour y saisir la femme de son temps, fière, altière, misérable, débauchée, dans son faste triomphant ou dans sa déchéance physique la plus noire. Si l’oeuvre du dessinateur fut considerée par ses contemporains comme une chronique de la vie élégante du Second Empire et le miroir des turpitudes de la prostitution, elle se révèle pourtant beaucoup plus pénétrante qu’un témoignage anecdotique qui se limiterait à fixer une époque dans ses types et ses allures. Fruit d’un regard sensibles sur le monde moderne et ses manifestations les plus diverses, elles se singularise plutôt en ressuscitant les travers du temps dans leurs atmosphère et leur ambiance particulière. [...] Guys laisse l’image d’un monde heterogène où se cotoient, dans un même déploiement de luxe, les femmes du monde et courtisanes de haute lice, toutes puissantes dans le lancement des nouveautés vestimentaires qu’elles inaugurent en rivalisant d’élégance, dans les lieux consacrés par la mode où la representation de soi nourrit le prestige social.[17]
Da fina mulher de alta classe à prostituta, Guys capta a essência feminina de dois mundos diferentes. Em Reunião de numerosos personagens [Figura 3], vemos as damas com seus ricos vestidos vaporosos e seus acompanhantes vestido de preto e de cartola, possivelmente na entrada de algum espetáculo. Em outro desenho, Casal com roupa de 1860 [Figura 4], vemos um homem e uma mulher vestidos com a moda de seu tempo, como que descolados da cena anterior. A pose firme do homem, mãos nos bolsos, e um movimento maior da roupa da mulher, que com uma mão segura a volumosa saia de crinolina, e com a outra um leque, identifica, mais uma vez, com a modernidade parisiense. Ambos parecem posar para uma revista de moda, mas Guys apenas dá a eles a naturalidade de sua classe, repleta de linhas que se entrelaçam e dão ao desenho, ao mesmo tempo, movimento e firmeza. Guys é um homem da moda, quase um dândi, como explica Baudelaire:
je le nommerais volontiers un dandy, et j’aurais pour celà une quintessence de caractère et une intelligence subtile de tout le mécanisme moral de ce monde ; mais, d´un autre côté, le dandy aspire à l’insensibilité, et c´est par là que M. G., qui est dominé, lui, par une passion insatiable, celle de voir et de sentir, se détache violemment du dandysme.[18]
Mas Guys não é blasé, algo intrínseco ao dândi[19]. Guys é curioso, por isso é um gênio, segundo Baudelaire. Como o crítico, é um admirador da multidão, do que se passa em seu tempo presente:
Il admire l’éternelle beauté et l´étonnante harmonie de la vie dans les capitales, harmonie si providentiellement maintenue dans le tumulte de la liberté humaine. Il contemple les paysages de la grande ville, paysages de pierre caressés par la brume ou frappés par les soufflets du soleil. Il jouit des beaux équipages, des fiers chevaux, de la propreté éclatante des grooms, de la dextérité des valets, de la démarche des femmes onduleuses, des beaux enfants, heureux de vivre et d’être bien habillés ; en un mot, de la vie universelle. Si une mode, une coupe de vêtement a été légèrement transformée, si les noeuds de rubans, les boucles ont été détrônés par les cocardes, si le bavolet s´est élargi et si le chignon est descendu d’un cran sur la nuque, si la ceinture a été exhaussée et la jupe amplifiée, croyez qu’à une distance énorme son oeil d´aigle l´a déjà deviné.[20]
A saia em crinolina, novamente mostrada por Guys em Cotillon [Figura 5], constitui a febre feminina do momento. Walter Benjamin cita, em suas Passagens, um trecho escrito por Maxime du Camp em 1869, sobre o sucesso da crinolina em Paris ainda na década de 1850:
Em 4 de outubro de 1856, o Teatro Ginásio representou uma peça intitulada Les Toilettes Tapageuses [As toaletes Escandalosas]. Era a época da crinolina e as mulheres-“balão” estavam na moda. A atriz que representava o papel principal, tendo compreendido a intenção satírica do autor, trazia um vestido cuja saia propositalmente exagerada tinha uma amplidão cômica e quase ridícula. No dia seguinte à primeira apresentação, seu vestido foi pedido como modelo por mais de vinte grandes damas, e oito dias depois a crinolina tinha dobrado de dimensão.[21]
