O trompe l’oeil da imaginação: decoração, literatura e cultura visual no século XIX *

Marize Malta

MALTA, Marize. O trompe l’oeil da imaginação: decoração, literatura e cultura visual no século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_trompeloeil.htm>.

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Introdução

Analisar a cultura visual oitocentista pelo tradicional viés da produção de obras e artistas das Belas Artes e da arte acadêmica é desconsiderar outras  produções de imagens ocorridas no período, e que afluíram com muito maior abrangência sobre a visualidade burguesa dos centros urbanos do Ocidente, dentre eles o Rio de Janeiro.  “O desafio, contudo, é enfrentar esta possível cegueira, pensando o não discursivo, o paradocumento, o implícito ou apenas insinuado, o que é dito de outra forma” (PASSAVENTO, p.12).  Diferente da pintura, restrita a exposições e a salões de particulares, houve uma série de outras imagens que mais publicamente chegou ao alcance de muitos olhos e, conseqüentemente, provocou maior impacto sobre a imaginação e a cultura visual oitocentista burguesa. Dentre essas formas de visualidade podemos citar propagandas, embalagens, rótulos, ilustrações de livros, jornais e revistas (vide CARDOSO, 2005), litogravuras e cromolitografias, porcelanas, leques, papéis de parede, móveis, bibelôs e tantos outros objetos decorativos.

A ampliação da circulação de imagens impressas de diversas categorias e de tantos objetos decorativos marcou emblematicamente a cultura oitocentista brasileira - especificamente aqueles sujeitos que tinham acesso a mercadorias e podiam ler e comprar livros e periódicos.  Essas formas mais ágeis de contato com o mundo representado visualmente tiveram forte ressonância sobre o imaginário dos habitantes do Rio de Janeiro.  A maior afluência dessas imagens - revistas ilustradas, por exemplo, - encontrou paralelismo na elaboração decorativa dos ambientes residenciais e de seus móveis, exacerbando o gosto pelo aspecto decorativo.

Além dessa afluência de imagens pictóricas e tridimensionais, foi significativa a produção literária cuja narrativa carregava forte apelo visual, despertando igualmente a imaginação para a visualidade que sugeriam.  Muitos autores sublinharam os detalhes decorativos dos cenários que envolviam seus romances ou trouxeram questões ligadas às problemáticas da visualidade oitocentista. Esses escritores não escreviam sobre decoração, móveis e bibelôs impulsionados exclusivamente por um movimento literário e estético independente, mas também porque os leitores - a sua clientela - valorizavam esses objetos, interessavam-se por eles, tinham os olhos voltados para eles (BAXANDAL, capítulo I).

A principal clientela podia encontrar a si mesma espelhada nos cenários dos romances, decorados bem próximos aos ambientes com que convivia diariamente.  A minudência da descrição sublinhava a idéia de realismo dos interiores.  De um certo modo os leitores viam seus semelhantes e eram vistos através das palavras cuidadosamente escolhidas pelo escritor para montar os cenários, enredos e personagens de tão variadas estórias.  Para os que não tinham a oportunidade de se encontrar nos textos, o relato do escritor orientava-os no reconhecimento dos ambientes de casas que normalmente não freqüentavam. Obtinham, assim, a oportunidade de vivenciarem aquelas imagens refinadas que não experimentavam com os próprios olhos e de balizarem suas escolhas e seus gostos pelas sugestões que as palavras dispunham.  A diferenciação entre os tipos de decoração conforme classes sociais, por vezes demarcada, permitia enxergar valores sedimentados e perpetuados pelos romancistas.  

Tais exemplos de interiores burgueses eram reforçados por gravuras, pinturas e por conselhos de decoração e relatos das colunas sociais publicadas em jornais e revistas, ratificando a preocupação com os valores do bem decorar as casas.  Mesmo com essas outras instâncias, sejam escritas ou visuais, foram provavelmente os romances que conduziram a uma certa tradição de olhar para o século XIX e de ver como a sociedade decorava suas casas.  Diferente de gravuras, fotos, objetos decorativos que, em épocas posteriores, estiveram reclusos em arquivos e museus, esses romances realistas e naturalistas continuaram a circular por gerações e gerações de leitores brasileiros.  A prática acabou por naturalizar uma visão sobre comportamentos, tipos de decoração e móveis usados nas casas oitocentistas do Rio de Janeiro, principalmente (vide fichário de Ernani Silva Bruno em ACAYABA, 2001).  Muitas ambientações de exposições e cenários ainda hoje são baseadas nos romances.

