Pintura decorativa na 1ª República: Formas e Funções *

Arthur Valle

VALLE, Arthur. Pintura decorativa na 1ª República: Formas e Funções. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. https://doi.org/10.52913/19e20.ii.04.04

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1. Para o pesquisador que se debruça sobre a arte produzida no Brasil durante o período conhecido como 1ª República (1889-1930), o crescimento da produção de pinturas decorativas então verificável se apresenta como um fato digno de nota. Esse fenômeno tem relação direta com o movimento mais amplo de difusão de trabalhos decorativos em diversos outros centros artísticos mundiais, movimento este que, possuindo as suas raízes nas primeiras décadas do século XIX em países como Alemanha e França,[1] se intensificou a partir da década de 1870, e se estendeu - tomando por vezes contornos febris - por boa parte da Europa e também pela América do Norte.

2. No Brasil, a partir de meados da década de 1890, depois de superada a instabilidade dos anos iniciais da República, vamos encontrar uma série de edifícios públicos sendo reformados ou construídos, nos quais arquitetura, decoração de interiores, pintura e escultura se encontram estreitamente associadas. A lista dos trabalhos decorativos então realizados é vasta e estes variavam bastante de envergadura, indo desde um simples quadro até os grandes conjuntos, nos quais vários artistas de diferentes especialidades eram chamados a trabalhar. Podemos aqui citar, sem pretender fornecer um inventário exaustivo, as decorações para os diversos Palácios de Governo das administrações estaduais;[2] as decorações realizadas na primeira década do século XX nos edifícios da Avenida Central do Rio de Janeiro e de seus arredores, tanto naqueles com fins político-administrativos (Supremo Tribunal Federal [Figura 1], Banco Central do Brasil), quanto comerciais (Companhia Docas de Santos) ou culturais (Theatro Municipal [Figura 2], Escola Nacional de Belas Artes, Bibliotheca Nacional); as decorações efêmeras para os pavilhões de grandes exposições, realizadas no Brasil (Rio de Janeiro, 1908 e 1922) ou no exterior (Chicago, 1893; St. Louis, 1904; Turim, 1911 [Figura 3], etc.); os trabalhos decorativos para o Museu Paulista, intensificados com a administração de Alfonso d'Escragnolle Taunay, a partir de 1916; e as decorações para as grandes sedes de poder da Capital Federal erguidas nos anos 1920, os atuais Palácios Pedro Ernesto e Tiradentes.

3. Durante a 1ª República, a realização de pinturas visando à decoração de casas de particulares foi um outro campo que igualmente se expandiu, motivado pela hegemonia de uma concepção de decoração de interiores caracterizada pelo desejo de imitar aquilo que, em tempos de fortunas particulares menores, ou, sobretudo, de menor queda pela ostentação, havia sido apanágio dos palácios reais, das sedes do poder público, da Igreja. Tal demanda foi responsável, inclusive, pela aparição de um novo gênero de composições nos “salões” e exposições particulares do período, normalmente chamadas, nos catálogos ou notícias sobre tais mostras, de painéis decorativos [Figura 4],[3] expressão que parecia servir como uma espécie de cláusula restritiva destinada a orientar o olhar do espectador com relação a certas particularidades formais frequentes nas pinturas decorativas. Mas quais eram essas particularidades? Seria possível delimitar o que, afinal, era entendido como pintura decorativa durante a 1ª República brasileira?

4. Por certo, a questão do que definia uma pintura como decorativa, a partir do século XIX, não comporta uma resposta única e simples. Em termos que eram familiares tanto ao jargão da teoria acadêmica quanto ao dos ateliers oitocentistas, por exemplo, a pintura decorativa foi por vezes definida simplesmente em termos da sua função de ornamento arquitetônico, ou seja, como toda pintura concebida para tomar o seu lugar definitivo contra uma parede ou se substituir a ela - o que valia tanto para a pintura a fresco, quanto para as pinturas em telas marouflées sobre uma superfície mural e também para aquelas montadas sobre chassis.[4] Todavia, tal noção, bastante objetiva, não nos deixa entrever outros aspectos importantes que deveriam constar em qualquer tentativa de resposta à questão acima lançada.

