Augusto Malta e Marc Ferrez: Olhares sobre a construção de uma metrópole

Ronaldo Entler [1] e Antônio Ribeiro de Oliveira Jr. [2]

ENTLER, Ronaldo; OLIVEIRA JR., Antônio Ribeiro de. Augusto Malta e Marc Ferrez: Olhares sobre a construção de uma metrópole. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/am_mf.htm>.

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Diariamente a cidade lança neste rio suas sólidas construções e seus sonhos de nuvens como se fossem imagens. Magnânimo, ele aceita as oferendas e, em sinal de agradecimento, as fragmenta em mil pedaços.

Walter Benjamin (Rua de Mão Única)[3]

                     1.            No século XIX, a metrópole era o grande palco onde a modernidade se colocava em cena. Por suas ruas desfilavam a recém-consolidada burguesia, bem como os produtos da tecnologia, demarcando um novo ritmo para o mundo. Paris, como capital cultural do ocidente, fornecia o modelo de paisagens, gostos e hábitos cotidianos que deveriam estar visíveis em qualquer cidade que se pretendesse moderna. Desde a Revolução de 1789, quando um oitavo do solo parisiense foi loteado, não cessaram as demandas de reformas urbanísticas para atender à população que ali passou a se concentrar. A mais importante delas, sob o comando de Georges Eugène Haussmann, entre as décadas de 1850 e 70, reduziu drasticamente o núcleo residencial do centro parisiense, sem poupar edifícios históricos, para abrir largas avenidas, ampliar a rede de água e esgotos, levar gás e eletricidade às ruas e casas e, ainda, estabelecer novos monumentos.

                     2.            Mas as soluções modernizadoras da cidade não extinguem suas ambiguidades. Como destaca Sandra Pesavento: “zonas altas e baixas, o centro e os bairros, o ‘perto’ e o ‘longe’ atestam o aburguesamento e a pauperização como as duas facetas da transformação capitalista que se operava na urbe”.[4] A cidade garante o espaço de alguns, elimina o de outros. Permite o deslocamento dos trabalhadores até os centros, na mesma medida em que empurra para longe suas moradias. Os bairros proletários e as linhas de transporte coletivo delimitam o território e o trajeto dessa população dentro da cidade e, assim, as reformas urbanas não têm a pretensão de eliminar os contrastes sociais, mas de dar-lhes nova codificação através de sua redistribuição no espaço.

                     3.            Além disso, a metrópole afirma a liberdade do cidadão, mas promove também o seu controle: facilita a identificação das casas e das pessoas, a visibilidade de suas ações e a vigilância. Com as iniciativas de Haussmann, as avenidas largas, retas e arejadas tornaram a cidade mais salubre, mas havia ainda uma outra motivação: evitar as barricadas populares que, antes, se aproveitavam de um recorte irregular das ruas. Como afirma Renato Oritiz: “fica claro sua preocupação em expulsar do centro da cidade as classes perigosas. [...] Às preocupações de higiene se acrescentam portanto as de cunho estratégico, as ruas devem dar passagem às tropas”.[5] A idéia de saneamento nunca deixou de comportar a pretensão de uma assepsia de comportamentos sociais e ideologias.

                     4.            As tensões da metrópole se tornaram, na verdade, sua marca, inscrevendo-se como uma conseqüência natural da nova velocidade e da simultaneidade de movimentos impostas pelo progresso. E os fluxos caóticos de pessoas e bondes compõem a nova ordem urbana.

                     5.            A iniciativa de Haussmann teve reflexos em muitos outros países, dentro e fora da Europa. Na América-Latina, vale destacar a reconfiguração das regiões centrais de Buenos Aires, em 1880; de Montevidéu, em 1887, e do Rio de Janeiro, a partir de 1903. Nesses países as tensões se agravam na mesma proporção de seus contrastes sociais, isto é, na distância entre a suas realidades e o ideal de modernidade que foi assumido.

                     6.            Muitas vezes, o estabelecimento da metrópole evidencia não tanto os desdobramentos do progresso, mas a fé que nele se deposita, e o desejo de alavancá-lo. Se a modernidade podia ser lida na cidade, poderia ser escrita através dela. Esse foi o caso do Rio de Janeiro, onde a reurbanização foi uma espécie de decreto proclamador da modernidade que se desejava.