Quanto ao século XIX, retomando-o, ampliava-se a rede de circulação dessas estórias imaginadas e de imagens imaginadas.  Oportunizava-se a concretude da imaginação.  O público leitor oitocentista, portanto parte da sociedade letrada, apta e disposta a consumir, partilhava da experiência de verificar que a imaginação era possível de ser vislumbrada através da leitura de textos e visualizada pelas imagens figuradas (pictures, cf. MITCHELL).  Esses textos e figurações também alimentavam novas imaginações, criando um processo que se retro-alimentava, e estabelecendo práticas de ver o mundo.

Ao nos debruçarmos sobre o estudo das artes decorativas no século XIX, costuma nos chamar a atenção o fato de os objetos utilitários incorporarem valores próprios das visualidades e exacerbá-las na sua visibilidade.  Tal fato é ratificado pela verbalização das palavras impressas e pelos sentidos expressos nos romances. Nessas estórias, o caráter utilitário (diga-se operacional) do objeto decorativo parece se enfraquecer para dar lugar à valorização formal, à sua descrição decorativa. Nos livros, os objetos só são palavras, funcionam de forma diferente do que na realidade; são coadjuvantes dos personagens, relacionam-se com eles de forma literária; são testemunhos de imaginações.  Desse modo, parece que o texto das estórias auxiliou os leitores a ver os objetos decorativos como elementos visuais, pura decoração, quase abstrações, na medida que suas ações não eram valorizadas, mas sua presença visual era destacada nos textos.

Diante desse possível ponto de vista verificou-se uma cumplicidade existente entre os objetos decorativos e os romances, como uma série de outras ligações entre imagens e textos, como, por exemplo, narrativas de anomalias mentais e efeitos decorativos, estados mentais perturbados e a decoração de interiores, depreciação dos objetos domésticos e ecletismo, os tênues limites entre beleza e feiúra, realidade e imaginação.  A partir desse horizonte, buscamos não exatamente comparar romances e interiores decorados com seus móveis e objetos, mas detectar pontos que se cruzam e elucidam uma certa condição de olhar ocorrida, que artificializou certezas. 

Cruzar essas instâncias é o que pretendemos fazer nesse espaço. Lembramos que só se pode cruzar coisas que estão caminhando em sentidos diferentes e, portanto, assumimos a idiossincrasia de cada campo do pensamento e sua autonomia (parcial): literatura e artes decorativas, no caso aqui colocado.  Ao mesmo tempo, entendemos que os significados produzidos pela cultura dialogam entre si e provocam cruzamentos, interseções, pontos que se unem e que se explicam.  Nesse conjunto de pontos em comum e linhas divergentes e/ou paralelas das produções culturais, o tecido toma forma e serve de pano para vestir a sociedade que a teceu.

Realidade e ficção

Partimos do pressuposto que não há texto que não dialogue com imagens e não há imagens que não interajam com textos.  Essa relação nem sempre é harmônica, tem seus conflitos, suas tensões.  Com relação aos romances oitocentistas, em alguns momentos os textos se pautaram em narrativas que levam à construção de cenas mentais cada vez mais precisas - um mundo imaginado que engana pela sua semelhança com o real.  Nele estava tudo lá, em seu devido lugar.  As personagens circulavam, na maioria das vezes, em cômodos específicos e interagiam com móveis e objetos diferenciados, muitos deles detalhadamente nomeados.  Parecia que todo o ambiente configurava-se pelas descrições dos romancistas. Não faltava um móvel ou um detalhe para completar a cena.

Os móveis normalmente não são reconhecidos quanto a seus estilos, mas quanto a seus tipos: dunquerques, cadeiras de balanço, marquesas, étagères...  Por vezes agregam-se outros valores como o tipo de material - a espécie de madeira (erable, mogno), por exemplo.  Pode-se encontrar a procedência: cadeira americana, cama francesa, meia mobília austríaca.  Porém, não encontramos apenas descrições da variedade de móveis e demais objetos espalhados pelos ambientes. Mesmo que tais informações sejam até válidas para um reconhecimento do tipo iconográfico, não é a parte que mais nos interessa; ler os juízos a respeito desses objetos e das salas em que estão dispostos, sobre a decoração dos ambientes, sobre a relação de gosto e distinção com os artefatos, das preferências de gênero e classe social, isso traz uma outra dimensão, que permite reconstruir o imaginário que alimentava aquela sociedade letrada.