5. Alguns desses aspectos tem relação direta com a dimensão formal das pinturas decorativas: desde meados do século XIX, diversos estetas defenderam a ideia de que estas possuíam um caráter particular e deveriam diferir das pinturas de cavalete tanto pela sua apresentação quanto pelo seu aspecto.[5] De fato, como poderemos perceber com relação a maior parte das obras nas quais aqui nos deteremos, as pinturas decorativas realizadas no Brasil durante a 1ª República usualmente se conformavam a uma série de exigências de composição, de desenho e de cor, tidas como essenciais ao seu caráter ornamental. Em outras palavras, essas pinturas se adequavam a um modo particular,[6] propriamente decorativo, marcado por algumas características formais como: a estilização sintética dos motivos representados; a predileção pelo uso de uma gama de cores pouco contrastadas, mormente de tons pastéis; e uma tendência à abolição de efeitos acentuados de modelado e espacialidade - tudo isso conduzindo à uma afirmação da planaridade das obras, por vezes levada a extremos de radicalidade.

6. A razão de ser de tais particularidades formais não deixava de se relacionar à premissa acima referida, segundo a qual as pinturas decorativas eram concebidas justamente para decorar um muro. Contrariamente às regras estabelecidas, por exemplo, para as decorações plaffonnants nos séculos XVII e XVIII, influentes correntes estéticas surgidas no oitocentos defendiam que a pintura decorativa não deveria destruir a integridade do conjunto arquitetural que a abrigava. Tal era, em boa parte, o ideal dos discípulos de J. A. D. Ingres - cujos esforços, muito voltados para um certo passado clássico, não lograram, todavia, uma repercussão de grande porte. Mas uma concepção semelhante fora divulgada por Prosper Merimée, já em 1851,[7] e retomada por diversos teóricos e artistas, como Charles Blanc, Teóphile Gautier ou o pintor Jules Breton, que certa feita declarou: “Desejamos que a pintura mural, nobre bela, todavia circonspecta, antes de mais nada complete a arquitetura que decora.”[8] Por ter que se submeter ou, ao menos, não sobrepujar o conjunto arquitetural no qual se inseria, não é de se estranhar que, durante a 1ª República brasileira, a pintura decorativa fosse pensada, muitas vezes, como essencialmente aparentada das chamadas artes aplicadas (mosaico, vitral, tapeçaria, etc.), mais do que da pintura enquanto propriamente uma das belas-artes.

7. Um outro aspecto distintivo das pinturas decorativas brasileiras no primeiro período republicano se relaciona à sua temática. Sem sombra de dúvida, um dos fatores mais importantes para a acima referida difusão de trabalhos decorativos no período da 1ª República foi o papel que o gênero assumiu no esforços coletivos de criação de uma identidade cultural brasileira. Isso foi evidente na parcela mais espetacular dessas pinturas, aquela projetada para prédios públicos e, muito especialmente, para aqueles com fins político-administrativos. No Brasil, como na maioria dos países europeus e no resto das Américas, se tinha como pressuposto que a pintura destinada a ornar tais edifícios deveria ser uma expressão dos sentimentos coletivos, da própria “alma” do povo: tanto quanto embelezar as construções que a abrigavam, ela deveria, portanto, educar e propagar valores políticos e morais que concorriam para a afirmação do regime vigente. Como bem resumiu Valéria Salgueiro:

8. Nas democracias liberais, assim como nos países socialistas do século XX, uma arte para atingir o público ganhou espaço conforme se ampliaram a própria ideia de público e o tamanho do Estado. Em prédios públicos, amplas paredes vieram abrigar uma ação didática sobre a consciência coletiva no plano simbólico, visando a despertar o sentimento patriótico. Paredes e tetos de palácios de governo, assembleias, tribunais, bibliotecas e teatros forneceram, nesse sentido, suportes privilegiados para a projeção do discurso oficial numa linguagem visual captada imediatamente pelos sentidos, acessível mesmo aos não alfabetizados. Em muitos lugares do mundo buscou-se fortalecer a identidade nacional apelando ao patriotismo com o trabalho de figuração em imagens alusivas ao pretendido passado comum, aos mitos de origem e de fundação, aos heróis venerados e, enfim, ao processo histórico da nação.[9]

