Araras Gregas [1]

Roberto Conduru [2]

CONDURU, Roberto. Araras Gregas. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_conduru.htm>.

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Uma fórmula simples e simplificadora

Entre os impasses ainda presentes na historiografia sobre a arquitetura produzida no Brasil no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, existe uma questão que o texto em curso pretende comentar brevemente. Na maioria das versões sobre a história da arquitetura no Brasil, a chegada da Missão Artística Francesa ao Rio de Janeiro, em 1816, é tratada como momento de viragem, evento cultural finalizador de um tempo e iniciador de outro. Este primado da Missão como marco fundamental, divisor de períodos históricos, funciona como interdito que impede a designação de neoclassicista para a produção artística do Brasil setecentista que seguiu o retorno à racionalidade clássica desenvolvido na Europa a partir de meados do século XVIII. Todas as experiências setecentistas de retorno à ordenação classicizante ou são desconsideradas ou são tratadas apenas como prenúncios de acontecimentos posteriores.

Esta questão está embutida em uma fórmula simples: o Brasil era barroco no tempo que tinha estatuto de colônia e de vice-reino de Portugal, neoclássico na época de reino unido e de império. Uma fórmula simples e simplificadora, mas de grande alcance, vinculada que está a outras formulações que compõem a visão modernista sobre a história da arte no Brasil. Em síntese, esta visão acredita que à colônia barroca, seguiu-se o império neoclássico e a degenerescência eclético-acadêmica da primeira república, com seus desdobramentos neocoloniais, até o advento heróico do modernismo nos anos 1920 e o reatar correto dos laços com a tradição autêntica. Inerente e fundamental para esta visão é a crença de que a verdadeira natureza do Brasil é barroca; crença no barroco como emblema de nacionalidade que foi construída em outro momento de pretensa autenticidade artística - o modernismo, que se pensava como instante de reencontro do país consigo próprio.

O primado da Missão

A visão modernista da história da arquitetura no Brasil pode ser encontrada nos textos daquele que é, talvez, seu principal formulador - Lucio Costa. Em seu “Depoimento” de 1948 e em seu artigo “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre” de 1951, está implícita mas nem por isso menos evidente a questão do primado da Missão e o conseqüente interdito para a existência do neoclassicismo nos setecentos.[3]

Um exemplo de como esta visão foi difundida é a obra Rio Neoclássico[4] de Clarival do Prado Valladares. Em sua “Análise Iconográfica do Neoclássico Remanente (sic) no Rio de Janeiro”, o autor indica a data convencionada pelos historiadores - “a presença da Missão Artística Francesa” - para estabelecer “em que data começou o neoclássico no Rio de Janeiro”, mas observa que “não teria tranqüilidade de memória” pois “tudo restaria dentro de um nevoeiro”, recordando que o classicismo já se manifestara no Brasil em meados do século XVIII, com as obras de Antônio José Landi no Pará. Entretanto, as ilustrações do livro são em sua maioria de obras posteriores à Missão, nas poucas obras de edifícios iniciados nos setecentos são comentadas as partes terminadas no século seguinte, o que confirma sua adesão à visão modernista.

A questão reaparece na obra Uma Cidade em Questão I: Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro, subsidiando os textos de Robert Coustet e Donato Mello Júnior.[5]

A visão modernista também pode ser observada na estrutura da História Geral da Arte no Brasil organizada por Walter Zanini; no que tange à questão da Missão e do neoclassicismo, especificamente em dois textos. Em seu texto sobre a arte do século XVI ao início do século XIX[6], Benedito Lima de Toledo inclui as obras de Antônio José Landi, José Custódio de Sá e Faria e Francisco João Roscio no estilo pombalino, “cujos ingredientes são o neopaladianismo, o abandono da sobrecarga ornamental barroca e uma racionalização dos processos construtivos”, mas classifica esta produção como “proto-neo-clássica”. Em seu texto sobre a arte do século XIX e do início do século XX[7], Mário Barata cita a produção artística do século XVIII - a casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto [Figura 1], a igreja da Santa Cruz dos Militares no Rio de Janeiro [Figura 2] e algumas das realizações de Landi no Pará -, mas as reúne sob o título de “infiltração do neoclassicismo”. Como o recorte da obra é baseado na visão modernista, a Missão Artística Francesa aparece como marco original; por conseguinte, os autores não podem ver o retorno ao classicismo nos setecentos senão como antecipação de algo cujo momento certo e pleno no Brasil é o início do século XIX.

