“Tudo
é tão simples que cabe / Num cartão postal”: A Juiz de Fora dos Arcuri [1][2]
Marcos Olender
OLENDER, Marcos. “Tudo é tão simples que cabe / Num cartão postal”: A
Juiz de Fora dos Arcuri. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.4, out. 2009.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte
decorativa/ad_olender.htm>.
*
* *
"Ti
sta partendo la cartolina / da te si
ritaglia il fine rettangolino"[3]
1.
Antes
de falarmos do cartão-postal é importante ressaltar que a própria circulação de
correspondências como conhecemos hoje é algo historicamente recente. O sêlo,
objeto fundamental para a consolidação desta circulação, apareceu somente a
partir da aprovação, no parlamento inglês, em 26 de dezembro de 1839, do
projeto apresentado por Rowland Hill[4]. O cartão-postal, por sua vez, apareceria
trinta anos depois. Teve sua origem na carta (ou bilhete) postal, criado no
Império Austro-Hungaro, em 1869, com a finalidade de aliar "o baixo custo
à simplicidade, obtidos com a supressão do envelope e o corte, mais da metade,
da tarifa postal aplicável."[5] E consistia, a princípio [Figura 1]:
2.
[...] numa carta menor, na qual o uso do envelope era
dispensado, ficando um dos lados reservado à mensagem e o outro ao endereço,
apresentando como única ilustração as armas imperiais do então Império
Austro-Húngaro; A idéia rapidamente difundiu-se por toda Europa e demais
continentes, tendo sido aceita ainda na década de 1870 pela União Postal Geral,
mais tarde União Postal Universal, que reuniria vários países do mundo inteiro
com fins de formarem um único território postal para troca recíproca de correspondências
entre seus postos do Correio, estabelecendo regras comuns para a remissão de postais.[6]
3.
O cartão-postal era a padronização da própria mensagem: a sua racionalização. Podemos
inclusive afirmar que era a transformação da própria mensagem em mercadoria.
4.
Elysio
de Oliveira Belchior nos informa que, a princípio, o cartão-postal era
monopólio dos Estados que o criavam. A supressão desse monopólio, a partir da
década de setenta do século XIX, com a conseqüente permissão da sua emissão por
empresas privadas, estimulou o surgimento dos primeiros cartões-postais
ilustrados, "editados durante a guerra franco-alemã, e dos 'Feldpost Korrespondenzkarte'
germânicos"[7]. A estes seguiram vários outros na mesma
década, entre os
quais destacamos os postais
das exposições industriais de Chicago e de Cincinnati, de 1873. "Inicialmente", informa-nos Nélson Schapochnik:
5.
[...] os cartões foram confeccionados usando-se
técnicas artesanais de impressão que remetiam à tradição das estampas e
gravuras, como a ponta-seca, o buril e a litografia, o que os tornava um artigo
de consumo caro. O desenvolvimento dos processos de reprodução de imagens
derivados da fotografia, especialmente a fotolitogravura, a fototipia e a
cromofototipia, possibilitou uma qualidade gráfica superior, o aumento das
tiragens e a diminuição dos custos de produção, contribuindo para a sua popularização.[8]
6.
Esta
inovação, instituída por Dominique Piazza, de Marselha, em 1891, provocou,
pois, um novo e significativo impulso na difusão destes. Impulso este que se
iniciou com a própria vitória da imagem sobre o texto. A princípio, a
ilustração convivia com o texto do remetente na mesma face do cartão, cabendo
aos endereços o seu verso, como é o caso de alguns postais das principais
atrações do século XIX - ou seja, das exposições nacionais e internacionais das
indústrias e das belas artes - como aqueles da World's
Columbian Exposition de Chicago em 1893 [Figura 2].
7.
A
partir do advento da imagem fotográfica, foi-se permitindo nos Correios dos vários
países, em um processo que se inicia na última década do século XIX e se
estende, paulatinamente, até a primeira década do
novo século, que a ilustração (seja ela gravura ou foto) ocupasse toda a frente
do bilhete, expulsando o texto para o verso, espremido ao lado do endereço.[9]
8.
cartão
postal se transformou, principalmente a partir da virada do século XIX ao XX,
em "uma verdadeira instituição", como diz o cronista carioca Luis
Edmundo, ele próprio testemunha da febre que surge em torno deste novo
objeto-mercadoria. Com seu jeito irônico e perspicaz, conta ele um pouco
da história desta nova mercadoria-imagem no Brasil, cuja produção se inicia em
1880[10]
e deixa de ser monopólio estatal em 1899[11]:
9.
[...] O cartão-postal que, pelo começo do século, e
mesmo até bem pouco antes da Grande Guerra, é o delírio que empolga o carioca,
foi aqui introduzido pelo Castro Moura, o que escreveu uma brochura satânica,
em 97 ou em 98, com o título Súplicas e Blasfêmias e que acabou trocando Apolo
por Mercúrio, e enriquecendo, a provar, de tal sorte, que a boa arte, neste
país, ainda é a de comprar por 2 e vender por 4 ... Chega Moura de Paris, com
seus primeiros cartões, em 1901. A novidade
impressiona. Tão bela, porém, é a apresentação desses postais, que muita gente
os compra em séries, só para encaixilhá-los. Um vidraceiro da Rua da Quitanda
cria disposições artísticas para a coleção das fotos em
passe-partout de cores.[12]
10.
Elysio
de Oliveira Belchior, retificando a informação dada por Luis Edmundo, afirma
que os postais com imagens da cidade já circulavam no Rio de Janeiro um pouco
antes de 1901, a partir, pelo menos, de 1898. O fato é que,
ainda segundo Belchior, eles são raros até a inauguração da Avenida Central [Figura 3]. Diz Belchior:
11.
[...] A produção abundante de postais sobre o Rio e a
difusão do hábito de colecioná-los coincidiu com fase marcante da vida da então
Capital Federal: as remodelações intensas empreendidas pelo Prefeito Pereira
Passos, e a obra sanitária de Oswaldo Cruz.[13]
12.
Os
postais divulgavam as imagens com as quais Estados, cidades, empresas e pessoas
queriam construir memórias específicas, geralmente destinadas à sua promoção.
Como diria Olavo Bilac, eles eram "o melhor veículo de propaganda
e reclame de que podem dispor os homens, as empresas, a indústria, o comércio e
as nações."[14]
13.
As
cidades (ou empresas, ou pessoas) transformavam-se em uma série de imagens que as
simbolizavam, pelas quais eram reconhecidas. E esta transformação se dava ao
mesmo tempo e em conseqüencia da transformação dessas mesmas imagens em
mercadoria. Imagens estas que, por sua vez, eram a própria
fetichização daquilo que era retratado. Aqui não se fetichizava a mercadoria,
podemos até dizer que o que acontecia era quase que o seu inverso: se
mercantilizava o fetiche-imagem, ou seja, o próprio fetiche era a mercadoria.