9. Em termos iconográficos, essas funções de persuasão da população e de celebração do regime republicano brasileiro se refletiram, como não poderia deixar de ser, na predileção por uma temática inspirada na História do Brasil, mas também no amplo uso da alegoria e no desenvolvimento de repertórios ornamentais baseados em elementos da fauna e da flora brasileiras, bem como em manifestações culturais tidas como autóctones - como, por exemplo, a cerâmica Marajoara. O interesse pela criação desses repertórios ornamentais brasileiros, aos quais aqui faremos apenas uma breve referência, pode ser verificado já na primeira década do século XX, na obra de Eliseu Visconti, mas a sua difusão ganhou contornos mais expressivos nos anos 1920, como comprovam os trabalhos de Theodoro Braga, do paranaense João Turin, entre outros artistas.

10. O projeto republicano de “releitura” da História do Brasil e de culto das virtudes e valores nacionais acabaria por ser reproduzido na esfera mais restrita dos Governos Estaduais, tendo o advento da República contribuído para uma maior valorização dos personagens e acontecimentos regionais carregados de importância simbólica. Em razão disso, muito se desenvolveu, na 1ª República, a relação, ainda insuficientemente estudada, entre a historiografia produzida nos chamados Institutos Históricos e Geográficos espalhados pelo país e os pintores encarregados de decorações públicas. Um dos exemplos pioneiros, nesse sentido, é a obra de José Ferraz de Almeida Jr., A partida da monção, de 1897 [Figura 5]. Essa grande tela, mostrada no Rio de Janeiro na Exposição Geral de 1898, representa a saída de uma caravana de antigos colonizadores paulistas, às margens do Rio Tietê.[10] À época, ela se inseria no esforço de criação de uma identidade regional que levou instituições como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o Museu Paulista, a Academia Paulista de Letras e o jornal O Estado de S. Paulo, a produzir um discurso laudatório que, entre outros aspectos, conduziu à glorificação dos bandeirantes.

11. Em termos formais, A partida da monção apresenta características que vamos reencontrar em parcela significativa das pinturas decorativas da 1ª República, como o clareamento da paleta cromática e a severa contenção dinâmica da composição e da maioria dos personagens. No nosso entender, essas características visavam, em última análise, à já referida inserção da obra em um conjunto arquitetônico. Elas são reveladoras, ainda, do intenso diálogo que os brasileiros estabeleceram com a obra de pintores franceses que, na aurora do século XX, eram celebrados como os maiores decoradores de seu tempo - artistas como Benjamin Constant, Jean-Paul Laurens, e, muito especialmente, Pierre Puvis de Chavannes.

12. Entre os quadros de grandes dimensões destinados à decoração de prédios públicos, retratando momentos emblemáticos da História do Brasil e realizados na virada do século XIX para o XX, cumpre fazer uma menção particular tanto à pintura de Belmiro de Almeida, Os descobridores (1899) [Figura 6], hoje no Museu Histórico do Itamaraty, quanto à série concebida por Antonio Parreiras para ornamentar o antigo prédio do Supremo Tribunal Federal do Rio de Janeiro - o quadro Suplício de Tiradentes (1901) [cf. Figura 1], mais os painéis A chegada (1900) e A partida (1902) [Figura 7]. Em termos formais, essas obras partilham muitas das características às quais acima nos referimos com relação A Partida da Monção, como a mesma predominância de tons neutros e relativamente pouco contrastados, na paleta, e a mesma contenção dinâmica, na composição. Porém, se recordarmos a função celebrativa que supostamente deveria nortear as pinturas decorativas, o que mais chama atenção nessas obras é a sua ambiguidade.

13. N'A partida de Parreiras e mais ainda n'Os descobridores de Belmiro, o “marco inaugural” da nação não é representado como um fato glorioso, mas, muito pelo contrário, se configura como um momento de abandono e melancolia, no qual os colonos se encontram desprotegidos diante de uma natureza inculta e aparentemente árida. Poderíamos deduzir desse fato que, nos anos inicias do regime republicano, a renovação da pintura decorativa se dava não apenas através da absorção de novos partidos formais, inspirados na pintura europeia contemporânea, mas comportava também um olhar crítico lançado à arte nacionalista produzida durante o Império: isso implicava no rompimento com uma certa perspectiva idealista e laudatória que fora até então muito comum, deixando abertas novas portas para a interpretação dos fatos marcantes do passado nacional.