Entretanto, é em outros dois autores que esta visão aparece de modo mais claro: Paulo Santos e Carlos Lemos.

Paulo Santos, em sua obra de referência - Quatro Séculos de Arquitetura [8] -, afirma que “O Neoclassicismo predominou na arquitetura do Rio de Janeiro da segunda década até o terceiro quartel do século XIX e foi, por excelência, o estilo do período imperial. Refletiu, aqui, a tendência comum a todo o Ocidente em fins do século XVIII e princípios do XIX, de retorno às formas da Antigüidade clássica greco-romana.” O autor não deixa de assinalar a manifestação do neoclassicismo ainda nos setecentos: “No Brasil, conjugado ao rococó, se insinuara, desde antes do último quartel do século XVIII”, citando as obras de Antônio José Landi e a Associação Comercial da Bahia; “No Rio de Janeiro, anunciara-se, igualmente, desde o último quartel do século XVIII - menos pelo vocabulário estilístico do que pelo sentido, já o seu tanto academizante da composição”, citando a planta da igreja de São Francisco de Paula [Figura 3] e a fachada da igreja da Candelária [Figura 4]; ainda no Rio, “Na segunda metade do século XVIII, predominou a tendência italianizante e o gosto do monumental, mais um anúncio do retorno ao classicismo”. Junto às imagens da insinuação e da anunciação, vem o julgamento negativo: no “academizante” supracitado que se repete no comentário sobre a capela de Nossa Senhora das Vitórias, da igreja de São Francisco de Paula, obra em que o Mestre Valentim trabalhava no final da vida e na qual, para o autor, “o friso de guirlandas no alto das paredes (tão empregados pelos Adams), indica automatismo academizante, e o advento do Neoclassicismo.”

Carlos Lemos, em seu texto sobre a coexistência no Brasil do maneirismo e do barroco até o advento do neoclássico histórico[9], divide a produção arquitetônica portuguesa pós-renascentista em “duas vertentes ditas maneiristas, a tradicionalista, a ‘chã’ ligada às soluções estruturais e formais do gótico tardio e a italiana, ou erudita, vinculada ao classicismo [...]. Essa vertente italiana, principalmente no início do século XVII, comandou as grandes obras religiosas do reino e do além-mar lusitano [...]. Esses edifícios verdadeiramente maneiristas, ou maneiristas históricos, constituem os elos iniciais de uma longa cadeia brasileira de obras daquela variação estilística que alcançou e atravessou todo o século XVIII para confrontar-se com o Neoclássico instalado pela Missão Francesa no início da centúria seguinte”. Sobre o estilo pombalino, ainda no mesmo texto, afirma: “Para nós esse proto-neoclássico pombalino tem um nome: Maneirismo. Maneirismo disfarçado. Maneirismo ‘residual’, que nunca abandonou os teimosos engenheiros del’Rei”. Para o autor, são exemplos de construções maneiristas, realizações da primeira e da segunda metade dos setecentos “Dos engenheiros militares portugueses que atuaram no Brasil no século XVIII e que ignoraram o barroco, preferindo em suas composições, a contenção renascentista”, “dentro da tradição arcaizante”: a Casa do Governo da ilha de Santa Catarina [Figura 5] e a igreja Matriz de Nossa Senhora do Desterro, projetos de 1748 do brigadeiro José da Silva Pais; a igreja da Santa Cruz dos Militares, no Rio de Janeiro, projeto de 1780 do brigadeiro José Custódio de Sá e Faria; a Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto, projeto de 1784 do capitão-general Luís da Cunha Meneses. Apenas no Palácio do Governo de Belém do Pará [Figura 6], obra de 1759 de Antônio Giuseppe Landi, o autor vê a superação do maneirismo na ornamentação das envazaduras já barroquizante.