A partir dos conjuntos de relatos dos romances constrói-se uma realidade paralela à realidade vivida pela sociedade letrada do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX.  Para esse grupo social, a realidade parecia estar do lado de fora, nas ruas, no trabalho, nas fábricas, na velocidade dos meios de transporte.  Em casa, resguardada dessa realidade, a família permanecia na contra-realidade, ou seja, em outra realidade, enfaticamente imaginada em seu devaneio, incentivada pela decoração que a cercava, pelos romances que lia, pelos quadros e gravuras que ostentava em suas paredes. Um mundo visual que criava uma outra realidade, diferente da exterior.  Esse estar cercado pelas paredes, por opção, conveniência ou prescrição, construía um micro universo visual.  O estar prolongado dentro do universo doméstico e a repetição de experiências visuais que esse micro-mundo oferecia poderia levar seus convivas a atribuírem outros sentidos às imagens decorativas.

Buscamos os sentidos que a sociedade letrada oitocentista  foi capaz de atribuir à realidade, os significados produzidos por essa cultura com vistas às artes decorativas com que conviviam. Parece-nos um tempo em que se valorizava mais a imaginação do que a imagem.  Imagens e textos remetiam a outras imagens além do que representavam de imediato.  O leitor ou observador era levado a navegar para além da imagem concreta.  Assim, também os móveis carregariam na sua ornamentação a passagem para o ingresso ao mundo da imaginação, levando o objeto utilitário, de sua condição de concretude (tato) e imagem (visão), uso e observação, para a de abstração, pensamento, pura decoração.

Aqui retomaremos alguns dos pontos levantados e desenvolveremos outras questões que incluem textos e contos de Edgard Allan Poe e o romance O Homem de Aluisio Azevedo, que permitem explorar as relações da fascinação pelo visual, pela imagem e pela imaginação e as artes decorativas. A partir da ênfase na imaginação, encontramos um paralelo na ênfase decorativa, ornamental.

Em 1840, Edgar Allan Poe escreveu um texto intitulado The philosophy of furniture (ver link), pouco conhecido em virtude de não compartilhar do estilo literário que o consagrou, os contos policiais e de mistério.  Esse texto de três laudas e meia, relata o gosto, ou segundo seu ponto de vista, o mau gosto pela ostentação na decoração das casas de seus compatriotas americanos.  Diferente dos contos e romances, essa crônica coloca o ponto de vista de Poe sobre questões contemporâneas reais e mostra seu interesse na decoração. O olhar atento sobre itens da decoração, o que julgava apropriado e o que recriminava, as anomalias denunciadas nas casas americanas, explicita um desejo pela demonstração de conhecimento especializado e aprofundado sobre o assunto e justifica as narrativas dos interiores, tão bem detalhadas, como cenários plausíveis de ocorrerem na realidade. Poe dominaria os tipos de decoração possíveis para cada tipo social, cultural, econômico que imaginasse para seus romances. Nesse relato pessoal as referências às qualidades próprias da visão ou da sua ausência são flagrantes: ofensa ao olhar, olho da mente, olhos cegamente subservientes...

Poe, além de abordar os assuntos sobre decoração, acompanhava as atualidades sobre estudos ópticos (GORDON, 2000) e parece que sua crítica à decoração elaborada e/ou exagerada foi levada aos romances, promovendo situações em que as decorações e o conjunto dos objetos decorativos ocasionassem efeitos de ilusão de óptica, levando com que alguns personagens sofressem de histeria ou outras anomalias mentais.  É como se Poe explicitasse suas próprias teorias sobre questões visuais e psicológicas nas suas estórias, disfarçando-as como ficção.  O romance era um meio de colocar suas teses de impacto da decoração sobre a mente humana, alcançando muitas vezes relações de histeria e loucura, mais diretamente observáveis em Berenice, A Queda da Casa de Usher e, principalmente, em Ligéia:

