A
arquitetura monumental de Salvador no início do século XX: Uma resposta local a
um processo internacional *
Suely de
Oliveira Figueirêdo Puppi
**
PUPPI,
Suely de Oliveira Figueirêdo. A arquitetura monumental
de Salvador no início do século XX: Uma resposta local a um processo
internacional. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.4, out. 2009.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_spuppi.htm>.
*
* *
1.
Até
o final do século XIX, o urbanismo colonial caracterizava visivelmente o centro
de Salvador. Fundado sobre uma colina segundo um traçado urbano regular, este
centro passou logo a desenvolver-se a partir de uma configuração de ruas
irregulares, consolidando-se desta maneira.
2.
Entretanto
no início do século XX, Salvador, como as demais capitais brasileiras,
participava do programa de construção da República iniciado pelas reformas de
Pereira Passos no Rio de Janeiro, então Capital Federal. E assim, durante o
primeiro governo de J. J. Seabra (1912-1916), obras
urbanas foram empreendidas na cidade na tentativa de transformar completamente
a sua área central.
3.
Acompanhando
o espírito moderno empreendido no Rio de Janeiro, as elites soteropolitanas
consideravam que era preciso modernizar o antigo e principal centro do Brasil
colonial, mesmo que este processo não correspondesse a uma alteração total da
realidade. Os baianos viam isto como um impulso de desenvolvimento que
estabeleceria a entrada de Salvador no quadro de progresso nacional, integrados
especialmente pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
4.
Assim,
em 1912, alguns anos após a modernização do Rio de Janeiro (1903-1906), dois
projetos principais foram concebidos para o centro de Salvador: o projeto Melhoramento
de Partes da Cidade de Salvador, que prevendo drásticas alterações do
tecido urbano existente foi mantido no papel; e o projeto Melhoramentos da
Sé, que preservando a antiga estrutura urbana e realizando basicamente
apenas o alargamento das vias principais do centro e dos bairros nobres do sul,
foi o principal respaldo das alterações urbanas do período. Pode-se afirmar que
tais obras não resultaram em profundas alterações dos espaços da cidade. Apesar
das parciais demolições, a estrutura urbana do centro soteropolitano teve o seu
traçado, suas praças e seus quarteirões mantidos e nenhum espaço urbano
totalmente novo e diverso do existente foi criado.
5.
Entretanto,
foi precisamente nos limites deste perímetro onde as obras de modernização não
alteraram radicalmente o tecido urbano, que os principais monumentos
arquitetônicos, elementos formadores de uma nova imagem de Salvador, foram
implantados. Estes edifícios foram um dos principais resultados deste processo
de modernização da cidade no início do século XX; e se esta modernização teve
de certa maneira como modelo maior a ordenação monumental de Paris no período
de Haussmann,[1] os nossos edifícios monumentais, concebidos
inclusive por profissionais italianos, são importantes experiências locais de
um estilo arquitetônico internacional, sugerido pelos empreendimentos urbanos
parisienses e pela propagação do ensino Beaux-Arts.
A
produção de uma arquitetura internacional
6.
Ao
observar a arquitetura produzida nos diversos países europeus, sobretudo
durante a segunda metade do século XIX, devemos considerar que as produções
locais eram resultado de uma interferência das experiências internacionais, as
quais tinham em Paris o seu centro principal, aliada certamente aos seus traços
característicos particulares.
7.
Deste
fato, tratamos aqui da arquitetura monumental realizada em Salvador no início
do século XX também segundo o contexto de uma produção
internacional. E sendo assim, abordamos esta arquitetura a partir dos seus
traços dominantes, os quais têm origem na produção francesa: os princípios de
composição do sistema Beaux-Arts, a doutrina
racionalista de Viollet-le-Duc
e o ecletismo, movimento resultante de um processo de colagens, efetuado a
partir da composição de vários e diversos elementos arquitetônicos.[2]
8.