14. Se essa referida ambiguidade é por vezes detectável nas decorações realizadas por pintores cuja formações artísticas remontavam aos anos finais do período Imperial - como foi o caso de Parreiras e Belmiro -, ela é menos evidente nos trabalhos de uma geração mais nova de pintores, aquela formada já no período republicano sob os auspícios da reformada Escola Nacional de Belas Artes. Exemplos inequívocos de decorações comprometidas com a exaltação da nação e com o culto patriótico podem ser encontrados, por exemplo, nos já referidos Palácios Pedro Ernesto e Tiradentes, sedes do poder legislativo erguidas no Rio de Janeiro nos anos 1920.

15. Logo acima da escadaria que domina o vestíbulo do Palácio Pedro Ernesto, por exemplo, se descortina o grande tríptico pintado por Eliseu Visconti, Alegoria à Cidade do Rio de Janeiro (1920-1923) [Figura 8a], que celebra, entre outras motivos, dois vultos históricos que foram fundamentais para a configuração moderna da então Capital Federal, o médico-sanitarista Oswaldo Cruz e o prefeito Pereira Passos [Figura 8b]. Mas é no Palácio Tiradentes [Figura 9] que vamos encontrar o exemplo talvez mais orquestrado e complexo de exaltação cívica através de imagens realizado durante a 1ª República.

16. Esse edifício, que hoje abriga a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, teve a sua pedra inaugural assentada em junho de 1922. Sua construção se inseria no processo de remodelação da paisagem urbana carioca, iniciado às vésperas das comemorações do centenário da Independência e que foi marcado por ações reformadoras de enorme envergadura - a mais radical delas tendo sido, sem dúvida, o desmonte do Morro do Castelo. Atendendo à demanda da Câmara dos Deputados por uma nova sede, o Palácio Tiradentes veio ocupar o local onde antes se erguia o prédio da Cadeia Velha. A escolha do sítio já estava impregnada de simbologia: ali o inconfidente Tiradentes, mártir da liberdade política brasileira e patrono do novo edifício, ficara detido em seus últimos dias de vida. Além disso, a Cadeia Velha possuía uma longa tradição legislativa, se constituindo assim como um eixo de continuidade na vida parlamentar do país, uma vez que, por mais de sessenta anos, nela funcionara a Assembleia do Império.

17. Nas dispendiosas obras de construção do Palácio Tiradentes trabalharam alguns dos mais prestigiados artistas brasileiros da 1ª República. No plano arquitetônico geral do prédio, nas suas decorações pintadas e esculpidas, e mesmo nos seus detalhes ornamentais, é possível “ler” um discurso em linguagem imagética representativo das concepções políticas e ideológicas que então oficialmente vigoravam, discurso esse centrado na noção de um projeto de nação brasileira consolidado essencialmente a partir das leis. É esse o caso de alguns painéis que o Palácio abriga e que, não portando propriamente as características formais que acima enumeramos com relação às pinturas decorativas, se aproximam mais dos gêneros tradicionais da pintura histórica e do retrato coletivo: O primeiro capítulo da história pátria: A carta de Pero Vaz de Caminha, de Aurélio de Figueiredo; O primeiro capítulo de nossa história parlamentar: A participação dos deputados brasileiros nas cortes constitucionais portuguesas, de Fiúza Guimarães; e Os constituintes de 1891 no antigo Paço da Quinta da Boa Vista (1926), quadro de Eliseu Visconti que figura como peça central no recinto do Plenário.