Ai de mim, percebo quanta loucura incipiente poderia ser observada nos cortinados magníficos e fantasmagóricos [fantastic, no original], na solene estatuária egípcia, nas cornijas e mobiliários fantasiosos, nos padrões dignos de um hospício dos tapetes bordados a ouro! [...]  Mas era nas tapeçarias do apartamento que se caracterizava - ai de mim! - o elemento mais fantasmagórico de todos.  As paredes elevadas a uma altura gigantesca, quase descomunal, estavam recobertas de alto a baixo pelas dobras de um cortinado pesado e de aspecto maciço, cujo material era o mesmo que recobria o assoalho, do estofamento das otomanas, da colcha da cama de ébano, de seu dossel e das graciosas volutas das cortinas que obscureciam parcialmente a janela.  Esse material era um tecido de ouro da melhor qualidade.  Estava recoberto aqui e ali, a intervalos regulares, por padrões de arabescos com mais ou menos trinta centímetros de diâmetro, na cor do mais profundo azeviche.  Mas estas figuras apresentavam a natureza dos verdadeiros arabescos apenas quando contempladas de um determinado ponto de vista.  Devido a um processo que hoje é comum e de fato data da mais remota antiguidade, o aspecto destes florões se modificava.  Para alguém que entrasse no quarto, tinham a aparência de simples monstruosidades; mas depois que o visitante dava alguns passos, esta aparência desaparecia gradativamente e ia se transformando aos poucos, à medida que a pessoa avançava pelo aposento, até que ela se visse cercada por uma sucessão infinda das formas mais apavorantes criadas pela superstição dos normandos ou pelos sonhos abrasados de culpa dos monges. (POE, 2003, p.75-77)

Poe passa a idéia de que as pessoas, principalmente mulheres e enfermos, restritas à experiência visual da decoração das casas em que se mantinham confinadas, recebiam forte impacto dos objetos e dos padrões ornamentais com que conviviam.  Na medida em que a decoração exacerbava-se, tornava-se confusa, desalinhada ou excitante, o estado psicológico dos personagens tenderia a piorar, a entrar em crise.  Ou os estados mentais já perturbados tenderiam a piorar sensivelmente quando submetidos a locais detalhadamente e profusamente decorados. Caso alguns personagens detivessem o olhar prolongadamente em algum bibelô ou arabesco, eles poderiam mergulhar em um mundo paralelo, um mundo de imagens.  Nesse sentido, Poe coloca a dificuldade de distinção entre realidade e sonho, entre ilusão e alucinação - um verdadeiro trompe l’oeil da imaginação.

Tomando emprestado, com certa adaptação, o que aponta Richard Leppert (LEPPERT, cap.1), podemos trabalhar com o conceito de trompe l’oeil referente à literatura e à própria decoração no século XIX.  Lembramos que nesse século, a técnica foi extensamente empregada na decoração, e variados processos de pintura decorativa e efeitos decorativos foram desenvolvidos e divulgados.  Diferentes de serem considerados pejorativamente técnicas de imitação, os artifícios do trompe l’oeil eram vistos como distinção técnica, domínio de habilidade.

Na literatura realista e naturalista observamos a técnica do trompe l’oeil: ela engana o olho (o mental) ao narrar cenas ardilosamente ambientadas em locais específicos, capazes de serem visualizados em nossa imaginação, mas que não passam de artifícios, de palavras sobre papel, assim como as representações em trompe l’oeil, veridicamente bidimensionais de tinta e superfície.  As palavras dos textos teriam a missão de representar um desejo de fazer ver (imaginativamente, é claro) para além da grafia das letras.  O texto deveria ser tão minucioso a ponto de permitir uma reconstrução imaginativa e convencer do realismo vislumbrado.  Tal técnica de persuasão levaria o leitor a pensar que a estória teria o poder de vir a ser história, e que o imaginário era uma faceta do real.  O processo do trompe l’oeil estaria configurado.  No caso da decoração, haveria duas modalidades de trompe l’oeil: a primeira recairia na própria imitação de materiais; a segunda, no tratamento da superfície ou da forma com padrões decorativos, como os arabescos, por exemplo. Ao fixar determinado padrão sobre uma superfície de madeira ou papel, por exemplo, a tendência era ver somente o padrão e esquecer do material de base, de sua concretude, de sua natureza.  O conceito de realidade era questionado, e o processo de diferenciação negativa colocava a necessidade de afirmação da realidade através da contínua alusão à imaginação.