A crinolina, este tecido que dá volume às saias, tem seu auge na moda parisiense entre 1855 e 1865. Guys se deixará seduzir pelo volume circular provocado por ela, pela mobilidade sinuosa e pela graça que dá ao caminhar quase aéreo, pela amplidão que lhe oferece um atrativo saboroso para o estudo do movimento daquela que passa pelas ruas de Paris. Podemos notar essa conjunção de sentidos, por exemplo, em Na Rua [Figura 6] e Jovem Mulher Levantando a Saia e Caminhando para a Esquerda [Figura 7], questões igualmente caras a Baudelaire, como notamos em A Uma Passante, de suas Flores do Mal:
VIII - A uma Passante
A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que se embala e o frenesi que mata
Um relâmpago, e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais![22]
As palavras de Baudelaire parecem traduzir em poema os desenhos de Guys, ou vice-versa. A rua, a passante, aérea beldade que balanceia sua saia. O rabisco que vimos acima dará ainda mais efeito em alguns desenhos, como vemos neste Esboço [Figura 8], em que uma profusão de linhas, umas mais firmes e outras jogadas livremente, mostra o balanceio da mulher que passa, revelando sutilmente as formas do seu corpo, as pernas e os sapatos que se mostram com o jogar da saia. A modernidade de Guys revela-se duplamente. Na abordagem à fugacidade de seu tempo e na maneira fugaz de realizar o desenho que, em traços rápidos, sem perder o volume, a luz e a sombra, permanece em estreita consonância com a ideia da passagem e do efêmero. O esboço e o croquis são, nesse sentido, os perfeitos tradutores dessa nova maneira de representação da vida moderna.
No entanto, o olhar em direção a mulher proposto pelas obras de Guys mostrará os diversos universos femininos que fazem igualmente parte deste mundo moderno. Guys se interessa também pela prostituta, pela sua feminilidade e vulgaridade, por sua poesia popular. A elegância do Segundo Império caminha junto ao submundo das mulheres reais dos romances de Émile Zola e dos irmãos Goncourt. Novamente a crinolina, agora forçosamente levantada, os seis generosos que se comprimem no corset, as curvas do corpo e a provocação das poses, a lascívia dos gestos, como vemos em Profissionel [Figura 9], Alcôve Publique [Figura 10] ou em Cabinet Particular [Figura 11]:
Toutes ces femmes incarnent, malgré leur diversité d’étiquettes, la courtisane du siècle, méprisable ou fascinante dans son éclat ou sa misère, dans laquelle Baudelaire a vu l’archétype de la séduction et la figure la plus représentative de la modernité, non seulement par sa position dans les marges de la vie sociale, nouveau refuge du Beau, mais aussi en ce qu’elle recéle une beauté douloureuse inhérente au monde contemporain.[23]
Guys consegue, em seus fugazes desenhos, captar a essência feminina em sua moderna condição, qualquer que seja sua posição social. No entanto, malgrado toda a sua atitude perante a modernidade, a captação do instantâneo que muda a cada esquina, a cada bairro parisiense, Guys não terá, em seu tempo, um lugar de destaque.
Como bem destaca Focillon será Édouard Manet aquele a levar a cabo, no âmbito da pintura, a essência da obra de Guys, a “virulencia poética” da imagem feminina com suas roupas, bijouterias, em sua enigmática, brilhante e secreta atitude, tornando-se Manet “o mais baudelairiano dos pintores”. Mas “La Chanteuse des Rues[24] [de Manet] est une passante de Guys »[25], explica Focillon. Manet não poderia, assim, ser entendido sem a preciosa contribuição de Guys, le “Peintre de la Vie Moderne”, a quem Baudelaire consacrou o célebre texto de 1863. A já longínqua exposição do Musée de la Vie Romantique, Constantin Guys - Fleurs du Mal resgastou a importância deste artista, fundamental, portanto, para a compreensão do moderno século XIX.
Bibliografia
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal (1857). SP: Circulo do Livro, 1995
_____. Écrits sur l’Art. Paris: Libraire Generale Française, 1992 et 1999.
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BAUDELAIRE, BALZAC, D’AUREVILLY. Manual do Dândi. A vida com estilo. Belo Horizonte: Autência Editora, 2009.
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LANCHA, Christine. Constantin Guys et le Mundus Muliebris. In Constantin Guys - Fleurs du Mal 1802-1892. Dessins des musées Carnavalet et du Petit Palais. 8 octobre 2003 - 5 janvier 2003. Paris, Musées, 2002.