14.
Estas
novas mercadorias-imagens, embora geralmente produzidas com fotografias,
diferentes destas últimas, não sofreram uma evolução na qual o valor de culto
foi perdendo forças, se esvaziando, até sobrar só o valor de exposição.
Benjaminianamente falando, já nasceram, viabilizadas pelo próprio avanço
técnico da produção e da reprodução fotográfica, prioritariamente como valor de
exposição. Como afirma o próprio filósofo alemão, nas primeiras experiências
fotográficas o valor de culto ainda tentou resistir, tendo como "última
trincheira" o rosto humano individualizado, sendo o retrato deste o:
15.
[...] refúgio derradeiro do valor de culto [...] o
culto da saudade, consagrada aos amores ausentes ou defuntos. A aura acena pela
última vez na expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos. É o que lhes dá
sua beleza melancólica e incomparável. Porém, quando o homem se retira da fotografia,
o valor de exposição supera pela primeira vez o valor de culto.[15]
16.
Os
postais apresentavam, como motivos principais, as edificações e as paisagens
urbanas, ou mesmo naturais, no qual o homem, quando aparece, o faz como
referência de escala, reforçando a majestade da cena retratada. Mesmo quando
tinham como tema pessoas, estas eram representadas nos postais geralmente de
duas formas: de um lado como "tipos", valorizando o seu exotismo ou
erotismo mas, de qualquer modo, desprovidos de individualidade, como o
vassoureiro fotografado no início do século XX por Marc Ferrez
no Rio de Janeiro que era,
ele próprio, segundo Carlos Drummond de Andrade, "um vassoural
alegórico"[16] [Figura 4]; no extremo oposto situava-se a
exposição de pessoas "notáveis", enfocadas mais como personagens públicos
do que como indíviduos revelados em suas intimidades e idiossincracias, como no
caso dos membros da comissão construtora da Avenida Central, também no Rio de
Janeiro, cujos retratos aparecem organizados no postal, como que em um
quadro-organograma de uma empresa, encimados pelo engenheiro Dr. Paulo de
Frontin.
17.
Para
entendermos melhor sobre esta desindividualização, sobre a própria "perda da aura" advinda com a
fotografia e radicalizada pelo advento do cartão-postal, faz-se necessário
prestarmos atenção em outro texto de Benjamin:
18.
[...] Em suma, o que é a aura? É uma figura singular,
composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante, por mais próxima que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de
verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua
sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação,
significa respirar a aura dessa montanha, desse galho. Mas fazer as coisas se
aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do
homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das coisas, em cada
situação, através da sua reprodução. Cada dia fica mais irresistível a
necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na imagem, ou
melhor, na sua reprodução.[17]
19.
Os
postais se compram, se contemplam, aproximam-nos do resto do mundo (de um mundo
idealizado é verdade), de um modo mais rápido e bem mais barato, auxiliando na
construção dos nossos sonhos. E isto até hoje. É como ainda diz, de uma forma
um tanto quanto crítica, aquela música de um grupo de rock brasileiro:
20.
Conheço quase o mundo inteiro por cartão-postal
21.
Eu sei de quase tudo um pouco e quase tudo mal
22.
Eu tenho pressa
23.
E tanta coisa me interessa
24.
Mas nada tanto assim[18]
25.
A
posse do postal nos faz sentir senhores de mundos e de coisas, auxiliando
a perverter definitivamente nossa relação com o cotidiano. Diz Benjamin:
26.
[...] Cada um de nós pode observar que uma imagem, uma
escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na
fotografia que na realidade. A tentação é grande de atribuir a responsabilidade
por esse fenômeno à decadência do gosto artístico ou ao fracasso dos nossos
contemporâneos. Porém somos forçados a reconhecer que a concepção das grandes
obras se modificou simultaneamente com o aperfeiçoamento das técnicas de
reprodução. Não podemos agora vê-las como criações individuais; elas se
transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos diminuí-las
para que nos apoderemos delas. Em última instância, os métodos de reprodução
mecânica constituem uma técnica de miniaturização e ajudam o homem a assegurar
sobre as obras um grau de domínio sem o qual elas não mais poderiam ser utilizadas.[19]
27.
Este
assenhorar-se de uma representação do mundo, representação esta feita
exteriormente a nós, torna-se um hábito, torna-se, mesmo, um vício. Os
postais se colecionam. Segundo Verônica Pimenta Velloso:
28.
A moda de colecionar postais depois de utilizá-los como
correspondência tornou-se uma prática comum entre os membros das elites e dos
setores médios urbanos, contagiando praticamente todas as cidades do país. Os
almanaques e revistas ilustradas, que já dominavam as técnicas de reprodução
fotomecânica de imagens, veiculavam fotografias e postais nas suas páginas,
além de propagandeá-los através de anúncios.[20]
29.
Mas
não só se colecionava o postal que se recebia de alguém, como já afirmava Luis Edmundo,
compravam-se os postais para colecioná-los, mandavam-se vir, por amigos e
depois por empresas, séries de postais de outros lugares para enriquecer essas
coleções. Lembra Carlos Drummond de Andrade que no primeiro quarto do século
XX, trocavam-se "febrilmente" os postais "entre parentes e
amigos."[21] Como dizia o próprio Luis Edmundo, em
1938: "o delírio do bilhete postal ilustrado só começa a inquietar-nos em
1904. Moda, a princípio, passa depois a obsessão."[22]
Obsessão dos colecionadores e daqueles que cobiçavam tais coleções, como o
menino Pedro Nava em relação à coleção da sua avó, Inhá Luísa, bem guardada por
ela no seu quarto, na mansão onde moravam, na Rua Direita (hoje Av. Barão do Rio
Branco) no. 179, em Juiz de Fora. Acompanhemos ele rapidamente nessa aventura e, assim, entenderemos um pouco
mais da própria importância que assumiam os postais, na época:
30.
Pois assim mesmo velha, feia, indiferente e distante a
Inhá Luísa tinha uma autoridade imanente, uma imposição natural e uma majestade
espontânea que me fascinavam. Lembro-me de segui-la sempre dentro de casa, na
chácara, sem ser chamado, sem que ela se dignasse olhar o acompanhante. Eu ia
pelo faro, como os cachorros. E foi nessas andanças, atrás de suas saias, que
pude devassar sua existência impenetrável e, pelas imagens que guardei,
adivinhar retrospectivamente um pouco do seu pensamento. [...] Vejo-a , em
cima, no quarto, abrindo as gavetas da cômoda e do toucador, onde ficava horas,
mexendo nos guardados. Pegava da velha caixa de música [...] Enfiava e
tirava seus anéis, cingia seus colares, apresilhava suas pulseiras. [...]