Segundo
o crítico Laffitte, o século XIX não era uma época na
qual a arquitetura européia realizava-se através da
aplicação de princípios compatíveis, mas através da fusão de princípios contraditórios.[3]
Pode-se dizer assim que o ecletismo foi certamente o resultado das constantes
contradições da época, incluindo o classicismo Beaux-Arts
e o racionalismo da doutrina de Viollet-le-Duc, correntes teóricas contemporâneas a ele.
9.
Esta
ambiguidade fez inclusive parte da história da Escola de Belas Artes de Paris.
O interesse pelo racionalismo, e portanto uma oposição
ao academicismo imposto pela escola, nasceu no ambiente desta mesma instituição
de ensino. As preocupações racionalistas tiveram origem no grande interesse dos
vencedores do Prix de Rome pela técnica das
construções romanas.[4]
10.
A
importância internacional da arquitetura parisiense deu-se basicamente por dois
motivos. Por um lado a École des Beaux-Arts ganhou
prestígio mundial através da propagação do seu ensino de composição
arquitetônica, e mesmo através das próprias discussões teóricas existentes no
seu meio acadêmico,[5] sobretudo na segunda metade do século
XIX. Por outro lado, a Paris de Napoleão III ganhou igualmente reconhecimento e
admiração mundial devido à sua obra de saneamento e principalmente de
embelezamento urbano.
11.
O
classicismo eclético, como o denomina Claude Mighot,[6] afirmou-se na segunda metade do século
XIX como um estilo internacional e seus exemplos arquitetônicos tornaram-se um
modelo por excelência. A ópera de Garnier uniu uma
planta submetida à composição Beaux-Arts, uma
fachada que rompe com o princípio de unidade referencial - esta era também uma
característica da composição Beaux-Arts -,
monumentalidade e certo racionalismo construtivo. Resultado das divergentes
preocupações da época, a ópera foi um dos maiores exemplos do momento,
tornando-se modelo de inspiração para a construção de teatros em outros países.
12.
No
caso do Brasil, por exemplo, temos o teatro municipal do Rio de Janeiro que
projetado por Francisco de Oliveira Passos lembra, segundo Giovanna Rosso del
Brenna, a ópera de Garnier.
No Rio de Janeiro do início do século XX, as importantes construções teriam
sido concebidas a partir de uma ênfase tipológica. Segundo Giovanna, a
identificação imediata do edifício como "o teatro", "o
museu" era fundamental.[7] Sendo assim, o teatro municipal teria que
se inspirar na ópera de Garnier, exemplo maior dos
teatros da época. Assim, ao tratar da arquitetura de marcas europeias na
Salvador do início do século XX, não poderíamos ignorar a grande importância da
produção parisiense da segunda metade do século XIX.
Composição
Beaux-Arts
13.
Usando
formas simples para determinar uma figura, o arquiteto Beaux-Arts
construía um plano no qual o traçado de eixos, a simetria e a construção de
sucessivas perspectivas constituíam os principais pontos da composição. Assim a
forma antecedia as necessidades determinadas pelo programa, e o principal
objetivo era elaborar um edifício no qual plano e volume se correspondessem perfeitamente,
formando um todo harmonioso de espaços desenvolvidos em torno de um eixo
principal de equilíbrio.
14.
No
início do século XIX, a organização das fachadas, respondendo às leis
clássicas, era baseada na hierarquia das ordens. O espaço central do edifício,
elemento dominante da planta, era geralmente valorizado no volume exterior,
independentemente do seu grau de importância para o programa do edifício.
15.
Porém,
a multiplicação e diversidade dos programas logo alteraram algumas leis iniciais.
A organização planimétrica dos edifícios seguiu ainda as regras de um partido
monumental, mas suas fachadas tiveram concepção desvinculada da ideia de uma
obediência perfeita à hierarquia das ordens.
16.