O Rio de Janeiro

                     7.            Na virada do século, a capital brasileira centralizava uma importante atividade comercial através dos armazéns, das instituições financeiras, dos exportadores de matéria-prima e café, e de uma indústria incipiente. Mas quem chegava ao centro do Rio podia ver facilmente sua outra face: casas antigas, muitas delas abrigando coletivamente várias famílias, ruas estreitas e sinuosas, pessoas mal vestidas, paradas nas janelas das casas, nos bares e quiosques, compondo um retrato de ócio e insalubridade pouco condizentes com a riqueza brasileira que convergia para essa cidade. Havia ainda a criminalidade e as epidemias que assustavam os visitantes.

                     8.            A concentração do capital, da indústria, do comércio e dos serviços firmou essa cidade como habitat da burguesia ligada a tais atividades e como passagem obrigatória para negociantes e investidores estrangeiros. Mas, ao mesmo tempo, o Rio oferecia novas possibilidades de ocupação da mão de obra que se deslocava da lavoura, em razão do fim do escravismo, da saturação da imigração, e dos novos postos de trabalho da cidade. Essas pessoas passaram a dividir os casarões do centro, antigas moradias da aristocracia colonial, transformando-os muitas vezes em cortiços ou estalagens.

                     9.            Com o início do mandato do presidente Rodrigues Alves, em 1902, o governo federal assumiu o projeto de fazer do Rio de Janeiro uma cidade compatível com o ideal de progresso que já seduzia a burguesia brasileira. Além da necessidade de solucionar problemas como o das epidemias, e da precariedade dos serviços portuários e de transporte, desejava-se apagar da capital as marcas arcaicas da arquitetura colonial, e os hábitos considerados insalubres de sua população pobre.

                  10.            Além do modelo parisiense, havia o exemplo da vizinha Buenos Aires, maior capital dentre os países latino-americanos, reurbanizada, e expandindo sua economia através de parcerias comerciais com a Europa, sobretudo com a Inglaterra.

                  11.            No Brasil, a reforma e a organização dos serviços portuários ficaram sob a responsabilidade do engenheiro Lauro Müller, nomeado Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas. A intervenção no centro do Rio, ficou a cargo do engenheiro Francisco Pereira Passos, nomeado prefeito da cidade, com poderes excepcionais que lhe foram conferidos pelo presidente. Assessoravam o prefeito outros engenheiros renomados como Paulo de Frontin e Francisco Bicalho. E, uma vez que o saneamento do Rio constituía uma das grandes preocupações de Rodrigues Alves, as reformas teriam ainda a influência do médico-sanitarista Oswaldo Cruz, nomeado diretor federal da Saúde Pública.

                  12.            A escolha desses personagens políticos, de sólida formação e reconhecida experiência, não apenas garantiria a eficiência das reformas mas também ajudaria a conquistar a confiança da população: eram engenheiros e médicos, isto é, homens formados nas disciplinas mais significativas do universo da técnica e da ciência, que deveriam dar credibilidade mesmo às decisões mais polêmicas. Pereira Passos, particularmente, além de ter exercido um papel importante na ampliação da malha ferroviária brasileira, havia estudado em Paris, onde tivera a oportunidade de acompanhar de perto o final das ações de Haussmann.

                  13.            Com o projeto de reurbanização do Rio, muitas ruas e avenidas foram alargadas, e algumas outras abertas. Destas, a mais importante foi a Avenida Central, que cortou a cidade com seus 2 quilômetros de comprimento e seus 33 metros de largura, ligando as avenidas do Cais e Beira-Mar. Além de estabelecer um anel viário que facilitaria o fluxo dos transportes, essa avenida seria o marco de uma cidade renovada: ela reformularia sua paisagem, instituindo uma nova arquitetura, e substituindo os cortiços, estalagens, e pequenas lojas, por grandes estabelecimentos comerciais, instituições religiosas, escolas, teatros e museus. A cidade arejada estaria livre das epidemias, mas também da presença do proletariado, dos ociosos, dos mestiços: todos os rostos considerados inadequados à imagem de um Brasil moderno.