Tudo aquilo lhe lembrava o primeiro marido [o velho Major Halfeld de que
falaremos mais a frente] e a era das grandezas. Seu tempo venturoso, também,
como está escrito no caderno de notas, ao pé da notícia. Ali colada, da
inauguração do busto do velho Halfeld: "Saudosa lembrança de quem me fez
feliz!" [...] Repassava sua coleção de postais e eu ficava
atento, coração batendo diante de seu acetinado, do seu brilho. Planejava
furtá-los, não achava ocasião propícia, o momento favorável para a efração da
gaveta...[23]
31.
Mas a
aquisição e a coleção de postais não se resumia à sua colocação ordenada, em
séries das mais diversas, em álbuns e gavetas. A crescente procura por objetos
que o emoldurem e o conservem, testemunhada por Luis Edmundo, vem reforçar,
principalmente no caso da arquitetura e da cidade, um outro aspecto correlato
presente neste pequeno pedaço de papel: o de que a perversão da nossa relação
com o cotidiano só se torna possível a partir de outra perversão: a da
subordinação da recepção tátil pela recepção ótica no nosso trato com as
arquiteturas e as cidades.
32.
Benjamin,
ele próprio um confesso colecionador de postais, na primeira versão do seu
conhecido texto "A obra de arte na época da sua reprodutibilidade
técnica", de 1933, identifica dois tipos de recepção do ser humano da obra
de arte: a recepção ótica, tipo comum nas artes visuais, onde a abordagem é
individualizada e caracterizada pela contemplação, pela atitude do
recolhimento; e a recepção tátil, onde a abordagem é coletiva e feita pela
distração. Este segundo modelo é o dominante nas ditas artes de massa, que tem
na arquitetura, segundo Benjamin, o seu primeiro representante. Diz ele:
33.
A distração e o recolhimento representam um contraste que
pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro
dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao
terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte
mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo. O
exemplo mais evidente é a arquitetura. Desde o início, a arquitetura foi o
protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o
critério da dispersão. [...]
34.
Os edifícios comportam uma dupla forma de recepção: pelo
uso e pela percepção. Em outras palavras: por meios táteis e óticos. Não
podemos compreender a especificidade dessa recepção se a imaginarmos segundo o
môdelo do recolhimento, atitude habitual do viajante diante de edifícios
célebres. Pois não existe nada na recepção tátil que corresponda ao que a
contemplação representa na recepção ótica. A recepção tátil se efetua menos
pela atenção que pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito
determina em grande medida a própria recepção ótica.[24]
35.
E é
justamente esta forma de se relacionar com a arquitetura que a fotografia,
popularizada e difundida pelo postal, vem perverter. O postal encurta as distâncias, de forma mais radical que as máquinas a
vapor, e, mais do que isso, ajuda a construir uma memória dos edifícios e lugares. Memória esta construída pela
contemplação de coisas muitas vezes muito distantes ou mesmo inexistentes, como
os postais de maquetes dos projetos de Albert Speer para Berlim, nunca
construídos, distribuidos massivamente pelos nazistas. Edificações estas que
várias pessoas acreditavam terem sido efetivamente erguidas e destruídas
"nas fases finais da guerra", como relata Andreas Huyssen.[25]
Ou não é verdade que ainda hoje, ao visitarmos uma cidade, somos propensos a
conhecer aquilo que dela é difundido por seus cartões postais, transformando
inclusive este objeto de papel em sinônimo até de excelência dos novos lugares
visitados ("era tão lindo, parecia um postal!") ?
36.
Esta
construção da memória, por sua vez, só é possível porque, ao mesmo tempo que a
fotografia realça a recepção ótica das arquiteturas e das cidades, ela o faz de
forma coletiva, pois a fotografia, como depois o cinema, é, também, uma arte de
massas que só sobrevive intrinsecamente com a sua dispersão nestas mesmas
massas. E, como já vimos, é característica destas artes a sua apreensão pela
distração. Como diz Benjamin: "o distraído também pode habituar-se. Mais:
realizar certas tarefas, quando estamos distraídos, prova que realizá-las se tornou
para nós um hábito."[26]
37.
Paradoxalmente, pois, as fotografias das
edificações, difusas pelos cartões-postais, criam novos hábitos de usufruto das
próprias edificações que retratam. Primeiramente, estas não precisam mais ser "descobertas",
"desveladas" em nosso percurso. São conhecidas a priori, em ângulos
que procuraremos quando a visitarmos, adequando o objeto à sua imagem.
38.
A recepção ótica fornecida pela fotografia
privilegia as superfícies das edificações, as suas cascas externas,
bidimensionalizando-as.
Superfície aqui entendida, pois, como planiforme. E as fachadas e paisagens
urbanas serão conhecidas, serão percebidas, serão popularizadas pelas suas
imagens bidimensionais publicadas em postais.
39.
De
início, os postais chegam a esboçar alguma resistência, tentam uma tímida
reação. Chegam a tentar sair daquilo que, na falta de uma melhor expressão,
denominamos de planitude (ou superfície
rigorosamente plana), como informa Luís Edmundo: cartões de "um aspecto escultórico,
feitos em crostas, em espantosos relevos; chafarizes que deitam tiras de papel
pelas bicas, fingindo água, corações de veludo sangrando rosas vermelhas,
pintadas a óleo ou a aquarela ..."[27] Mas logo cedo resignam-se, por economia,
praticidade e funcionalidade, a assumir as suas duas dimensões. E é assim que
ajudam a educar a visão das pessoas: janelas abertas para um mundo
bidimensional.
40.
Estudando
a técnica literária forjada no universo das inovações tecnológicas da virada do
século XIX para o XX, Flora Süssekind, em livro de 1987, já havia percebido
essa presença significativa da bidimensionalidade no período. Diz ela;
41.
[...] Fotos, tabuletas, métodos fotoquímicos de
impressão, fitas de cinema, cilindros e chapas gravadas, folhetos de
propaganda, revistas ilustradas: outras cartas, outro jogo. Porque a partir de
fins do século passado outra paisagem se insinua na anterior. E, com ela,
outras definições de realidade, imagem, representação. Uma paisagem que
se deseja moderna começa a traçar os contornos de um mundo-imagem sobre duas
dimensões, como um cartaz. E, como este, baseado num jogo entre linha, contorno
e plano cujo cenário privilegiado
é a superfície. E superfície de reprodução e multiplicação potencialmente imprevisíveis,
ilimitadas.
42.