A
composição passou a basear-se na ideia do point. Este, em planta, era o
local de encontro do eixo de equilíbrio, longitudinal, com o eixo secundário,
transversal. O point veio determinar o ponto principal de referência da
obra que era igualmente expresso na composição dos volumes exteriores, através
de uma valorização vertical. O espaço no qual dava-se
o encontro destes eixos era o compartimento representante da mais importante
atividade do edifício, ou seja, era o espaço dominante e essencial da obra
arquitetônica em questão.
17.
Assim,
o abandono da hierarquia das ordens do sistema Beaux-Arts
e a expressão da dominante nas fachadas deram lugar a uma nova concepção
arquitetônica, cujo princípio central de organização era o caractère
dos edifícios. Nesta nova concepção, estilo e programa correspondiam-se e cada
edifício parecia assim ter um lugar bem definido na estrutura urbana e social.
Segundo François Loyer, este processo arquitetônico,
ou simplesmente o ecletismo do qual já falamos,
correspondia à definição da sociedade francesa do século XIX. Cheia de
contrastes, ela evidenciava todas as suas diferenças de status através
do tipo de roupa, cores etc. A arquitetura passou a seguir a mesma lei.[8]
18.
Os
princípios definidos acima, independentes das alterações sofridas no tempo, faziam
parte da concepção de uma obra Beaux-Arts,
constituindo um corpo de ideias bastante diferente, por exemplo, dos elementos
da doutrina racionalista de Viollet-le-Duc. A organização espacial de um edifício, segundo Viollet-le-Duc, dava-se
exatamente de modo contrário: seu princípio fundamental em planta era a
justaposição das superfícies, que tinham suas formas definidas em função das
exigências do programa e da construção. A assimetria, o jogo de volumes, a
multiplicação de pontos referenciais, respondendo às exigências construtivas e
de certa maneira funcionais do plano, eram as bases de sua realização.
19.
Porém,
a partir do progresso técnico e científico, do avanço industrial contínuo, do
surgimento de novos materiais e da determinação da nova organização dos
edifícios em base do caractère, esta e outras
dicotomias desfizeram-se.
20.
Unido
a isto, deu-se o triunfo do detalhe. Triunfo que, herdado do racionalismo
gótico, transformou o ornamento em um elemento independente,
"contradizendo a unidade geral do edifício, tão importante para a
composição Beaux-Arts: cada motivo é uma
adição de objetos, cuja síntese é artificial já que ela é dada apenas pelas
grandes linhas do traçado". A ideia de ecletismo como produto de uma
colagem tem assim suas principais bases históricas. Nota-se claramente, sempre
segundo Loyer, que o mesmo era resultado de uma
escolha consciente, na qual a unidade artificial tinha seus próprios objetivos,
não se tratando assim de um mero pastiche.
21.
A
ópera de Garnier é um dos representantes mais
importantes desta nova fase. Segundo François Loyer,
os pontos referenciais da ópera multiplicam-se e sua composição dá-se a partir
do destaque de determinados "centros de interesse". Sendo assim, às
diferenças estilísticas existentes entre os diversos programas, ou seja, à
determinação do caractère, une-se a
valorização do detalhe, do ornamento.
22.
Neste
momento, a ideia de composição de Albert Ferran[9]
parece ultrapassada. A ordenação de um edifício não poderia ser mais definida a
partir de um único ponto referencial, ou seja a partir
do point, local onde os principais eixos de uma composição Beaux-Arts encontravam-se no espaço essencial do
edifício. Igualmente, a valorização deste point na fachada não
proporcionava mais sua imediata identificação.
23.
Neste
percurso, sendo desfeita a especificação compositiva, deu-se o domínio da
independência entre a composição dos planos e dos volumes. O sistema Beaux-Arts perdeu então totalmente sua lógica e
pertinência.
24.
Em
1900, a dicotomia entre o clássico e o pitoresco, existente também nos espaços
da cidade - o primeiro integrante do centro, da arquitetura oficial, e o
segundo das habitações suburbanas -, foi também substituída pela arte
monumental urbana, na qual composições Beaux-Arts
e pitorescas passam a conviver lado a lado.[10]
A
questão monumental
25.