Dois estudos recentes parecem seguir adotando esta visão.

Alberto Sousa, em seu reexame da arquitetura neoclássica brasileira[10], entende “a fase neoclássica propriamente dita (dos anos 1810 aos anos 1880, aproximadamente)”, dividindo-a em dois períodos com o início do segundo reinado na década de 1840. Julgando incorreto chamar essa arquitetura de neoclássica, propõe a designação “arquitetura classicista (ou classicismo) de transição” para os edifícios neoclassicistas das primeiras décadas do século XIX, considerando-a “aplicável, também, aos projetos de tendências classicizantes da metade de século anterior à instalação da Corte portuguesa no Brasil”, e “arquitetura classicista (ou classicismo) do segundo reinado” para a produção neoclassicista da segunda fase. Apesar do autor contestar várias idéias estabelecidas a respeito do neoclassicismo na “historiografia dominante da arquitetura brasileira” e reconhecer o neoclassicismo das experiências setecentistas, não questiona o marco do início do século XIX para o início do estilo no Brasil e, conseqüentemente, a posição original da Missão Artística Francesa.

Sandra Alvim, no primeiro volume de seu estudo sobre a arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro[11], manifestamente evita a classificação estilística ao analisar o modo como os revestimentos, os retábulos e a talha participam da composição plástica. Sobre a igreja da Santa Cruz dos Militares, por exemplo, observa no “Índice comentado das igrejas” que “O grande valor de sua fachada deve-se não só ao fato de ser a única do gênero da cidade, mas também à qualidade de sua composição. Além disto, é um exemplo da diversidade de modelos adotados no Rio a partir de meados do Setecentos”. Apenas no “Glossário”, a autora dá pistas sobre o seu posicionamento quanto aos estilos e sua incidência na arquitetura carioca: “a arquitetura maneirista tem grande penetração, cria raízes e torna-se protótipo formal. No que se refere às plantas e fachadas, guia o caráter rígido das obras até o século XIX”; o estilo “Luís XV (rococó): [...] Surge no Rio de Janeiro em meados do século XVIII: nas decorações internas e em elementos isolados das fachadas”; quanto ao pombalino, é um estilo de “urbanismo racionalista” em que, “na arquitetura religiosa, as diferentes e contraditórias composições das fachadas se caracterizam por um ecletismo tardo-barroco conjugado a outras influências”, não havendo menção sobre estas “influências” ou sobre a presença do estilo na arquitetura carioca. Apesar de a autora afirmar que “a influência neoclássica penetra sistematicamente a partir da Missão Francesa”, o que a alinharia aos autores anteriormente citados, cabe esperar pelos próximos volumes de sua obra para entender melhor seu posicionamento quanto à questão do neoclassicismo no Rio de Janeiro setecentista.

O neoclassicismo na colônia

Apesar da quantidade e da qualidade das citações anteriores, deve ser observado que não há consenso entre os historiadores da arquitetura. A visão modernista sobre a história da arquitetura no Brasil é contestada em alguns estudos específicos, sendo a visão dominante mas não a única. Entre os que reconhecem a presença do neoclassicismo já em obras arquitetônicas do século XVIII, podem ser citados os seguintes autores: Germain Bazin, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Gustavo Schnoor e David Underwood.

Germain Bazin, em seu estudo dos anos 1940 e 1950 sobre a arquitetura religiosa barroca no Brasil[12], considera que já na igreja de São Pedro dos Clérigos do Rio de Janeiro [Figura 7], da primeira metade do século XVIII, “certas características apontam para o neoclassicismo”. Para o autor, na segunda metade dos setecentos, “O desenvolvimento precoce das tendências neoclássicas foi favorecido no Rio de Janeiro pela influência pessoal do quarto vice-rei, Luiz de Vasconcellos (1779-1790). Imitando aquilo que Pombal havia feito em Lisboa, Luiz de Vasconcellos quis modernizar a velha cidade barroca e desencadeou esse movimento de urbanização que se desenvolveu no século seguinte sob o reinado de D. João VI e dos dois imperadores”. “Mestre Valentim, como está demonstrado na evolução de suas obras de talha, passou do rococó ao neoclássico”. A igreja da Santa Cruz dos Militares “reflete o abandono do estilo rococó”, seu frontispício foi “inspirado na fachada desenhada por Vignola para o Gesú”, sendo “um dos exemplos de volta às formas da época clássica que observamos na época neoclássica”. “A análise dos monumentos cariocas comprova que a evolução característica dessa cidade a conduziria, mais cedo do que as outras províncias do Brasil, às soluções do neoclassicismo, e isto no mesmo período em que Minas e Pernambuco iriam produzir algumas das obras primas da arte rococó luso-brasileira”.

Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, em seu artigo sobre a arquitetura e as artes no século XVIII brasileiro[13], ao analisar o período de 1760 a 1800, defende que “A influência preponderante da arte da côrte de Lisboa, [...], faria com que tanto nas igrejas do Rio de Janeiro construídas na época quanto nas da longínqua Belém, prevalecesse a marca do estilo pombalino, [...] caracterizado como uma espécie de ‘regulamentação neoclássica do rococó’”

Gustavo Schnoor, em seu texto sobre a igreja da Santa Cruz dos Militares[14], considera que a fachada do templo, de “inspiração jesuítica”, parece constituir-se “em uma solução própria do estilo pombalino”, “em uma das primeiras manifestações neomaneiristas da tendência classicizante que, então, se esboçava no Rio de Janeiro”, “retomada do gosto classicista que apontava para o Maneirismo”. O autor ainda acrescenta que, caso se confirme a data da encomenda dos mármores em 1765, “teremos de considerar o projeto da fachada como a primeira manifestação neoclássica de nossa arquitetura”.

David K. Underwood, em seu ensaio sobre o chafariz do Largo do Paço no Rio de Janeiro [Figura 8a e Figura 8b] [15], considera importante o impacto do estilo pombalino e seu classicismo severo e de inspiração francesa na arquitetura do Rio de Janeiro do final do século XVIII, analisando os projetos de Jacques Funck e do Mestre Valentim para o chafariz no quadro do neoclassicismo e suas correntes de migração internacional - França, Suécia, Portugal, Brasil.

Por uma história impura

A questão do primado da Missão Artística Francesa e do interdito à existência do neoclassicismo a partir dos setecentos presente na historiografia da arquitetura no Brasil pode ser vista como decorrente do modo de entendimento da produção artística com relação a dois fatores: o tempo e o lugar.

Por um lado, a questão deriva da relação estabelecida entre a obra de arte e o momento de sua criação.

Subsidiando e potencializando a visão modernista, está o enquadramento da arte como “estilo de época” - barroco como estilo do Brasil colônia, neoclássico como estilo do império brasileiro. A persistência na historiografia deste vínculo de dependência entre os estilos artísticos e os períodos históricos é um ranço que advém do entendimento dos fatos artísticos como epifenômenos de períodos históricos que os criam de modo mais ou menos causal. Assim, os fatos artísticos não são entendidos como ações e realizações que, em tensão com as demais práticas culturais, constituem e caracterizam os momentos históricos em que surgem e incidem.

Assim, naquela visão, a diferença entre a arquitetura do século XVIII e a do século seguinte deve ser não apenas estabelecida, espelhando melhor cada momento, mas acentuada, corroborando a idéia segundo a qual houve efetiva mudança no Brasil na passagem da condição de colônia e vice-reino à de reino unido e, depois, de império. Neste sentido, a exaltação da mudança estilística da colônia para o império ajuda a encobrir os traços de continuidade entre a sociedade brasileira nos setecentos e oitocentos: o escravismo, a dependência econômica e a condição periférica no sistema internacional, entre outros.

Por outro lado, a questão em exame decorre da relação estabelecida entre a obra de arte e o seu lugar de aparecimento. Assim como existe a vontade de caracterizar a arte como “estilo de época”, há o desejo de afirmá-la como “estilo da nação”.