[...] Paisagem de imagens técnicas com a qual se
começa a conviver, com mais intensidade, no Brasil, a partir dos anos 90 do
século XIX e das primeiras décadas do século XX. Porque o mesmo desejo de
modernização, que impulsiona reformas urbanas e sanitárias, dirige-se para o
aparelhamento técnico da sociedade brasileira. E para essa paisagem-segunda,
povoada por cartazes, fotos, fitas e charges.
43.
[...] E é essa tentativa de tornar-se modernos que se
assiste então no país. Tentativa que passa, pois, pela constituição de uma
paisagem técnica. Com figuras em duas dimensões, fachadas e aparelhos.[28]
44.
As
superfícies das fachadas transpostas para a superfície plana do papel vêm se
somar, subrepticiamente e a nível da representação, ao movimento iniciado havia
mais de um século, de aplainamento das mesmas superfícies, da eliminação
paulatina de relevos que dificultem a circulação sobre ela, circulação que pode
ser motora ou visual, reforçando este movimento decisivamente. Tal movimento
faz parte do processo de autonomização completa entre a estrutura e o ornamento
e tem no princípio do revestimento (elaborado por Semper e desenvolvido
por Loos) sua mais elaborada articulação intelectual.
45.
Em
Flora Süssekind, esta "superficialidade" aparecerá na sua forma mais
direta, na transformação das fachadas em congêneres dos
"homens-sanduíches" que povoam as ruas das cidades na virada do
século XIX para o XX, junto com os cartazes, tabuletas, panfletos de propaganda
e os panos cheios de anúncio dos cinemas. Tais personagens participam
ativamente da tomada dos espaços urbanos pelos reclames, que estão presentes
inclusive, como já dito:
46.
[...] na obsessão pelas fachadas que passa a dominar
as construções, como se além de adequado à função a que se destina de fato cada
prédio devesse funcionar como um anúncio da própria "modernidade" e,
por tabela, da modernização a que se submetiam as grandes cidades brasileiras
no período. Fachada de outro gênero, também a preocupação com a elegância dos
trajes e com a exibição da própria figura se associa a essa disseminação da
publicidade.
47.
A palavra de ordem parece ser exibir, tornar público.
Desde a cidade em que se vive - objeto de exibição em álbuns de vistas, cartões
postais, panoramas, revistas de ano - à própria figura, tabuleta, ela também,
onde se imprimiam figurinos os mais diversos.[29]
48.
A
cidade se mostra para seus habitantes e visitantes, que se transformam em
espectadores muitas vezes de construções bidimensionais da paisagem urbana.
49.
Sobre
a "proliferação dos cartões postais" ressalta, por sua vez,
Schapochnik que:
50.
[...] não somente estava associada à difusão de novas
técnicas e reprodução, mas, sobretudo, integrava-se às conquistas advindas da
revolução tecnocientífica, que propiciaram uma nova magnitude e rapidez aos
meios de transporte e de comunicação. A proliferação das ferrovias e das linhas
de vapor transoceânicas ampliou as condições de deslocamento de um fabuloso
contingente demográfico. Essas viagens não se restringiram aos negócios,
estudos ou lazer. Diante das precárias condições experimentadas nos seus
diferentes locais de nascimento e das possibilidades virtuais de
"enriquecimento" no Novo Mundo, muitos trabalhadores europeus acompanhados
de suas famílias partiram em busca de novas oportunidades. É nesse fluxo e
contrafluxo que os postais vão se firmar, tanto pelas suas qualidades
intrínsecas ligadas à comunicação verbal quanto pelo consumo de souvenirs
associado à difusão do turismo popular.[30]
51.
"E
viver Juiz de Fora arfando ao sol, metalizada!"[31]
52.
Ao
discorrer sobre os postais, Schapochnik fala, ao mesmo tempo, de uma história
de imigração que é, também, a história da família Arcuri. Família instalada em
Juiz de Fora a partir da vinda de Pantaleone Arcuri para o Brasil em 1887, no
porto do Rio de Janeiro e, logo depois, da sua chegada, entre 1887 e 1889, na
citada cidade mineira.
53.
Esta
era, inclusive, a segunda vez que Pantaleone aportava
no Brasil, provindo da sua cidade natal, Santa Agata
d'Esaro, na provincia de Cosenza, na região da Calábria. A primeira havia sido ainda na época do Império,
em 1876, chegando ao Rio de Janeiro com seu pai, o viúvo Angelo Raffaele
Arcuri, vindos, também, do porto de Nápoles para "fare l'America".
Pantaleone tinha então quase nove anos.
54.
A
chegada de Pantaleone com seu pai no Império do Brasil, ocorrera na mesma época
em que acontecia o primeiro movimento significativo de imigração da Itália, recém
unificada, para o nosso país. Se na década de 50 haviam chegado só 24
imigrantes, este número iria aumentando, rapidamente, nos anos seguintes: na
primeira década pós-unificação (1861) para 4916, na década de 70 chegando a
47100. No caso dos calabreses, como os Arcuri, segundo Núncia Santoro de
Constantino, as causas da vinda teriam sido "fundamentalmente, duas: - o
forte incremento demográfico que quase dobrou a população entre 1810 e 1860; -
a crise econômica determinada pela ausência de soluções aos problemas
fundiários" colocando frente a frente os "grandes proprietários de
terra" e "a massa constituída por agricultores, colonos, artesãos e
mesmo pequenos proprietários."[32]
55.
Este
número ainda era relativamente pequeno, frente aos que viriam nas duas últimas
décadas do século XIX. E, entre eles, ainda era relativamente tímida a presença
de mestres-de-obras e artesãos envolvidos com as diversas artes da construção
civil, principalmente naquele que viria a ser o maior destino dos italianos a
partir da década de oitenta do século XIX, a cidade de São Paulo. Anita Salmoni
e Emma Debenedetti encontrariam "algum italiano" nas solicitações de
construção de edifícios de uso privado, em 1875, no Arquivo Histórico da Prefeitura
Municipal de São Paulo, italiano esse perdido entre inúmeros construtores de
origem alemã.[33]
56.
Angelo
Raffaele vinha para trabalhar na capital do Império onde, segundo Franco Cenni,
a situação era diferente desde 1843, onde já existia na cidade "uma
pequena colônia italiana" onde "eram relativamente numerosos os
pedreiros e os carpinteiros."[34] Rio que desde a década de 70 viu estes
artesãos italianos da construção civil consolidarem a sua hegemonia a partir
das iniciativas dos irmãos Farani, napolitanos, joalheiros da Casa Imperial do
Brasil, que "empregariam grande parte de sua fortuna em grandiosos
empreendimentos imobiliários e na indústria da construção civil,"[35]
inclusive sendo responsáveis pela abertura de diversas ruas no Catumbi, em
Santa Teresa e, principalmente, no bairro de Botafogo
(oito ruas só em 1872).