Segundo
Loyer, o edifício burguês parisiense adquiriu
características físicas de um monumento arquitetônico, no momento em que ganhou
grandes proporções, elementos decorativos e nobres materiais. Sendo construído
em toda cidade, ele criou uma imagem uniforme de Paris que parecia monumentalisar-se. Isto, segundo o autor, perturbou a
dicotomia que normalmente se estabelece nas cidades entre o que é monumental e
o que é vernacular.[11]
Afinal, a arquitetura de um monumento destaca-se do contexto da arquitetura
ordinária, não se confundindo com as edificações do ambiente no qual se
encontra.
26.
Buscando
então uma revalorização da sua condição de elemento urbano extraordinário, os
monumentos arquitetônicos da Paris do século XIX tiveram suas características
alteradas. Também segundo Loyer, estes edifícios
passaram então a ser definidos por dimensões ainda mais imponentes que aquelas
do immeuble
burguês, por um enriquecimento emblemático e por uma complexidade volumétrica,
sobretudo no coroamento. Esta complexidade foi totalmente oposta aos volumes
unitários dos edifícios burgueses.
27.
Tratando-se
da situação propriamente urbana, os monumentos arquitetônicos passaram a
constituir elementos geralmente isolados, que, integrantes da estrutura das
grandes avenidas, mostraram-se como construções essenciais na organização do
espaço urbano, pontos de atração visual importantes,
determinando diversas perspectivas urbanas [Figura 1].
Assim, eles foram elementos fundamentais para a compreensão das transformações
urbanas de Paris do século XIX.
O
edifício monumental no centro de Salvador: uma resposta local
28.
A
produção de italianos no contexto de alterações urbanas de Salvador no início
deste século é particularmente voltada para a construção de importantes e
luxuosos palacetes na cidade, como também para a construção ou reforma de
edifícios de uso público de caráter monumental. Deste fato, a questão do
monumento arquitetônico, edifício que se destaca no ambiente devido às suas
proporções e formas excepcionais e que possui um conteúdo simbólico forte,[12] torna-se aqui elemento fundamental para
o nosso estudo.
29.
Na
realidade, construir monumentos arquitetônicos foi uma das questões das mais
importantes para os dirigentes da época.[13] Eles
tentavam construir a história do presente em base do exemplo da Terceira
República Francesa, para a qual os monumentos tiveram, como ressaltamos, um
papel fundamental na organização de Paris e evidentemente na sua história.
30.
Em
Salvador, acompanhando uma prática realizada nos grandes centros republicanos
brasileiros, edifícios de proporções monumentais foram construídos pelo governo
e pelos grupos sociais em ascensão no início deste século. Muitos destes eram
equipamentos de uso público, cujos programas praticamente inexistiam até então
em Salvador.
31.
O
palácio Rio Branco [Figura
2 e Figura 3], a Associação dos Empregados do Comércio [Figura 4], o
Instituto Histórico e Geográfico [Figura 5] e o Palácio da Aclamação [Figura 6 e Figura 7] são
importantes exemplares destes edifícios. Monumentos da arquitetura eclética, são muitas vezes vistos como produtos de importação, cuja
marca da influência europeia reside apenas nas fachadas.
32.
Esta
produção arquitetônica parece ser julgada assim, a partir de uma rápida
observação apenas dos seus elementos decorativos exteriores. Porém, a partir de
uma análise minuciosa destes edifícios segundo a estrutura urbana na qual foram
implantados, nota-se que os mesmos foram marcados por elementos da produção europeia
do século XIX, não apenas nas suas fachadas, mas também nas suas plantas.[14] Percebe-se que estes elementos
adaptaram-se à situação urbana e histórica local, refletindo assim de maneira
incompleta as características mais gerais da arquitetura europeia.
33.