                  14.            Para abrir a Avenida Central, formou-se uma comissão presidida por Paulo de Frontin, que ficaria encarregada das desapropriações, dos reloteamentos e permutas para a nova ocupação, da análise dos projetos dos edifícios a serem construídos, além das obras públicas, propriamente ditas. De março a setembro de 1904, foram desapropriados e demolidos, cerca de 600 prédios, que compunham 1700 propriedades,[6] numa ação que ficou conhecida como bota-abaixo. Em novembro de 1905, a avenida teve sua inauguração solene. Reloteadas, suas margens dariam origem a cerca de 120 novos prédios, em sua maioria, ainda em fase de construção no momento da inauguração.

                  15.            Para abrigar a população que habitava o centro, foi proposta a criação e adequação de bairros proletários mais afastados, a exemplo do que ocorrera em Paris. Mas não há dúvida de que os investimentos se voltaram mais para a remodelação do centro, do que para esses assentamentos. E, dadas as particularidades geográficas dessa cidade, abandonar as moradias do centro significou, já nesse momento, uma ocupação ainda mais desordenada dos morros.

                  16.            A rapidez com que as transformações se processaram fez da Avenida Central uma obra bastante polêmica, desencadeando um intenso confronto entre críticas e exaltações. Para a classe mais pobre que ocupava o centro, o ideal de um Brasil moderno não era o suficiente para justificar a destruição de suas casas. Além disso, os métodos políticos utilizados geraram manifestações negativas de celebridades como Rui Barbosa e o médico Souza Lima. Para enriquecer a argumentação do governo sobre a necessidade e a eficiência das reformas, dois grandes projetos de documentação fotográfica foram encomendados. Um deles, ao fotógrafo Augusto Malta, que trabalhou diretamente para o prefeito Pereira Passos e, o outro, a Marc Ferrez, contratado pela Comissão Construtora da Avenida Central. Cada um deles viria a cumprir uma função distinta, mas estrategicamente complementar, dentro dessa argumentação.

                  17.            A configuração de uma metrópole pode ter sido para muitos países a consequência necessária de uma condição moderna já alcançada. Nitidamente, esse não é o caso do Rio de Janeiro. A modernidade brasileira, nesse momento, constrói-se antes no plano de um discurso, que foi articulado em diferentes dimensões simbólicas. Cada ação que está em torno da renovação do Rio de Janeiro - da escolha dos personagens políticos, passando pela planta e pela ocupação da nova cidade, até o dossiê iconográfico formado pelas fotografias das várias etapas da reforma - constitui parte desse discurso.

                  18.            Afirmar um caráter simbólico desse processo de modernização, não é colocá-lo no plano do ilusório. Não se pode negar os resultados práticos da ação organizadora e saneadora da cidade do Rio. O que se propõe aqui é aceitação do próprio caráter simbólico como dado histórico, na medida em que é ao mesmo tempo consequência e causa de muitas ações concretas, transformadoras do mundo material. Assim, ao lado das imagens visíveis da modernidade, está o seu imaginário, ambos compondo partes absolutamente imbricadas de uma mesma realidade histórica.[7]

                  19.            Para recompor o discurso idealizador da modernidade, seguiremos as pistas trazidas por essas documentações. A partir delas, retomaremos alguns fragmentos da história da reurbanização do Rio, destacando a forma como as imagens desses fotógrafos, ao mesmo tempo em que retratam, ajudam a construir dois aspectos distintos dessa.

Os fotógrafos

                  20.            Augusto Cezar Malta de Campos nasceu em Alagoas, em 1864. Chegou ao Rio ainda jovem, onde trabalhou em diferentes atividades antes de se dedicar à fotografia: foi guarda-livros, teve um pequeno comércio de mantimentos e, por fim, vendeu tecidos, de porta em porta, para senhoras da antiga aristocracia imperial.