57.
Rio
de Janeiro que testemunhou a chegada, na metade desta mesma década de 1870, dos
irmãos calabreses (da cidade de Fuscaldo) Antônio e Giuseppe Jannuzzi, vindos
de uma breve estadia em Montevidéu, onde passaram três anos (de 1872 à 1874)
polindo mármores. os Foi na mesma década de setenta que aportaram no Rio de
Janeiro, vindos de Montevidéu, Na, então, capital do Império brasileiro, os
irmãos Januzzi passaram a exercer a função de mestre-de-obras (mesma do seu
pai) e, logo depois, de empreiteiros[36] e foram, provavelmente, os primeiros
empregadores de Angelo Raffaele.[37] "Um de seus primeiros trabalhos foi
a construção do plano inclinado para o funicular de Santa Teresa,"[38]
informa-nos Cenni.
58.
Porém,
esta primeira estada de Pantaleone em solo brasileiro é extremamente curta. O
trabalho pesado e a falta de tempo para se dedicar ao único filho fazem com que
Angelo Raffaele leve-o novamente para a Itália, deixando-o com parentes em sua
cidade natal, mais especificamente com uma tia, casada com o tio daquela que
viria a ser a sua esposa: Christina Spinelli.
59.
Pelos
próximos onze anos, Pantaleone voltará, pois, a
residir em Santa Ágata d'Esaro, aprendendo o ofício
do seu pai. Em 1887, como já vimos, então com vinte anos, embarca novamente no
porto de Nápoles e mais uma vez com destino ao Rio de Janeiro.
60.
Demarcado,
aproximadamente, o período de sua chegada à Juiz de Fora, cabe-nos conjecturar
sobre os seus motivos. Entendemos que a vinda de Pantaleone para a
"capital da Zona da Mata" em uma trajetória que se inicia no Rio de Janeiro
e segue o Vale do Rio Paraíba e dos seus afluentes, possivelmente se deve a
dois fatores. Em primeiro lugar, a forte presença de imigrantes italianos no
local e, entre eles, familiares e conhecidos da sua cidade natal e região.
Conjugado a isto, o recente, mas forte, desenvolvimento industrial e urbano e o
conseqüente crescimento das oportunidades no campo da construção civil que já
se ensaiava na cidade, cujo poder econômico provinha, principalmente, do fato
de se constituir, à época, como principal porto de escoamento da produção
cafeeira da Zona da Mata mineira.
61.
Pantaleone Arcuri chega à
cidade, no fim da década de 80, aproveitando-se do abrigo e da companhia de
conhecidos e parentes que já haviam se estabelecido ali, bem como da crescente
oferta de serviços e comércios, principalmente para um operário da indústria
têxtil ou para um mestre-de-obras como ele. A recente industrialização pela
qual passava Juiz de Fora provocava uma grande demanda por obras públicas e
privadas. A esta industrialização seguia um crescimento demográfico e, consigo, algumas das mazelas comuns a este nas cidades do
período: as epidemias. Epidemias como as de sarampo e de varíola que atacaram a
Hospedaria dos imigrantes, em 1889, alastrando o medo de contágio por toda a
cidade.
62.
A
conjugação de todos estes fatores positivos e negativos era propícia, pois, a
uma transformação urbana radical. Como afirma Maraliz
de Castro Vieira Christo:
63.
A vinda dos imigrantes italianos coincide com um
momento de forte transformação no espaço urbano da cidade. Correspondeu a um
período caracterizado por importantes obras públicas: saneamento e redes de
abastecimento d'água, drenagem de pântanos, pavimentação de várias ruas,
saneamento do Morro da Gratidão, construção de cemitérios, pontes e pontilhões ... Incorporava-se, principalmente diante das
constantes epidemias, todo um discurso higienista, presente nas reformas de Haussmann, em Paris, de Pereira Passos, no Rio de Janeiro,
e nos projetos de Aarão Reis, para a construção de Belo Horizonte.[39]
64.
A
industrialização ajudava a criar um novo cenário urbano. Passavam a ser comuns, na paisagem urbana do próprio centro, as
edificações industriais que lhe davam um ar peculiar, como lembra a escritora
Raquel Jardim:
65.
Juiz de Fora tinha casas e fábricas de tijolo
vermelho. Era chamada a Manchester brasileira. Anos depois fui parar na
Manchester verdadeira e reconheci ali as casas e as fábricas tão familiares à
minha juventude.[40]
66.
As
instalações de médias e grandes indústrias nas últimas décadas do século XIX,
junto com a sua grande demanda energética (o que propiciou a chegada da
eletricidade, em 1888), auxiliaram decisivamente neste grande desenvolvimento
urbano do centro da cidade. O perfil industrial deste centro era popularizado,
também, por postais como aquele feito por Francisco Soucasaux,[41]
em 1903, no qual se retrata a Mecânica Mineira, fundada pelo engenheiro Belisário Penna em 1889. A citada empresa era considerada,
no final daquele século, como o "mais importante estabelecimento mecânico
de Minas Gerais."[42] onde se produziam diversas máquinas e
veículos de transporte, possuindo serraria, carpintaria e uma fundição de ferro
e bronze. Localizava-se na bifurcação das atuais Avenidas Getúlio Vargas
(prolongamento da Estrada União Indústria que cruzava o centro) e Barão do Rio
Branco (antiga Estrada do Paraibuna e, depois, R. Direita). O curioso era o
fato da Mecânica, no postal, não aparecer individualizada, mas tipificada como
"Estabelecimento Industrial em Juiz de Fora - Brazil"
[Figura 5].
67.
Esta Juiz de Fora que se metalizava, que multiplicava
suas chaminés "cobrindo as montanhas acolchoadas" como versejava
Austen Amaro, começava a apresentar em sua paisagem urbana, como conseqüência deste crescimento econômico, novas e
imponentes construções, que lhe dariam a atmosfera luxuosa a partir da qual
começaria a ser conhecida como "Princesa de Minas", "Rio de
Janeiro em ponto pequeno" e, mesmo, "Europa dos Pobres". O
centro da cidade, como afirma Sônia Regina Miranda, caracterizava-se por
espaços diferenciados. Em seu eixo, a avenida Rio
Branco, antiga rua Direita, com seus palacetes e chalets
e, as ruas transversais a esta, em sentido à antiga rua 15 de Novembro (atual
avenida Getúlio Vargas) "marcadas pelo predomínio de estabelecimentos
comerciais e industriais."[43] como a "nossa Ouvidor, que é a
nossa rua Halfeld !!,"[44]
como exclamava o jornalista e escritor Antônio Bernardes Fraga, em texto de
1918. Ambas as ruas também foram imortalizadas pelas lentes de Socausaux.
68.