O viver mais no mundo da imaginação do que da cotidianidade levaria a perturbações mentais, a histerias e até a casos de esquizofrenia, onde não se saberia mais distinguir entre o dia real e o dia sonhado, entre a ilusão e a alucinação.  O olhar era capturado pelos efeitos decorativos, que embriagavam a mente, tiravam-na da realidade e da sanidade, como se arabescos tivessem o poder de excitar imaginações e levá-las a estados de transe e histeria.  Em diversos romances do século XIX encontramos a loucura imersa em cenários profusamente decorados. Decorar coincidiria com ilusão óptica, histeria, delírios e fantasia.  Decorar também estaria relacionado com o ato de repetir e reter na memória (decorar um texto, por exemplo). Nessa repetição, os efeitos “nocivos” da imagem levariam o observador a situações anormais, ilusórias.

Assim como muitos personagens de Poe que beiram a loucura, alguns escritores brasileiros também congraçaram desses personagens que vivem mais em mundos irreais do que a banalidade de suas vidas.  É o caso de O homem, de Aluísio Azevedo, para citar apenas um.

Aluísio Azevedo nos interessa destacadamente por ter tido a vocação para a pintura e ter colocado práticas visuais nos seus escritos.  Segundo seu biógrafo Raimundo de Menezes, o escritor assim afirmou: “Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação, que é a pintura.  Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho os meus romances, depois redijo-os” (MALARD, p.209).

No romance O Homem tudo começa com a personagem Magdá estendida em um divã do salão de seu pai. É nesse salão profusamente decorado, localizado em uma boa casa em Botafogo, que Aluísio Azevedo demonstra sua capacidade de evocar imagens, descrevendo-o minuciosamente:

O salão era magnífico. Paredes forradas de austera tapeçaria de linho inglês cor de cobre e guarnecida por legítimos caquemonos [...]. Cobria o chão da sala um vasto tapete Pompadour, aveludado, cujo matiz, entre vermelho e roxo, afirmava admiravelmente com os tons quentes das paredes. Do meio do teto, [...] descia um precioso lustre de porcelana de Saxe, sobrecarregado de anjinhos e flores coloridas de pássaros e borboletas, tudo disposto com muita arte numa complicadíssima combinação de grupos.  Por baixo do lustre, uma otomana cor de pérola, em forma de circulo, tendo no centro uma jardineira de louça esmaltada, onde se viam plantas naturais.  A mobília era toda variada: não havia dois trastes semelhantes; tanto se encontravam móveis do último gosto, como peças antigas, de clássicos estilos consagrados pelo tempo.  Da parede contrária à entrada dominava tudo isto um imenso espelho sem moldura, por debaixo do qual havia um consolo de ébano, com tampo de mármore e mosaicos de Florença, suportando um pêndulo e dois candelabros bizantinos; ao lado do consolo uma poltrona de laca dourada com assento de palhinha da Índia e uma cadeira de espaldar, forrada de gorgorão branco listrado de veludo; logo adiante um divã com estofos trabalhados na Turquia. (AZEVEDO, p.18-19).

É nesse universo de encantamento e magnificência que a moça permanecia prostrada e a desenvolver seu estado histérico:

Era neste divã que a filha do Sr. Conselheiro achava-se estendida havia duas horas, deixando-se roer pelos seus tédios, aos bocadinhos, com os olhos paralisados num ponto, que ela não via. (AZEVEDO, p.19).

Aqui percebemos o jogo da profusão de divertimentos visuais, promovidos pela decoração, e o olhar paralisado de Magdá, sem ver toda essa variedade e riqueza.  Ela ali está mais como um bibelô a interagir imóvel com os objetos e a mimetizar-se com os elementos decorativos, quase inexpressiva, sem vida, relegada à sua tristeza.  Em contraposição, a decoração vibra, é quente, parece ter vida própria.  O natural - a moça - e o artificial - os objetos decorativos - parecem trocar de lugar, estabelecer contrários. Azevedo dispõe o jogo do natural e do artificial, e também do visto e do não visto.  O leitor pode ver - através da narrativa - toda diversidade da decoração do salão, enquanto a personagem que está inserida no salão, nada pode ver, ela não pode apreciá-lo.