                  21.            Entusiasta do governo republicano, Malta foi apresentado por um amigo ao prefeito recém nomeado, Pereira Passos. Não se sabe quando se tornou fotógrafo mas, certamente, isso não ocorreu muito tempo antes de ser contratado pela prefeitura, em junho de 1903. Subordinado à Diretoria de Engenharia da municipalidade, Malta esteve sempre em contato direto com Pereira Passos, e seu trabalho teve um papel fundamental na argumentação sobre a necessidade das demolições do centro da cidade. Dispondo de todo material que precisava, realizou milhares de fotografias a serviço da prefeitura, e revelou-se bastante habilidoso no registro de cenas do cotidiano. Apesar de seu histórico recente na profissão, e do compromisso político que assumia sem conflitos com o prefeito, Malta se destacou muito rapidamente como um talentoso e respeitado fotógrafo documentarista. Foi o primeiro, nessa profissão, a atuar como funcionário público no país, trabalhando para a prefeitura do Rio até 1936. Morreu aos 93 anos de idade, deixando um importante acervo iconográfico sobre a cidade.

                  22.            Marc Ferrez nasceu no Rio de Janeiro, em 1843. Era filho de Zepherin Ferrez, escultor e gravador francês, que veio para o Brasil para integrar a “Missão Artística” que fundou a Academia Imperial de Belas Artes. Após ter estudado em Paris, e de volta ao Rio, Marc Ferrez aprendeu fotografia no ateliê de gravura de George Leuzinger. Aos 21 anos, montou seu próprio estúdio e, em pouco tempo, tornou-se um dos mais renomados fotógrafos brasileiros. Graças ao seu contato com a Europa, foi pioneiro no Brasil em técnicas como as vistas panorâmicas com mais de 180o, as chapas secas, o cinema, e o autocromo (processo de fotografia colorida inventado também pelos irmãos Lumière). A obra de Ferrez é bastante extensa. Além do Rio, fotografou as principais cidades brasileiras. Como fotógrafo da Comissão Geológica do Império, chegou também a locais pouco povoados do norte e nordeste. Nesses trabalhos, documentou paisagens naturais, fazendas, arquitetura, grandes obras do governo, e personagens diversos: aristocratas, imigrantes, escravos e índios. Tinha ainda grande experiência em reproduções fotográficas de obras de arte, plantas arquitetônicos e mapas.

                  23.            Após ter seu próprio estúdio no centro do Rio desapropriado pela prefeitura, Ferrez é contratado pela Comissão Construtora da Avenida Central para reproduzir os projetos aprovados para as fachadas e, posteriormente, fotografar as fachadas já construídas, que seriam mostradas numa edição de mil álbuns. Após ter vivido mais um período em Paris, Ferrez volta ao Rio, onde morre em 1923.

                  24.            Apesar de Malta e Ferrez atuarem simultaneamente na cidade do Rio, ambos a serviço do governo municipal, não consta que tenha havido qualquer tipo de colaboração entre eles.

As documentações

                  25.            Trabalhando sob as ordens de Pereira Passos, uma das funções de Malta era a de percorrer o centro, localizando os problemas que justificariam o bota-abaixo. Não se tratava de um estudo preliminar, pois a decisão de demolir as moradias já estava tomada. O objetivo dessas imagens era o de reafirmar a idéia já concebida de que o centro do Rio constituía uma região insalubre.

                  26.            Aliar uma documentação fotográfica à argumentação sobre a necessidade das reformas foi uma estratégia bastante eficiente. Havia uma perfeita sincronia entre o processo de modernização que se pretendia, os técnicos escolhidos para conduzi-lo, e a fotografia, que era, ao mesmo tempo, símbolo e produto da ciência e da modernidade. Ajudando a dar um tom científico a essa argumentação, a fotografia conferia-lhe mais credibilidade.

                  27.            Ainda que trabalhando sistematicamente, fotografando quase que edifício por edifício das áreas que seriam afetadas pelas reformas, Malta sabia muito bem o que deveria mostrar. Para dar contundência às demonstrações da falta de higiene e da deterioração dos edifícios, Malta buscava ainda registrar comportamentos e hábitos que lhe pareciam incompatíveis com a cidade moderna que se esperava. Pessoas ociosas pelas ruas, botequins ou quiosques, às vezes mal vestidas ou descalças, crianças pelas ruas com excessiva liberdade, e muitos curiosos que paravam, deslumbrados com a ação do fotógrafo. As reformas deveriam abranger também o saneamento desses comportamentos.