Pantaleone se associou ao seu concunhado, Pedro Timponi, em 1895, para formar a firma Pantaleone
Arcuri & Timponi.
Vários italianos trabalharam para a firma do construtor calabrês. Uma boa parte
destes operários era contratada na própria Itália e vinha direto para Juiz de
Fora circulando por um esquema alternativo ao da simples imigração. Algo
parecido com o que deve ter acontecido com o próprio pai de Pantaleone
quando da sua vinda para o Brasil, em 1876.
69.
Neste
mesmo ano, a firma inicia a construção do seu complexo industrial ao qual
estava integrado um conjunto habitacional para os operários da mesma. Este
conjunto, segundo informa Luiz Antônio Passaglia,[45]
correspondia ao pórtico esquerdo e menor do citado complexo industrial
construído por Arcuri na rua Espírito Santo. O pórtico maior servia de entrada
às lojas e oficinas da firma. Este
complexo industrial e habitacional era um dos orgulhos da paisagem urbana local
sendo, portanto, também eternizado em postal [Figura 6]. Hoje em dia só resta, justamente, a parte
habitacional e , mesmo assim, significativamente alterada, com o acréscimo de
mais um pavimento.
70.
A
localização deste complexo era estratégica, vizinho à grande fábrica têxtil de
Bernardo Mascarenhas e à sede da Companhia Mineira de Eletricidade de onde se
distribuía a energia elétrica provinda da usina de Marmelos para as indústrias
localizadas na região, entre elas as oficinas de Pantaleone.
71.
Era a
área, também, onde localizava-se a Alfândega de Minas Gerais. Instalada em
1893, dois anos antes da criação da firma de Arcuri & Timponi, a Alfândega
funcionou na cidade até 1930, quando foi transferida para Belo Horizonte. Nela
centralizavam-se as importações e exportações para todo o Estado e a sua
presença traduzia melhor do que ninguém a importância da cidade enquanto pólo
econômico e estratégico da região e do Estado.[46]
72.
local
onde se implantou a empresa de Pantaleone era, na época, o limite do centro da
cidade. Como afirma Patrícia Falco Genovez:
73.
A área na qual encontra-se inserida a rua Espírito Santo
representava, na verdade, uma importante posição estratégica: situava-se ainda
na área urbana de maior concentração comercial, próxima às principais fábricas
do município, com um grande movimento de mão-de-obra; localizava-se bem perto
do transporte ferroviário; era uma área de baixo custo por encontrar-se numa
região sujeita à inundações do Paraibuna; e, estava mais próxima da usina
geradora de energia. Este núcleo histórico, portanto, é o emblema da primeira
fase da industrialização vivenciada pela nossa cidade.[47]
74.
A privilegiada
localização urbana, conjugada com o baixo custo da área, certamente norteou a
opção de Pantaleone pr iniciar, ali, a construção do seu complexo.[48]
75.
A
firma de Pantaleone apresentava uma rede de serviços bem diversificada. Dois
anos antes, no "Almanach de Juiz de Fora" de 1897, constavam um
Armazém de Viveres (molhados)[49] e uma firma de construção,[50]
na Rua Quinze de Novembro, esquina com R. Santa Rita, além de um Depósito de
Madeiras e Materiais para Construções[51] e uma oficina de carpintaria,[52]
na Rua Espírito Santo. No ano seguinte, toda a firma passou a funcionar na Rua
Espírito Santo.[53]
76.
Em
1900, Pedro Timponi saía da sociedade que tornava-se Pantaleone Arcuri &
Spinelli. Esta nova fase começava com a realização de uma das empreitadas mais
conhecidas da firma: a da construção do Jardim (e hoje Parque) Halfeld.
77.
Inicialmente
um largo onde aconteciam os circos e touradas que vinham à cidade, transformado
em jardim municipal desde a década de oitenta do século XIX, a área existente
em frente à Câmara Municipal encontrava-se, segundo relatos de fim daquele
século, em estado de completo abandono até que o Coronel Francisco Mariano
Halfeld, filho do engenheiro alemão que havia projetado o traçado das ruas do
centro da cidade resolveu, por suas próprias custas, reformular a mesma.
78.
A
firma de Pantaleone Arcuri & Spinelli ganhou a concorrência tanto para a
elaboração do projeto, que seria feito pelo seu técnico Salvatore Notarroberto,
quanto para a realização das obras. Constituiriam-se estas, segundo o contrato
estabelecido, de:
79.
[...] levantamento de canteiros, abertura de ruas,
fechamento de outras, um pavilhão central, uma casa para o guarda do Jardim,
reprezas, lagoas, pontes e casas rusticas, reforma do gradil e demais
embellezamentos.[54]
80.
Jardim
[Figura 7] assumiu o nome do seu criador e transformou-se
na grande atração da cidade, cantado em verso e prosa por escritores como
Austen Amaro que ressaltava o seu "cosmopolitismo vegetal" e os seus
"recantos miniaturando maquines de cimento"[55]
e Pedro Nava que afirmava, em suas memórias, ser o Parque "a única coisa
realmente bonita de Juiz de Fora"[56] e o descrevia assim:
81.
[...] O Parque Halfeld das minhas gazetas, cheio de
irerês e do grito das araras cujas cores lembravam a das flores; cheio da
sombra verde das magnólias e das sapucaias, do sussurro das casuarinas e dos
bambus, do murmúrio das águas da fonte central e a das que caíam, como cortina
de contas de vidro, das pedras rústicas encimadas pela Cabana. [...] O
jardim tinha a mesma graça tropical da Quinta da Boa Vista, do Passeio Público
e do Campo de Santana.[57]
82.
Desde
a implantação do primeiro projeto, do arquiteto alemão Miguel Antônio Lallemant
de 1880, o Jardim era cercado por gradis e adotava o "estilo inglês".
Inseria-se assim, como pode-se perceber nas próprias comparações feitas por
Nava, em um movimento característico das últimas décadas do século XIX e início
do século XX, de instalações de jardins municipais como o projeto do Campo de
Santana, ou as reformas no Passeio Público (1864) e na Quinta da Boa Vista
(1869), no Rio de Janeiro, todas as três realizadas pelo paisagista francês
Auguste François Marie Glaziou, coordenador da Diretoria de Parques e Jardins
da Casa Imperial. Estes jardins municipais, segundo Rubens de Andrade,
"estavam inscritos a uma ideologia política que evocava, entre outras
coisas, os particularismos da doutrina positivista e buscavam incessantemente
consubstanciar naquela paisagem os ideais voltados aos discursos da
salubridade, do higienismo e do embelezamento urbano."[58]
83.