18. É no mesmo sentido da fixação em imagens de uma unidade nacional com raízes legislativas que podemos compreender parte das decorações da imponente cúpula que domina o Plenário - a peça central do Palácio e a sua verdadeira razão de ser -, feitas por Rodolpho Chambelland, auxiliado por seu irmão Carlos, entre 1925 e 1926. A escolha da linha interpretativa da História do Brasil e dos momentos significativos a serem representados nas oito pinturas que figuram na cúpula teria recaído sobre o prestigiado Alfonso Taunay, que propôs o tema dos painéis, Os pontos cardeais da História do Brasil: dispostos como uma bússola em volta do vitral representando o céu do Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1889, os painéis estão divididos em duas linhas temáticas distintas que dialogam entre si, compondo uma visão panorâmica do passado brasileiro. Assim, os quatro painéis maiores contam a evolução política do país - A catequese [Figura 10a], O Governo Geral [Figura 10b], A Monarquia [Figura 10c] e, sobre a Mesa Diretora, A República [Figura 10d] - e se alternam com outros quatro painéis menores, cujos temas se referem ao processo de formação territorial do Brasil - Cabral chegando ao Novo Mundo [Figura 10e], A luta pela expulsão dos invasores estrangeiros [Figura 10f], As bandeiras [Figura 10g] e O Barão de Rio Branco definindo os limites territoriais [Figura 10h].[11]

19. Nessas obras monumentais, todas com mais de seis metros de altura e marcadas por uma fatura divisionista, os Chambelland optaram por um registro mormente laudatório, inserindo retratos bastante estilizados de personagens históricos em um contexto alegórico. Essa mistura é especialmente notável nos grandes painéis da Monarquia e da República, que, retomando o partido dos tradicionais triunfos renascentistas,[12] apresentam cortejos nos quais alguns dos principais vultos do país se encontram cercados de figuras simbólicas. Em todos esses painéis, os retratos dos heróis nacionais se encontram localizados na parte inferior da composição e são marcados por uma relativa definição; à medida que se aproximam da parte superior, todavia, as pinturas se tornam progressivamente mais diáfanas e se desvanecem, a ponto dos putti e das figuras femininas aladas que nelas aparecem se tornarem quase indistinguíveis. Cromaticamente, predominam os já referidos tons neutros e o branqueamento da paleta, favorecendo a integração das pinturas na superfície de cantaria nua que compõem a cúpula e que transparece nas molduras que cercam e separam os painéis.

20. Em outros conjuntos decorativos do Palácio Tiradentes, o domínio do registro alegórico é total. É o caso dos cinco painéis realizados por João Timótheo da Costa para o teto do Salão de Honra [Figura 11a]. No painel central desse ciclo, se encontra uma grande representação da República figurada como uma mulher portando o barrete frígio [Figura 11b], derivada da conhecida iconografia inaugurada com a Revolução Francesa, que pode ser vista também em um dos referidos painéis dos irmãos Chambelland. A República se encontra cercada por dez outras figuras alegóricas, que, segundo o pesquisador Carlos Eduardo Sarmento, remetem às grandes datas nacionais, compondo uma espécie de calendário cívico brasileiro: “Situar tal conjunto na chamada Sala de Honra do Palácio tinha sido uma atitude completamente intencional, afinal, aquele deveria ser o espaço consagrado às grandes festas e celebrações do civismo brasileiro.”[13]

21. Já os frisos que decoram a chamada Sala do Café, espaço concebido para o convívio informal dos deputados no Palácio Tiradentes, são de autoria de um outro destacado artista da 1ª República, Carlos Oswald. Os dezesseis painéis - que ostentam dizeres como O despertar da raça; A energia da raça vence a força bruta [Figura 12a]; A união dos Estados; O trabalho, sementeira do futuro [Figura 12b], etc. - nos apresentam uma espécie de trajetória épica do Brasil, uma visão feérica e vigorosa da nação, que mescla alguns dos motivos caros ao artista com reminiscências de uma idealizada idade de ouro mediterrânea. Eles refletem, assim, algo da obra de artistas do movimento artístico italiano conhecido como Novecento (boa parte da formação de Oswald, cumpre lembrar, se dera na Itália, país cujas tendências estéticas certamente o inspiraram). Simultaneamente, as pinturas da Sala do Café antecipam muito daquela retórica de exaltação dos tipos humanos brasileiros que seria comum no Estado Novo e que se encontra exemplarmente materializada nas decorações que Candido Portinari realizaria para o prédio do antigo Ministério da Educação, no final dos anos 1930 [Figura 13].