A natureza barroca do Brasil é uma idéia construída sobre a crença na existência do estilo próprio, intrínseco ao lugar, algo quase atávico. Neste sentido, o reconhecimento de manifestações neoclassicistas a partir dos setecentos em Belém, Rio de Janeiro, Ouro Preto e Salvador turvaria a imagem paradoxalmente purista do barroco como estilo nacional. Assim, é forjada a imagem do Brasil como clausura conectada apenas à metrópole no tempo de colônia, que passa a participar da ordem mundial apenas a partir de 1808, com a abertura dos portos às nações amigas, e de 1822, com a independência política. Clausura conectada que gerou uma cultura autônoma e pura - barroca - que é perdida no início do século XIX e restabelecida apenas com os modernistas e seu projeto de “resgate” da tradição.

A resistência em aceitar que, mesmo através da conexão única com a metrópole, idéias e formas de diferentes regiões do mundo - Itália, Bavária, França - chegavam até a colônia, a dificuldade de admitir superposições estilísticas no tempo e no lugar conduz aos expurgos da historiografia. Silêncios, menções veladas e censuras sobre as obras e os arquitetos neoclassicistas anteriores à Missão que acabam por constituir uma história da arquitetura no Brasil homogênea e linear. Uma história onde as realizações artísticas podem até estar defasadas com relação às obras que caracterizam os estilos na Europa, mas devem estar de acordo com a sucessão cronológica e a independência dos estilos - maneirismo, barroco, rococó e neoclassicismo. O atraso é perdoado, porque é considerado intrínseco a uma cultura periférica, mas não a subversão à ordem pretensamente pura e linear da matriz européia, algo inadmissível por princípio.[16]

O desenvolvimento da vida na colônia levou à formação de um quadro de práticas culturais diferenciado da matriz metropolitana e de seus modelos. Uma das características deste quadro foi a convivência e a superposição no tempo e no espaço de referências estéticas e artísticas que, na Europa, apareceram umas em resposta às outras e eram a princípio inconciliáveis. Assim, no Brasil foi possível em um mesmo instante e lugar - o Rio de Janeiro ou Ouro Preto do final do século XVIII, por exemplo -, tanto a produção de fatos plásticos que desdobravam modelos artísticos implantados de muito tempo - do que as invenções barrocas e rococós do Aleijadinho e do mestre Valentim são os exemplos maiores -, quanto o desenvolvimento de novas idéias artísticas, como nas interpretações neoclassicistas dos engenheiros militares.

Admitir a manifestação do neoclassicismo no Brasil antes de 1816 não significa questionar a importância da Missão Artística Francesa e da conseqüente criação da Academia Imperial de Belas Artes, nem diminuir a importância da figura ímpar de Grandjean de Montigny na arquitetura do Brasil na primeira metade do século XIX por sua produção arquitetônica (projetos e obras) e sua atuação como mestre na Academia. No que tange à questão do ensino artístico, a vinda da Missão e a criação da Academia são com toda certeza acontecimentos culturais que constituem um momento de viragem, marcando o fim de um tempo e o começo de outro - o início do ensino da arquitetura no Brasil longe do âmbito religioso e da esfera militar.

Não obstante, quanto ao neoclassicismo, não se pode aceitar que a Missão continue a funcionar como marco original que anule ou desvalorize a existência do estilo antes da chegada dos artistas e artífices franceses ao Rio de Janeiro. Mesmo que tenham existido poucas obras - umas aqui, outras acolá -, constituindo um conjunto de realizações dispersas que não permite falar de um grande movimento artístico (de resto, algo semelhante à produção neoclassicista da primeira metade do século XIX), as experiências no Brasil setecentista de referência ao movimento desenvolvido na Europa de retorno às fontes clássicas devem ser reconhecidas como instantes legítimos do neoclassicismo nos trópicos, não podendo continuar a ser desconsideradas ou tratadas apenas como prenúncios de uma plenitude só observável em obras posteriores.