Com a inauguração do Jardim Cel. Francisco Mariano
Halfeld, em 05 de outubro de 1902, Pantaleone, imigrante italiano que havia
chegado à Juiz de Fora cerca de uma década e meia antes como simples pedreiro,
consolidava-se como personagem fundamental da construção física e simbólica da
cidade, entregando a ela aquele que viria a ser, literalmente, seu mais famoso
"cartão-postal".
84.
Pantaleone
enviou seu primogênito, Raphael, para Nápoles, no início de 1908. Lá, ele
estudou arquitetura no ateliê de Giovanni de Fazio.[59]
Em fins de 1911, Raphael retornava ao Brasil, e à Juiz de Fora, e começava a
trabalhar como principal projetista da firma do seu pai. Alguns anos depois,
projetava aquela que iria ser a sua primeira grande obra pública, a nova sede
da administração municipal, cuja construção foi concluída em fins de 1917. Ela
viria a substituir a antiga sede (que erguia-se no mesmo local, em meados do
século XIX, com um pavimento e de feições neoclássicas), e com sua
"monumentalidade" eclética, mais adequada à dimensão simbólica da sua
função. A nova edificação, coroada por uma cúpula, se integraria com a
"natureza planejada" do Parque Halfeld ao seu lado, ajudando a
construir, significativamente, a nova imagem de Juiz de Fora a ser eternizada
nos cartões postais [Figura 8].
85.
Raphael
teve uma carreira povoada de bens sucedidos projetos e construções, que
atendiam as mais diversas demandas e funções, de hotéis e residências a sedes
de bancos, firmas e associações, até o início de 1940, quando parou de
projetar.
86.
Em
1923, elaborou o projeto da nova sede da, então, Companhia Industrial e
Constructora Pantaleone Arcuri, efetivamente inaugurada em 21 de outubro de 1926. O edifício
abrigava, no seu andar térreo e no pavimento intermediário, "a parte commercial e os escriptorios da
firma". O pavimento superior foi dividido em duas partes: uma, ocupada por Pantaleone e sua família, e outra, por um hotel, segundo afirma o Sr.
Arthur Arcuri, filho caçula de Pantaleone,
contrariando a notícia que se vinculou, na época, no citado jornal de que
seriam "departamentos [sic] que serão alugados."[60]
87.
A
imponente edificação tornou-se, literalmente, o cartão-postal da Companhia [Figura 9], divulgando e fortalecendo, ainda mais, a sua imagem na região.
[1] LEE, Rita e
COELHO, Paulo. Cartão Postal. Disponível em: <http://rita-lee.letras.terra.com.br/letras/79671/>. Acesso: 1 out. 2009.
[2] Comunicação apresentada
no II Seminário Arte & Cidade. Salvador, 2008.
[3] BATTISTI,
Lucio. Dalle
prime batute. Disponível em: <http://battisti-lucio.letras.terra.com.br/letras/579993/>. Acesso: 1 out. 2009.
[4] VAILLÉ, Eugène. História breve do selo postal. Lisboa: Verbo, 1962, pp. 39 a
49.
[5] BELCHIOR, Elisyo de Oliveira. Introdução. In: BERGER, Paulo.O
Rio de ontem no Cartão Postal 1900-1930. Rio de Janeiro: RIOARTE, 1986, p.
7.
[6] VELLOSO, Verônica
Pimenta. Cartões-postais: imagens do progresso (1900-10). In: História,
ciências, saúde - Manguinhos v.
7, n. 3, Rio de Janeiro: , nov. 2000/ fev. 2001, s. p.
[7] Idem, p. 8.
[8] SCHAPOCHNIK, Nélson.
Cartões-Postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In: SEVCENKO,
Nicolau. História da Vida Privada no Brasil, vol. 3. República: da Belle
Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, 6 a. ed., 2004, p. 429
[9] BELCHIOR, Elysio de Oliveira, op. cit., p. 9.
[10] Pelo decreto n°.
7.695, de 28 de abril de 1880, baixado pelo Ministro da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas, Manuel Buarque de Macedo. Ver BELCHIOR, Elysio de Oliveira, op.
cit., p. 7.
[11] VELLOSO, Verônica
Pimenta, op. cit., [s. p.].
[12] EDMUNDO, Luís. O
Rio de Janeiro do Meu Tempo. Brasília:
Senado Federal, 2003, p. 442. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000059.pdf>. Acesso: 1 out. 2009.
[13] BELCHIOR, Elysio de Oliveira. Paisagens em vários tempos. In: TABET,
Sérgio Roberto e PUMAR, Sônia. O Rio de Janeiro em antigos cartões postais. Rio
de Janeiro: Edição do Autor, 1985, [s.p.].
[14] Apud VELLOSO,
Verônica Pimenta, op. cit., [s. p.].
[15] BENJAMIN, Walter. A
obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In; BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 7 ª
ed., 1994, p. 174, grifos nossos.
[16] ANDRADE, Carlos
Drummond. Brasil num retrato antigo. Crônica publicada no jornal Estado de
Minas - 29 abr. 1982.
[17] BENJAMIN, Walter.
Pequena história da fotografia. In: op. cit., p. 101.
[18] Nada
tanto assim. Kid Abelha. Disponível em: <http://www.cifras.com.br>. Acesso: 1 out. 2009.
[19] BENJAMIN, Walter, op.
cit., p. 104.
[20] VELLOSO, Verônica
Pimenta, op. cit., [s. p.].
[21] ANDRADE, Carlos
Drummond, op. cit., [s. p.].
[22] EDMUNDO, Luís, op.
cit., p. 442.
[23] NAVA, Pedro. Balão
cativo. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2000, pp. 23 e 24, grifos nossos.
[24] BENJAMIN, Walter.
A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: op. cit., p.
193.
[25] "Como tantas
vezes, em questões de política midiática, os nazistas tiveram a intuição
correta ao distribuírem em massa imagens das maquetes de Speer
em forma de cartão postal. O efeito monumental da arquitetura podia ser obtido
com a mesma facilidade, e quem sabe ainda melhor, por uma imagem totalizante,
em grande-angular. Nem precisa construir a coisa real. Isso não foi bem uma
estratégia, mas funcionou. Anos depois à guerra, muitos alemães ainda
acreditavam que os projetos de Speer para Berlim
tinham sido realmente construídos e depois destruídos nas fases finais da
guerra". Ver HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela Memória - Arquitetura, Monumentos, Mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000, p.64.
[26] Idem, pp. 193 e 194.
[27] EDMUNDO, Luís, op.
cit., p. 443.
[28] SÜSSEKIND, Flora, op. cit., pp. 104 e 105.
[29] Idem, pp. 68 e 69.
[30] SCHAPOCHNIK, Nélson, op. cit.,
pp. 429 e 430.