                  28.            Malta não se limitava à rua. Usando provavelmente a habilidade adquirida na época em que vendia tecidos de porta em porta, mas também aproveitando-se da autoridade de fotógrafo oficial, não raramente ele conseguia entrar nas casas para ampliar o alcance da visão pública sobre a insalubridade do centro. Há aqui uma obscenidade, no sentido original dessa palavra: a explicitação do que deveria estar fora de cena. Ou seja, não porque as imagens mostrassem situações imorais, mas porque devassavam a privacidade dessas pessoas. Nenhuma intimidade é grotesca, desde que permaneça resguardada, e isso vale para qualquer pessoa. Mas a intimidade da camada mais pobre se torna um problema social concreto na medida em que é registrada e exposta.

                  29.            De fato, o projeto do novo Rio de Janeiro atendia a um problema de visualidade. O que se pretendia melhorar não era tanto as condições de vida dessas pessoas, mas a imagem da cidade. Assim, a necessidade de afastar dos olhos a parte degenerada da cidade era construída através de sua própria superexposição.

                  30.            As ações invasivas de Malta estão em sintonia com uma atitude política mais ampla do governo Rodrigues Alves. Estando o Conselho Municipal em recesso, as condições para as desapropriações foram estabelecidas arbitrariamente, em processos sumários. Apesar de esse ser considerado um governo moderado, as reformas foram viabilizadas através de uma política duramente intervencionista sobre os direitos privados. Isso se evidencia ainda no plano de vacinação obrigatória, articulado por Oswaldo Cruz, e aprovado num decreto federal de 1904. Revoltada, a população se confrontou com a polícia, e não simplesmente para medir suas forças contra o poder federal: depois de perder suas moradias, a população seria agora obrigada a ter seus corpos contaminados com próprio agente das epidemias.

                  31.            No processo de intervenção no centro, a documentação de Malta foi fundamental para a avaliação dos prédios a serem desapropriados. Sabe-se que quando um proprietário marcava audiência na prefeitura para reclamar um valor maior para a indenização, muitas vezes ele se via constrangido por uma farta iconografia sobre a degradação de sua propriedade. Se a localização central garantiria aos prédios um alto valor comercial, as evidências fotográficas de sua má conservação e de sua má utilização encerravam as discussões.

                  32.            No conjunto da obra de Malta, não faltam vistas de belas paisagens, imagens rigorosamente compostas, flagrantes românticos da vida quotidiana. Mesmo à serviço da prefeitura, ele estava encarregado de registrar também as obras, os melhoramentos da cidade, as festas e solenidades. Mas seu trabalho oficial revela nitidamente sua colaboração na tentativa de demonstrar de uma cidade degenerada. Isso se torna mais evidente no final da gestão Pereira Passos, quando Malta, provavelmente convencido da eficiência das ações da prefeitura e da importância de suas imagens, parece se sentir ainda mais à vontade.[8] Nesse momento, além de escolher as cenas que deveriam ser mostradas, Malta se manifestava assinalando, na foto, algo que lhe chamava atenção, ou inserindo pequenos comentários do tipo “está pedindo picareta”, que antecipavam a solução para um problema detectado.

                  33.            Marc Ferrez, contratado paralelamente pela Comissão Construtora da Avenida Central, tinha uma função mais delimitada. Ele deveria reproduzir a planta das fachadas e, posteriormente, fotografar as fachadas dos prédios acabados para compor uma grande e luxuosa publicação. O Álbum da Avenida Central,[9] como foi chamado, iria ainda conter uma relação dos nomes envolvidos no projeto, uma minuciosa prestação de contas dos investimentos públicos dedicados a essa obra, e algumas vistas gerais e plantas da nova paisagem.

                  34.            Os problemas sociais brasileiros eram muito mais complexos do que a sinuosidade das ruas, a má conservação das moradias, e as epidemias na Capital. Mas a reurbanização do Rio visa, nesse momento, a construção de um cartão postal brasileiro adequado à ampliação das relações exteriores, tanto comerciais quanto turísticas. É também um monumento que pretendia demarcar o curso do país em direção à modernidade. Enfim, investia-se na formação de uma imagem e, para isso, contava-se com o poder de sedução e convencimento da fotografia.