22. Em termos formais, os painéis de Oswald ostentam características que se afastam das observáveis em outras decorações acima referidas, como um cromatismo mais intenso e, especialmente, fortes contrastes de claro-escuro. Essas características parecem decorrer, todavia, de um desejo de integrar as obras ao ambiente arquitetônico em tudo análogo ao que nos referimos como o responsável pela própria possibilidade de autonomização, no século XIX, de um modo decorativo: A Sala do Café tem suas paredes e teto revestidos de lambris de madeira escura entalhada, remetendo ao chamado estilo Elizabetano quinhentista, e se Oswald tivesse dado às suas pinturas um aspecto semelhante às dos Chambelland ou de João Timótheo, elas simplesmente se “apagariam” no contexto que as abriga. Deduz-se disso, que, durante a 1ª República, se estabelecera uma intricada relação de complementaridade entre a pintura decorativa e a arte da decoração de interiores, relação esta digna de um estudo exclusivo e que aqui não podemos fazer mais do que indicar.[14] É nossa intenção, todavia, conferir em trabalhos futuros o necessário aprofundamento às pesquisas que nosso tema multiforme e rico de implicações merece e mesmo exige.

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* O presente artigo é uma versão ampliada da comunicação apresentada no I Encontro Nacional de Estudos da Imagem (Londrina, maio de 2007), e publicado em GAWRYSZEWSKI, A. (coord.). A pintura decorativa e a construção da identidade brasileira na 1a República. Encontro nacional de Estudos da Imagem (Anais). Londrina : UEL, 2007, p. 892-896.

[1] “Entre 1820 e 1860, l’Allemagne occupe la première place, avec les immenses décors peints par les Nazaréens revenus de Rome et par ses disciples [...] La France, toutefois, n’était pas en reste” (VAISSE, Pierre. La IIIe République et les Peintres. Paris: Flammarion, 1995, p. 180).

[2] Nessa esfera de trabalhos para os governos Estaduais, foi bastante prolífica a atividade de Antonio Parreiras, provavelmente o artista fluminense que mais recebeu encomendas de decoração fora do Rio de Janeiro: já em 1907, Antonio Parreiras pintara uma grande tela, a Conquista do Amazonas, para o Palácio do Governo do Pará; outros trabalhos incluem Fundação de São Paulo e Instituição da Câmara Municipal de São Paulo, encomendas do prefeito de São Paulo; Frei Miguelinho, encomenda do governador do Rio Grande do Norte; José Peregrino, encomenda do governador da Paraíba; Anchieta, adquirido pelo governador do Espírito Santo; Felipe dos Santos, encomenda do governador de Minas Gerais; Jornada dos mártires, encomenda do prefeito de Juiz de Fora; O primeiro passo para a Independência da Bahia, encomendada pelo governador da Bahia e também pela Intendência da Cidade de Cachoeira; Proclamação da República de Piratini, encomenda do governador do Rio Grande do Sul (a esse respeito ver SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a nação - pintura de história e a Primeira República. Estudos Históricos, Arte e História, n. 30, 2002/2, p. 6 sg.).

[3] A pesquisa nas seções de Pintura e Artes Aplicadas dos catálogos das Exposições Gerais de Belas Artes realizadas entre 1894 e 1930 revela mais de sessenta obras que apresentam no título a designação decorativo; cf. os dados disponibilizados por Carlos R. M. Levy em seu site: http://www.artedata.com/crml/

[4] Essa definição é referida por teóricos como Pierre Vaisse, na obra citada na nota 1, e por Roger Benjamin, segundo o qual: “According to both academic theory and studio parlance in the nineteenth century, decorative painting was primarily that intended for particular architectural locations: murals painted directly onto plaster (in the Italian tradition), or else on canvas glued or impaneled onto the wall (in France)” (BENJAMIN,  Roger. The decorative landscape, fauvism, and the arabesque of observation. Art Bulletin, junho 1993, vol. 75, n. 2, p. 304).

[5] Cf., nesse sentido, a diferenciação entre tableaux e peinture decorative exposta por Pierre Vaisse (VAISSE. Op. cit. , p. 175-176).