[31] AMARO, Austen. Juiz
de Fora poema lyrico. Juiz de Fora: FUNALFA,
2004, p. 43.
[32] CONSTANTINO,
Núncia Santoro de. Italianos meridionais em Porto Alegre: estudo para a
história social. In: DE BONI, Luis Alberto
(org.). A presença italiana no Brasil: vol. II. Porto
Alegre; Turim: Escola Superior de Teologia; Fondazione
Giovanni Agnelli, 1990, p. 473.
[33] SALMONI, Anita e
DEBENEDETTI, Emma. Arquitetura italiana em São Paulo. São Paulo:
Perspectiva, 1981, p. 59.
[34] CENNI, Franco. Italianos
no Brasil. São Paulo: EDUSP,
2003, p. 392.
[35] Idem, p. 394.
[36] GRIECO, Bettina Zellner. A arquitetura
residencial de Antônio Jannuzzi: idéias e realizações. Rio de Janeiro: Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, FAU-UFRJ, 2005, p. 2.
[37] Apesar de não possuirmos
documentos que comprovem a relação entre a presença dos irmãos Januzzi no Rio
de Janeiro, e a vinda, no ano seguinte, de Angelo Raffaele e seu filho
Pantaleone, era sabido que os irmãos contratavam, preferencialmente,
mão-de-obra italiana para suas obras. A nossa hipótese se reforça ao
percebermos que as cidades de origem das duas famílias (Fuscaldo e Sant'Agata
di Esaro) se encontram na mesma província de Cosenza, na região da Calábria,
distantes aproximadamente 60 quilômetros entre
si e que, ainda hoje, encontramos vários Arcuri habitando exatamente em
Fuscaldo.
[38] CENNI, Franco, op.
cit., p. 396.
[39] CHRISTO, Maraliz Vieira, op. cit., p. 142.
[40] Apud MIRANDA,
Sônia Regina, op. cit., p.
[41] Francisco Soucasaux era um
artista e construtor de origem portuguesa, nascido em 1856 e que, ainda jovem,
veio para o Brasil. Residiu primeiramente no Rio de Janeiro, onde se dedicou ao
ofício de marcenaria e, depois, mudou-se, em 1894, para Belo Horizonte, onde,
entre outras atividades, foi sócio das empresas construtoras Edwards, Camarate
& Soucasaux, F. Soucasaux & Cia. (com o engenheiro Aurélio Lobo) e
Silva & Soucasaux , sendo responsável pelas obras,
entre outras, do antigo Fórum (atual Instituto de Educação), da Estação General
Carneiro e do primeiro teatro da cidade, que ficou conhecido como Teatro
Soucasaux e ergueu-se no local destinado pela Comissão Construtora da cidade ao
Teatro Politeama. Além de construtor era, também, fotógrafo, sendo proprietário
de um atelier na Rua Bahia onde aconteciam exposições, além de ter sido
responsável pela idéia, produção e organização de um Álbum de Minas Gerais, que
estava preparando na Europa, quando morreu em 1904. Segundo Izaura Rocha,
Soucasaux montou, em 1903, um ateliê em Juiz de Fora, onde produziu vinte e
seis fotografias sobre a cidade que se destinavam ao segundo volume do citado
Álbum e que, também, foram comercializadas, na época, como cartões-postais.
Ver: IEPHA/MG. Dicionário biográfico de construtores e artistas de Belo
Horizonte: 1894/1940. Belo Horizonte: IEPHA/MG, 1997, p. 246 e ROCHA,
Izaura. Imagens do progresso. Tribuna de Minas. Juiz de Fora, 27 maio 2001, disponível em:
http://www.tribunademinas.com.br/ especiais/lembrancas.php.
[42] FAZOLATTO, Douglas.
Juiz de Fora: imagens do passado. Juiz
de Fora: FUNALFA, 2003, p. 72.
[43] MIRANDA, Sônia
Regina, op. cit., p. 217.
[44] Apud BARBOSA,
Leila Maria Fonseca e RODRIGUES, Marisa Timponi
Pereira. Letras da cidade. Juiz de Fora: FUNALFA, 2002, p. 46.
[45] PASSAGLIA, Luis Antônio do Prado. Preservação do Patrimônio
Histórico de Juiz de Fora. Juiz de Fora: IPPLAN-JF, s.d., pp. 49 e 50.
[46] MIRANDA, Sônia
Regina, op. cit., pp. 127 e 128.
[47] GENOVEZ, Patrícia Falco. Núcleo Histórico da Rua Espírito Santo. Juiz de Fora: Clio Edições
Eletrônicas, 1988, [s. p.].
[48] Idem, [s. p.].
[49] Almanach de Juiz de Fora para
1897: Publicação commercial, industrial, agrícola e literaria,
anno II. Juiz de Fora: Mattoso & Medeiros, 1896,
p. 337.
[50] Idem, ibidem, p. 291.
[51] Idem, p. 345.
[52] Idem, ibidem, p. 317.
[53] GUIMARÃES, Heitor
(org.). Almanach de Juiz de Fora para 1898 anno III. Juiz
de Fora: Mattoso & Medeiros, 1897, pp. 339 e 348.
[54] Apud STEHLING,
Luiz José. O Parque Halfeld. In: Revista Instituto
Histórico e Geográfico Juiz de Fora, ano III, no. 3. Juiz de Fora: s. ed., junho, 1967, p.
147.
[55] Apud BARBOSA,
Leila Maria Fonseca e RODRIGUES, Marisa Timponi
Pereira. Op. cit., p. 93. A citação das "maquines de cimento"
provavelmente faz referência a famosa Gruta de Maquiné, localizada no Estado de Minas Gerais.
[56] NAVA, Pedro, op.
cit., p. 72.
[57] Idem, p. 72.
[58] ANDRADE, Rubens
de. Jardins públicos no Brasil entre o final do século XIX e início do
século XX. Disponível em: <http://www.acd.ufrj.br/historiadopaisagismo/_leituras1.htm>. Acesso: 1 out. 2009.
[59] Giovanni de Fazio se forma em "professor de desenho
arquitetônico" pela Escola de Arquitetura do Instituto de Belas Artes de
Nápoles, em julho de 1911. Cabe aqui ressaltar que naquela época, tanto na
Itália quanto no Brasil, o diploma não era necessário para se exercer a
profissão de arquiteto, o que torna plausível o fato que De Fazio
ensinasse arquitetura para Raphael, particularmente, desde, pelo menos, 1910.
[60] Juiz de Fora
industrial. Companhia Industrial e Constructora Pantaleone Arcuri, S. A. - suas
novas instalações. Gazeta Commercial. Juiz de
Fora: 22 out. 1926, p. 1.