                  35.            Nesse momento, Marc Ferrez já era o mais renomado fotógrafo brasileiro, sempre em contato com Paris, e sempre trazendo as últimas novidades técnicas da fotografia européia. No Brasil, não havia outro que trabalhasse com chapas fotográficas de 30 x 40 cm ou 30 x 70 cm, e que tivesse tanta experiência com reproduções de plantas e com impressões de alta qualidade. Além disso, Ferrez seria mais um nome importante que se somaria à divulgação das melhorias operadas no Rio de Janeiro.

                  36.            Para garantir o “bom gosto” na formação da nova paisagem urbana, a Comissão Construtora organizou, logo no início de 1904, um concurso de fachadas, que instituiu na Avenida a diversidade da arquitetura eclética. Além de Pereira Passos, Lauro Müller e Paulo de Frontin, faziam parte da comissão julgadora dois outros engenheiros renomados, Saldanha da Gama e Aarão Reis; o diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Rodolfo Bernardelli; e três importantes médicos, Oswaldo Cruz, Feijó Junior e Ismael da Rocha, que já traziam, desde a escolha das fachadas, a idéia de uma cidade saneada.

                  37.            Sobre as plantas que integram o Álbum, Paulo F. Santos faz o seguinte comentário:

                  38.                                                  Uma omissão sentida pelo arquiteto e urbanista é a ausência das plantas dos edifícios da Avenida. A inclusão dessas plantas, no entanto, deve-se reconhecer, teria dado ao álbum um caráter demasiadamente técnico, que não estava nos planos de Marc Ferrez realizar.[10]

                  39.            Há, na verdade, algo mais do que uma opção de Ferrez sobre o grau de tecnicidade do Álbum. É bastante clara a forma como a Comissão dedicou uma atenção especial às fachadas. Ainda que os altos preços observados no reloteamento já determinassem uma ocupação mais seleta do centro, garantia-se a boa imagem da Avenida colocando à disposição dos novos proprietários um catálogo de projetos, que traziam a chancela de um júri renomado. E o que haveria por trás dessas fachadas constituía um problema menor, a ser resolvido posteriormente, já que o interior dos edifícios não apareceriam no cartão postal da cidade. O que se construía nesse momento era uma vitrine onde seria exposta a imagem do progresso brasileiro.

                  40.            Cabe aqui uma comparação entre os dois trabalhos de documentação: se, para provar a insalubridade do Rio antigo, Malta precisou expor também os hábitos domésticos da população pobre; para mostrar os avanços qualitativos da nova metrópole, bastava à Ferrez o ponto de vista da rua sobre as fachadas.

                  41.            Além disso, a rua é o local privilegiado da modernidade. Como diz Annateresa Fabris, ela é o “território da novidade, da ação, do movimento”,[11] onde todas as suas tensões se transformam num espetáculo  (diga-se de passagem,  que agora pode ser assistido com mais segurança e salubridade). O hábito moderno e burguês de perambular pelos boulevards revela também uma ociosidade. Mas se trata aqui de um ócio bem diferente daquele que se condenava nas ruas do Rio antigo, sobretudo por uma questão de ritmo: em oposição ao pobre parado nas janelas, calçadas, botequins e quiosques, está o burguês em pleno movimento, ao mesmo tempo, contemplando e compondo a agitação da metrópole. Isso pode ser representado ainda de uma outra forma: o ócio da população pobre caracterizava uma estagnação econômica, a ausência de trabalho; enquanto que o burguês já colhia os frutos de seu esforço. Enquanto perambula, ele está economicamente ativo: o que se contrapõe à hora do trabalho não é portanto a hora do ócio, em seu sentido pejorativo, mas é a hora do consumo.