Como
já afirmamos, apesar das alterações urbanas do início do século, o urbanismo
colonial caracterizou o centro de Salvador. Entretanto, é preciso também
analisar os resultados de um edifício monumental construído nesta época a
partir de uma nova situação urbana. O caso específico do palácio da Aclamação,
edifício de propriedade pública com função residencial, construído na
área mais ao sul da cidade, é exemplar. Edificado nos limites do antigo Passeio
Público, o Palácio da Aclamação possui duas fachadas: uma que se volta para a avenida Sete de Setembro [Figura 6] e
outra para o jardim do Passeio Público [Figura 7][15]. A
existência de um terreno em condição urbana diferenciada não proporcionou ao
edifício uma implantação extraordinária.
34.
Todos
estes monumentos apresentam entre si elementos comuns que indicam assim a
caracterização fragmentada do estilo arquitetônico internacional em Salvador.
Independentemente da teoria de composição seguida, suas plantas apresentam um
vestíbulo central e suas fachadas, tripartidas, possuem um coroamento também
central que tenta sugerir determinada verticalidade ao conjunto. Pois seus
volumes com tímidos recuos e avanços apresentam uma forma compacta de
predominância horizontal.
35.
Os
edifícios monumentais soteropolitanos, concentrados geralmente nos limites do
antigo centro, foram edificados em terrenos de pequenas dimensões de
características coloniais, cujos perímetros terminaram condicionando a forma
compacta do edifício. No caso do Instituto Histórico e Geográfico, construído
em um terreno de perímetro irregular, o lote inclusive condicionou de certa maneira
a volumetria do edifício. E quanto ao palácio da Aclamação, notamos que sua
determinação formal segue também as características dos monumentos coloniais,
embora tenha sido construído nos limites de um grande jardim, o Passeio
Público.
36.
As
dimensões dos terrenos dos edifícios monumentais seguiram neste momento os
parâmetros definidos no período colonial, seja por uma imposição da cidade
existente, seja pela continuidade de uma prática tradicional. E repetindo
também esta prática, eles geralmente ocuparam toda a superfície dos terrenos de
características coloniais, ou seja, testada longa e laterais
pouco profundas, o que geralmente proporcionou-lhes uma volumetria de
predominância horizontal.
37.
No
que se refere então à situação destes edifícios no contexto da cidade, notamos
que, quando situados nas avenidas, eles foram implantados na testada do
terreno, como as construções ordinárias. Desta maneira, eles constituíram com
estas uma espécie de bloco construtivo que acompanhou a irregularidade do
traçado urbano. E nas praças, no caso mais específico da praça
do Palácio, no topo da colina, eles foram implantados na margem do espaço vazio
como os monumentos coloniais.
38.
Sendo
assim, a posição do edifício na rua colaborou com a sua inscrição em ângulos de
vista oblíquos determinados pela trama de vias estreitas de traçado irregular;
e sobre a praça, às margens da escarpa, no caso da praça
do Palácio, explorou-se as qualidades do local, como a sua altura e os aspectos
naturais e pitorescos do sítio.
39.
Percebemos
assim que a preocupação com a cenografia urbana, como apontam Ana Fernandes e
Marco Aurélio Gomes observando a implantação do teatro São João no início do
século XIX,[16] também fez parte das principais
realizações monumentais do início do século XX. Ligadas a uma valorização das
características naturais do sítio, a política urbana que dirigiu a implantação
de monumentos no início deste século situou-os consciente ou inconscientemente
em pontos estratégicos e altos da topografia acidentada da cidade, ou mesmo em
pontos estratégicos de uma trama de ruas de traçado irregular. A surpresa e o
êxtase seriam os guias desta experiência urbana.
40.
Na
realidade, explorou-se a topografia acidentada da cidade, como também as
particularidades do urbanismo colonial, como a irregularidade do traçado das
ruas e suas pequenas larguras e o tipo de praça fechada para a determinação do
monumental. Assim, se observarmos que o centro colonial teve seus principais
monumentos localizados em pontos estratégicos e altos de sua topografia
acidentada, o mesmo aconteceu no início do século XX, quando também se deu
preferência a este tipo de implantação.