Há mais jogo ainda: o jogo da imagem e da imaginação, da imagem-narrativa e da imaginação da narração; do enredo que estabelece uma situação em que a imaginação, excitada pela imagem, resulta em modificação mental e ação sobre o real.  Quando o estado mental de Magdá se agrava, o médico prescreve sair da boa casa de Botafogo e a procurar a frescura do campo.  Além disso, ele alertava: “Nada de belas-artes nem leituras!” (AZEVEDO, p.63), provavelmente instâncias que levariam a personagem a aprofundar-se no seu estado de introspecção, entregue à sua imaginação. É para um quarto quase monástico que a moça se aloja para tentar curar-se. Contudo, é outra imagem que a leva a um estado cada vez mais alucinatório. É a imagem que se descortina da janela de seu quarto - a de um homem rude -, que a leva ao mundo da fantasia e dos sonhos, fazendo-a libertar-se dos grilhões que a sufocam no mundo real.  É justamente a força da imaginação, que transcende a realidade, que faz Magdá cometer o desfecho da estória: o assassinato do homem com quem sonha e de sua esposa.  Nesse final da estória, Azevedo afirma o diálogo entre sonho e realidade, a difícil separação desses dois mundos, que por vezes se confundem, interpenetram-se e fazem com que a personagem cometa o assassinato da imagem figurada para apagá-la da imaginação.

Conclusões momentâneas

Dessa breve experiência, percebemos a potencialidade da literatura de ficção como pródigo interlocutor para a troca de idéias com o estudo das artes decorativas e da cultura visual.  Além de podermos encontrar descrições pormenorizadas dos ambientes onde as ações se desenrolam, o que já demarcaria um interesse particular, são pelos discursos que temos a possibilidade de avaliar o impacto das imagens sobre o imaginário e sobre a realidade construída pelos romancistas.  É na corriqueira afirmativa “a vida imita a arte”, que vamos encontrar o real se cercando do imaginário, o concreto incorporando a imaginação, o utilitário seduzido pelo decorativo. 

A partir da ênfase na imaginação encontramos um paralelo na ênfase decorativa, ornamental.  Podemos constatar o fascínio que a instância visual exercia na burguesia oitocentista e que o trompe l’oeil seria um artifício usual da cultura visual do período.  Contudo, toda representação nessa técnica nunca representa o que é (LEPPERT, p.20).  Os objetos decorativos aludidos pelas palavras eram objetos textos, objetos imaginários.  Nessa experiência, ratificava-se a condição de novos observadores e da abstração da visão, reforçada por outros artifícios (CRARY). Os objetos decorativos reais, matéricos e visuais, na medida em que exacerbavam os valores da visualidade, sublinhavam os valores abstratos, a decoração propriamente dita. 

O que também interessa é reconhecer os significados que circularam sobre determinadas personagens, mitos, objetos, e que comungam com a leitura de imagens de outras instâncias - os objetos decorativos.  Essas interpretações indicam caminhos para compreender a relação desses objetos com seus usuários, a sua importância na vida social, a sua valorização, o prestígio da decoração nas suas vidas.  É uma tentativa de olhá-los com os olhos de quem os usou, de modo a qualificar nosso olhar sobre essas coisas decorativas do passado e a perceber a cultura visual presente nesses objetos materiais.   Munidos com olhos de cúmplices, temos condições de rever esses objetos, tê-los em nossa frente, olhá-los e criar outros textos que falem de outros olhares.

Os escritores, incluindo principalmente os mais renomados homens das letras, tinham plena consciência de que palavras, apesar de visíveis, não eram visões e que a experiência de ver imagens era insubstituível.  É com Aluísio Azevedo que interrompemos a discussão, isto é, concluímos momentaneamente: “E passou aos pormenores: citou os pratos que se exibiram, as garrafas que se enxugaram, 'Uma coisa era ver a outra dizer'. (AZEVEDO, p.179)

Referências bibliográficas

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GORDON, Era Beth.  “Poe: optics, hysteria and aesthetic theory”. Cercles, n. 1, L’oeil, 2000, pp.49-60.  Disponível em: <http://www.cercles.com/n1/gordon.pdf>. Acesso em maio 2005.

GRUENTER, Rainer.  Sobre la miseria de lo bello; estudius sobre literatura y arte.  Barcelona : Gedisa,  1992.

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* Comunicação apresentada no 14º Encontro da ANPAP: Cultura Visual e Desafios da Pesquisa em Artes.  Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2005.