                  42.            A habilidade técnica de Ferrez se explicita no cuidado e na limpeza com que se apresentam as fachadas construídas em suas fotografias. Os prédios aparecem em vistas frontais, chapadas, recortadas (literalmente) de sua paisagem de fundo.[12] Incluem-se apenas as calçadas, em sua quase totalidade, vazias, exceto por um ou outro personagem, quase sempre bem vestido, que pode aparecer desde que não atrapalhe a visualização da fachada. Há uma minuciosa correção de perspectiva, que mantém paralelas as linhas verticais mesmo dos prédios mais altos. E, por último, vale destacar que, graças à alta definição de suas chapas de grande formato, pode-se ver cada detalhe ornamental das fachadas. Enfim, nenhum elemento aparece distorcido ou sobreposto a outro: para falar de uma cidade saneada e corrigida, recorreu-se a uma linguagem também absolutamente limpa.

                  43.            O Álbum incluía ainda algumas poucas vistas gerais, onde já há o esboço de uma multidão trafegando pela Avenida. Pelo que se pode notar pelas roupas, seus personagens não são mais os mesmos que ocupavam o centro, antes das reformas. Nos escritórios e no comércio que agora se concentravam nessa região, não havia oportunidades para mão de obra não-especializada. Além disso, coibiu-se a mendicância, a “vadiagem”, e o comércio ambulante. E, apesar de a Avenida Central constituir uma parte fundamental do novo anel viário da cidade, era restrito o tráfego do transporte coletivo. Sabe-se, por exemplo, que Pereira Passos instalou na Avenida uma linha de bonde durante a fase das obras para facilitar o transporte de materiais. Mas pelas fotos realizadas após a inauguração percebe-se que a linha foi retirada. Enquanto os automóveis existentes no país não compusessem um número significativo, a largura da avenida ia cumprindo sua função simbólica de monumento.

                  44.            Concluídas as fotografias, o próprio Marc Ferrez providenciou a confecção de uma tiragem de mil exemplares do Álbum, impresso na Europa, pelo processo de fotogravura. Gilberto Ferrez o descreve da seguinte forma:

                  45.                                                  Na sua edição original, o álbum consiste em um estojo, contendo 3 plantas, 118 pranchas e 45 folhas, soltas e impressas de um só lado, pesando no total 5 quilos. O estojo, medindo 52,5 x 42,5 cm, é revestido de tecido verde-escuro e tem gravado na capa, em letras douradas, os dizeres “Avenida Central - 8 de março de 1903 - 15 de novembro de 1906 - Marc Ferrez - Rio de Janeiro”, cercado de molduras, em baixo-relevo, de estilo art noveau. A maioria das pranchas e folhas mede 40 x 50 cm, e algumas 40 x 60 ou 40 x 80 cm, que são dobradas ao meio. A maioria dos desenhos e fotografia está na escala 1/100, mas existem alguns fora desta escala.[13]

                  46.            No entanto, quando Marc Ferrez chegou com os Álbuns prontos, as obras públicas já haviam se encerrado e a Comissão já estava desfeita. Assim, não havia quem o recebesse ou quem pagasse o restante das despesas. Segundo Gilberto Ferrez, dois terços dos Álbuns, armazenados na casa do próprio fotógrafo, foram destruídos quando as ondas da ressaca de 1913 romperam os muros da Avenida Beira Mar e alagaram várias ruas do centro. Coincidentemente, a cidade moderna revela suas imperfeições ao mesmo tempo em que sua representação idealizada se destrói.

                  47.            A observação da velha cidade insalubre, bem como da nova cidade ideal, foi em muito ajudada pelos pontos de vista escolhidos e adotados por esses dois fotógrafos. O que se propôs foi, ao mesmo tempo, a transformação da cidade e da maneira de vê-la. As contradições ainda permanecem, por traz da nova ordem urbana, que revela sua intenção tanto cosmopolita quanto cosmética. Por mais necessário que pareça, o curso do progresso não representa uma evolução para soluções definitivas: a insalubridade e a falta de civilidade que se queria extinguir foram, em boa parte, apenas deslocadas. Como numa via de mão dupla, a grande transformação foi a substituição dos velhos problemas pelos problemas modernos.

Referências bibliográficas

FABRIS, Annateresa. O espetáculo da Rua: imagens da cidade no primeiro modernismo, in: M.A. Bulhões e M. L. Kern (org.). A semana de 22 e a Emergência da Modernidade no Brasil. Porto Alegre, Sec. Municipal da Cultura, 1992.