Conclusão
41.
Concluímos
assim que as características urbanas preservadas e valorizadas no momento em
questão não favoreceram a produção de plenos monumentos com base nos sistemas
de composição parisiense. Quando a arquitetura burguesa parisiense atingiu uma
condição monumental, os verdadeiros monumentos tomaram maiores proporções,
ocupando grandes áreas compatíveis com a trama de largas avenidas da cidade de Haussmann. Houve assim uma verdadeira cumplicidade entre a
arquitetura e as características urbanas de Paris e os edifícios monumentais
integraram certamente condições favoráveis para obtenção de perfeitas
composições, sobretudo as empreendidas pelo sistema Beaux-Arts.
Além do mais, estes edifícios foram situados no encontro de largas avenidas, no
centro de espaços abertos e assim passaram a integrar grandes perspectivas
urbanas.
42.
Os
monumentos de Salvador, ao contrário, foram situados em pontos estratégicos de
uma topografia acidentada e em uma trama de ruas estreitas de traçado
irregular, características às quais conjugou-se a
ênfase da verticalidade, através da utilização de elementos arquitetônicos.
43.
Além
disto, houve o estabelecimento de um constante diálogo entre a arquitetura e a
cidade. Pois enquanto os planos destes edifícios eram concebidos a partir de
certos elementos e conceitos do sistema Beaux-Arts
ou a partir da doutrina racionalista de Viollet-le-Duc, a concepção de fachadas desarticulada da composição
dos planos demonstra um forte compromisso com os espaços da cidade e sua
hierarquia. Através da composição arquitetônica, estas fachadas foram muitas
vezes dispostas em uma relação espacial com importantes áreas urbanas da
história colonial. Este fato parece sugerir a transmissão de uma mensagem
política, econômica ou social: a relação do momento republicano com o glorioso
passado colonial, quando Salvador era o maior centro do país.
44.
Ao
contrário da França, do Rio de Janeiro e de São Paulo, Salvador não investiu
muitos recursos e esforços em uma produção industrial. No início do século XX,
sua principal base produtiva ainda ancorava-se nas atividades do seu porto,
como no período colonial, enquanto os grandes centros mundiais
industrializavam-se.
45.
Apesar
dos fatores que denotam o aumento de riquezas individuais, o gasto e o
desenvolvimento de uma vida material com base em produtos suntuosos importados,
o estado da Bahia como um todo não mostrava na época sinais de progresso com
base na nova ordem nacional e internacional, ou seja, a industrialização.
46.
Movida
pela idealização de uma sociedade nos moldes europeus, o processo de
modernização de Salvador carregou sobre si, porém, toda a herança colonial.
Esta posição não deixava de ser fruto de uma suposta e ilusória necessidade de
preenchimento de um vazio: a condição de centro principal do Brasil colonial.
Esta necessidade parece ter obtido espaço, em primeiro plano, para que Salvador
se mantivesse, sobretudo pelas mãos de sua elite, mais uma vez fiel à sua
realidade do passado.
47.
Sendo
assim, torna-se claro que a criação de edifícios monumentais marcados pela
arquitetura europeia do século XIX no centro de Salvador resultou especialmente
da vontade, desvinculada da sua realidade, de modificar a imagem da cidade
colonial, vontade baseada na ideia de progresso que estava em vigor no Brasil
entre o final do século XIX e o início do século XX. Isto mostra de certa forma
a autonomia arquitetônica.
48.