[6] O termo modo é entendido aqui no sentido proposto pelo historiador Jan Białostocky, ainda no início dos anos 1960. Procurando compreender a pluralidade estilística encontrada na produção de certos aristas ou momentos históricos, Białostocky retomou então as ideias do pintor francês seiscentista Nicolas Poussin que, em uma carta a um de seus protetores, o Chevalier de Chantelou, fazia referência aos modos da música grega (Dórico, Frígio, Lídio, etc.) e afirmava que as pinturas deveriam ser compostas em modos diferentes, de acordo com o caráter do seu tema e/ou a função a qual se destinavam (cf. Carattere. In: Enciclopedia Universale dell’Arte. Venezia-Roma: Instituto per la collaborazione culturale, 1960, pp.114-119, v.III; e BIAŁOSTOCKY, Jan. Das Modusproblem in den bildenden Kunsten: Zur Vorgeschichte und zum Nachleben des 'Modusbriefes' von Nicolas Poussin. Zeitschrift für Kunstgeschichte, 24 Bd., H. 2, 1961, pp. 128-141, artigo do qual existe uma tradução espanhola: El problema del modo en las artes plásticas. In: Estilo e Iconografia: Contribuicíon a una Ciencia de las Artes. Barcelona: Barral Editores, 1973, p. 13-38).

[7] Cf. MÉRIMÉE, Prosper. De la peinture murale et de son emploi dans l’architecture moderne. In: Revue de l’architecture et des travaux publics, 9, 1851, col. 258-273 e col. 327-337, em particular a parte VIII. Des compositions historiques.

[8] “On veut que la peinture murale, noble et belle, mais circonspecte, compléte avant tout l’architecture qu’elle décore” (Citado em PRICE, A. B. L'esthetique decorative de Puvis de Chavannes. In: FOUCART, Jacques (org). Puvis de Chavannes, 1976, p. 22).

[9] SALGUEIRO, Valéria. Op. cit., p. 2-3.

[10] A partida da monção se encontra descrita no Catálogo da Exposição Geral de 1898 da seguinte maneira: “Os antigos paulistas assim denominaram a caravana que sahia do Porto Feliz, descendo o Tieté, para Cuyabá. As de que se trata eram organizadas simplesmente por destemidos e ousados sertanejos, que, inspirados pelo amor do desconhecido, descoberta de minas e civilisação dos bugres, em toscos batelões cobertos de palha e simples canôas, partiam conscientes de que iam arrostar com sacrificios inauditos toda a sorte de aventuras, constituindo-se por isso uma tradição. O quadro exposto representa a partida desses heróes que, depois da missa na igreja de Nossa Senhora da Mãi dos Homens, acompanhados do padre, capitão-mór e povo, embarcavam-se, no Porto Geral, recebendo a solemne benção da partida”.

[11] Para uma descrição mais detalhada desses painéis, ver BELOCH, I.; FAGUNDES, L. R. (coor.); SARMENTO, C. E. (texto). Palácio Tiradentes: 70 anos de história. Rio de Janeiro: Memória do Brasil, 1996, p. 68sg.

[12] Cumpre lembrar, que a tipologia dos triunfos (ou apoteoses) fora comum na pintura decorativa francesa de finais do século XIX (cf. VAISSE, P. Op. cit., p. 298-299), e já Eliseu Visconti a havia empregado, em uma composição um tanto mais complexa, quase duas décadas antes, em sua pintura do pano-de-boca para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. (cf. imagem)

[13] BELOCH, I.; FAGUNDES, L. R. (coor.); SARMENTO, C. E. (texto). Op. cit., p. 66.

[14] Uma breve consideração a respeito desse tópico pode ser consultada em: VALLE, Arthur. O diálogo entre pintura decorativa e decoração de interiores nas artes da 1a República brasileira. In: XIV Encontro da Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ - Arte e Espaço: Ambientações Híbridas (Anais Eletrônicos). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. Disponível em: http://www.eba.ufrj.br/ppgav/lib/exe/fetch.php?media=anais_encontros:xiv:arthur_valle.pdf Acesso em 1 ago. 2012