POE, Edgar Allan. The Man of the Crowd. 1840. Eletronic text center. University of Virginia Library.
[1] Este artigo propõe-se apenas como uma curta reflexão sobre o tema, o catálogo da mostra de Guys e a crítica de Baudelaire, iniciada em uma conferência dada por mim aos professores da área de Fashion Design no Istituto Europeo di Design, em São Paulo, em maio de 2010, como parte do grupo de seminários realizados sob coordenação de Mario Queiroz.
[2] Constantin Guys - Fleurs du Mal 1802-1892. Dessins des musées Carnavalet et du Petit Palais. 8 octobre 2003 - 5 janvier 2003. Paris, Musées, 2002.
[3] Salon de 1845. In Baudelaire, Charles. Écrits sur l’Art. Paris, Libraire Generale Française, 1992 et 1999, pp. 120-121.
[4] Em uma carta a Champfleury, datada de dezembro de 1859, Baudelaire diz: “Duranty me dit: “Champfleury a acheté des Guys’. J’entre par harsard hez le Marchant effrayant de la place Pigalle (pure inspiration, Duranty ne m’ayant donné aucune indication), et je lui dis : ‘N’est-ce pas à Champfleury que vous avez vendu des Guys ? - Oui, monsieur. - Et il m’a dit même qu’il les achetait pour vous’. - Alors, je vous ai remercié en esprit, et je les attends. [...] » In Baudelaire, Correspondance. Paris, Éditions Gallimard, 2000, p.182.
[5] Idem, p. 189
[6] Guys trabalhou em 1851 para a edição francesa do Illustrated London News, colaborando novamente em 1860. Em 1857, trabalha como artista gráfico para o Le Monde Illustré, entre outros jornais. Ver Constantin Guys - Fleurs du Mal 1802-1892. Dessins des musées Carnavalet et du Petit Palais. 8 octobre 2003 - 5 janvier 2003. Paris, Musées, 2002
[7] FOCILLON, Henri. La Peinture au XIXeme Siècle. Vol. 2. Paris, Flammarion, 1991, p.150-151.
[8] Idem, p. 156 e 164.
[9] BAUDELAIRE, Charles. Écrits sur l’Art. Paris, Libraire Generale Française, 1992 et 1999, p.125
[10] Disponível em: <http://mini-site.louvre.fr/ingres/1.7.3.1_fr.html>
[11] BAUDELAIRE, Charles. Écrits sur l’Art. Paris, Libraire Generale Française, 1992 et 1999, p.267.
[12] Idem, p.414
[13] Ibidem.
[14] Idem, p.519.
[15] Idem, p.517.
[16] Idem, p.518.
[17] LANCHA, Christine. Constantin Guys et le Mundus Muliebris. In Constantin Guys - Fleurs du Mal 1802-1892. Dessins des musées Carnavalet et du Petit Palais. 8 octobre 2003 - 5 janvier 2003. Paris, Musées, 2002, p.53-54
[18] BAUDELAIRE, Charles. Écrits sur l’Art. Paris, Libraire Generale Française, 1992 et 1999, p.513.
[19] Podemos pensar, por exemplo, em Beau Brummel, o pai do dandismo. O conceito diz respeito à toalete, à elegância, ao tédio, ao limite estabelecido entre a originalidade e o ridículo, ao irônico e à indiferença sem desprezo. Ver Baudelaire, Balzac, D’Aurevilly. Manual do Dândi. A vida com estilo. Belo Horizonte, Autência Editora, 2009.
[20] Idem, pp.515-516.
[21] Maxime du Camp, Paris, 1869, vol. VI, p.19 in BENJAMIN, Walter. Passagens. BH, UFMG, SP, Imprensa Oficial, 2007.
[22] BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal (1857). SP: Circulo do Livro, 1995.
[23] LANCHA, Christine. Constantin Guys et le Mundus Muliebris. In Constantin Guys - Fleurs du Mal 1802-1892. Dessins des musées Carnavalet et du Petit Palais. 8 octobre 2003 - 5 janvier 2003. Paris, Musées, 2002, p.67.
[24] Tela de 1862. 171,3 × 105,8 cm. Boston, Museum of Fine Arts.
[25] FOCILLON, Henri. Op. Cit., p. 177.