__________. Arquitetura Eclética no Brasil: o cenário da modernização. in História e Cultura Material. Anais do Museu Paulista, n. 1, São Paulo, USP, 1993.

FERREZ, Marc. O Álbum da Avenida Central. São Paulo, Ex-Libris / João Fortes Engenharia, 1983. (Reedição comemorativa, acrescida dos artigos “Marc Ferrez” e “A Avenida Central e seu Álbum”, de Gilberto Ferrez; e “Arquitetura e Urbanismo na Avenida Central”, de Paulo F. Santos)

KESSEL, Moyses Isaac. Crescimento e reforma urbana em metrópole não industrial: O caso do Rio de Janeiro no período 1870-1920. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP, 1982.

OLIVEIRA JR, Antonio. Do Reflexo à mediação. Um estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta. Dissertação de Mestrado, Campinas, Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, 1994.

ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade. São Paulo, Brasiliense, 1991.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um novo olhar sobre a cidade: a nova história cultural e as representações do urbano. in: V.A. Porto Alegre na Virada do Século 19: Cultura e Sociedade. Porto Alegre / Canoas / São Leopoldo, Ed. UFRGS / Ed. ULBRA /Ed. UNISINOS, 1994.

Imagens

Figura 1 - AUGUSTO MALTA: Estalagem localizada na Rua do Senado, 1906. Conforme identificação que o próprio Malta traz nas fotos.

Figura 2 - AUGUSTO MALTA: Rua do Resende, 1906.

Figura 3 - AUGUSTO MALTA: Rua dos Andradas com Alfândega, 1906. Abaixo da identificação, segue o comentário “está pedindo picareta”.

Figura 4 - AUGUSTO MALTA: Rua do Resende, 1906.

Figura 5 - Marc Ferrez: Uma das vistas gerais da Avenida que integram o Álbum, c.1905.

Figura 6 - Marc Ferrez: Respectivamente, reprodução da planta da fachada e fotografia da fachada construída de um mesmo edifício, c. 1905. Exemplo de como se apresentam no Álbum todos os prédios já construídos na Avenida Central, nesse momento. Dos prédios ainda em fase de construção, exibiram-se apenas as plantas. As identificações que se seguem às imagens são trazidas pelo próprio Marc Ferrez.

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[1] Ronaldo Entler é jornalista, mestre em Multimeios pelo IA-Unicamp, doutor em Artes pela ECA-USP, Pós-Doutor pelo IA-Unicamp e professor da Facom-FAAP, e professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Multimeios do IA-Unicamp.

[2] Antônio Ribeiro de Oliveira Júnior é historiador, mestre em Multimeios pelo IA-Unicamp, doutor em Artes pela ECA-USP e professor da Universidade Federal Fluminense.

[3] O rio mencionado por Benjamin é o Sena, mas insinuamos que poderia se tratar do Rio de Janeiro, cidade que, como o Sena, espelha Paris.

[4] Pesavento. “Um novo olhar sobre a cidade: a nova história cultural e as representações do urbano”, 1994. p.131.

[5] Ortiz, Cultura e Modernidade, 1991, p.200-202.

[6] Números citados por Gilberto Ferrez, in: M. Ferrez, O Álbum da Avenida Central, 1993. p. 17.

[7] Essa idéia é trazida por Sandra Pesavento, op.cit. Após refletir sobre diferentes metodologias históricas,  ela propõe, através da chamada História Cultural, uma abordagem das representações e do imaginário social ligadas à transformação do espaço urbano.

[8] As fotografias que encontramos para ilustrar este trabalho são de 1906, ou seja, exatamente deste momento.

[9] Como referência, tomamos apenas a recente edição comemorativa do Álbum, feita pela Ex-Libris / João Fortes Engenharia, em 1993.

[10] Santos, “Arquitetura e Urbanismo na Avenida Central”, in: M. Ferrez, O Álbum da Avenida Central, 1993. p.27.

[11] Fabris, “O espetáculo da Rua: imagens da cidade no primeiro modernismo”, 1992. p. 32.

[12] Não é de se descartar a possibilidade de retoques na imagem, não tanto porque haja evidências disso, mas porque essa era uma prática comum nessa época.

[13] G. Ferrez, op. cit. p. 19.