Quanto
à política urbana colocada em prática na implantação destes monumentos
arquitetônicos, concluímos que ela é a confirmação de uma tradição,
continuidade de certos hábitos espaciais estabelecidos no passado. Embora estes
monumentos apresentem diferenças, eles foram construídos nos limites do
terreno, seguindo o traçado das ruas, usufruindo da configuração urbana para
reafirmar a sua condição de monumento. Desta maneira, como os monumentos coloniais, eles foram implantados segundo
uma perfeita harmonia com as características do sítio. Por outro lado, esta política está incluída no
contexto da arte urbana que, por volta de 1900 na Europa, ultrapassava a
oposição entre o que era clássico e pitoresco em relação à arquitetura e aos
espaços urbanos.
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Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris,
Rio e Salvador). Salvador, EDUFBA, 2002.
PUPPI, Suely de O. F. A Arquitetura dos
Italianos em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços europeus e
modernização urbana no início do século XX. São Paulo:1998.
Dissertação apresentada ao Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Fauusp.
_________________________
* Este
artigo foi elaborado em base da dissertação de mestrado A Arquitetura
dos Italianos em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços europeus e
modernização urbana no início do século XX, defendida pela autora na Fauusp em 1998.
**
Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas pela Fauusp,
professora de Teoria e História da Arquitetura no Centro Universitário
Filadélfia-Unifil em Londrina-Pr.
[1] Ver Heloisa Petti Pinheiro, Europa, França e Bahia: difusão e
adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador, EDUFBA, 2002.
[2] Fraçois Loyer. Paris XIXe siécle. L’Immeuble et la rue. Paris, Hazan,1987, p.128
[3] Citado por François Loyer, Le siècle de l'industrie. Paris, Skira, 1983, p. 178.
[4] Idem, p. 112
[5] Jean-Pierre Epron (dir.).
Architecture. Une Anthologie. Liège, Mardaga, s/d, p. 171. Segundo o autor, a École des Beaux-Arts passou apenas a ter grande
importância a partir do momento em que houve um confronto das diversas idéias dos seus professores, institucionalisando-se
assim o debate arquitetural e autorisando o
ecletismo.
[6] Claude Mighot. L'architecture
au XIXe siècle. Paris,Hazan, 1987, p.
156.
[7] Giovanna Rosso del
Brenna. Ecletismo no Rio de Janeiro (séc. XIX-XX).
In: Annatereza Fabris (org.). Eletismo na Arquitetura
Brasileira. São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, p, 57.
[8] Ver François Loyer. Ornement e
caractère. In: Le siècle de l’eclectisme. Lille 1838-1930. Paris/Bruxelas, AAM, 1979, pp.65-104.
[9] Ver Albert Ferran. Philosophie
de la composition architecturale, Paris, Editions Vincent Fréal, 1955
[10] François Loyer. Le
Siècle de L’Industrie. Paris, Skira, 1983, p. 231.
[11] Fraçois Loyer. Paris
XIXe siécle. L’Immeuble et la rue,
Paris, Hazan, 1987, p.293.
[12]
Cf. Otília Arantes, Os dois lados da Arquitetura pós-Beaubourg" in: O lugar da
arquitetura depois dos modernos, São Paulo, Edusp-Nobel, 1993, p. 179.
[13] Evidenciamos nos
discursos de J. J. Seabra e nos jornais da época, a
preocupação de modernizar, civilizar a cidade através da construção de
palácios, além das largas avenidas.
[14] Na dissertação de
mestrado A arquitetura dos italianos em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços europeus
e modernização urbana no início do século XX, defendida pela autora deste
artigo na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo em 1998,
existe um capítulo que trata especificamente dos traços da arquitetura Beaux-Art nos
edifícios monumentais soteropolitanos.
[15] O Passeio Público
de Salvador foi construído no início do século XIX. Mas durante a criação da avenida Sete de Setembro sua área foi alterada, uma vez que
esta avenida teve trecho construído nos limites internos deste jardim.
[16] Para maiores
detalhes, ver Ana Fernandes e Marco Aurélio A. F. Gomes,
Idealizações Urbanas e a Construção da Salvador moderna: 1850-1920. Espaços
e Debates, 1991, n.34, p.99-103