Quanto à dificuldade de classificar esta arquitetura como neoclássica, dada sua distância do rigor pretendido pelos praticantes do estilo na Europa, deve ser observado que esta é uma questão que afeta tanto as edificações neoclassicistas produzidas antes da vinda da Missão Artística Francesa quanto as obras de Grandjean de Montigny e seus discípulos mais ou menos imediatos. A contradição entre o caráter específico derivado das condições locais que subsidiaram sua constituição e o anseio universalizante que fundamentava a pesquisa artística de seus autores, a particularidade de um estilo internacionalista por vocação, é um traço mais de união do que de divisão destas realizações. Sem escapar à conjuntura cultural específica que afetou a arquitetura no Brasil desde seus primórdios, as obras neoclassicistas ansiavam pelo retorno ao ideal de beleza e racionalidade nascido na Grécia. Referindo-se ao classicismo em suas mais distintas formulações históricas - gregas, romanas, renascentistas e maneiristas -, esta arquitetura, regional por contingência mas universalista por projeto, evidencia filiação simultânea ao solo em que foram erigidas e ao horizonte cultural a que almejam pertencer - o Ocidente. Exatamente como se as araras postulassem uma ascendência grega ...

Bibliografia

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Notas bibliográficas

[1] Esse texto foi publicado em Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, MHN/IPHAN, v. 30, 1998, pp. 147-157.

[2] Roberto Conduru é graduado em Arquitetura (UFRJ) e doutor em História (UFF). É professor de História e Teoria da Arte na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde dirige atualmente o Instituto de Artes. É autor de Arte Afro-Brasileira (C/Arte, 2007), Willys de Castro (CosacNaify, 2005) e Vital Brazil (CosacNaify, 2000) co-autor de Brazil’s Modern Architecture (Phaidon, 2004) e A Missão Francesa (Sextante, 2003) além de ensaios sobre arte e arquitetura, publicados no Brasil e no exterior. Foi curador de exposições individuais e coletivas. É membro e atual presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte.

[3] COSTA, Lucio. “Depoimento” e “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre”. In: __. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, respectivamente, pp. 198-200 e 156-171.

[4] VALLADARES, Clarival do Prado. Rio neoclássico. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1978, p. 23.

[5] COUSTET, Robert. “Grandjean de Montigny, urbanista” e MELLO JR., Donato ”Fontes documentais para pesquisas sobre o arquiteto Grandjean de Montigny”. In: PUC-RIO. Uma cidade em questão I: Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-Rio, FUNARTE, Fundação Roberto Marinho, 1979, respectivamente pp. 65-72 e 107-124.

[6] TOLEDO, Benedito Lima de. “Do séc. XVI ao início do séc. XIX: maneirismo, barroco e rococó”. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 268.

[7] BARATA, Mário. “Séc. XIX. Transição e início do séc. XX”. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. Op. cit., p. 381.

[8] SANTOS, Paulo. Quatro séculos de arquitetura. Rio de Janeiro: IAB, 1981, especialmente pp. 29-30, 51-52.

[9] LEMOS, Carlos A. C. “No Brasil, a coexistência do maneirismo e do barroco até o advento do neoclássico histórico”. In: Barroco, Belo Horizonte, Centro de Pesquisas do Barroco Mineiro, n. 15, 1990/1992, pp. 251-256.

[10] SOUSA, Alberto. Arquitetura neoclássica brasileira: um reexame. São Paulo: Pini, 1994, pp. 19-36.

[11] ALVIM, Sandra. Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro: revestimentos, retábulos e talhas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, MINC - IPHAN, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1996, especialmente pp. 219, 235-247.

[12] BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1983, pp. 244, 247-250.

[13] OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. “A arquitetura e as artes no século XVIII brasileiro”. In: Gávea, Rio de Janeiro, PUC, n. 2, set/1985, pp. 61-62.

[14] SCHNOOR, Gustavo. “A igreja de Santa Cruz dos Militares. Breve notícia histórica. Considerações estilísticas sobre a fachada. A questão das reformas e da autoria da obra de talha.” In: Barroco, Belo Horizonte, Centro de Pesquisas do Barroco Mineiro, n. 15, 1990/1992, pp. 283-290.

[15] UNDERWOOD, David K. “The Chafariz do Largo do Paço in Rio de Janeiro”. In: DEL BRENNA, Giovanna Rosso (organizadora). La construzione di un nuovo mondo: territorio, cittá, archittetura tra Europa e America Latina dal XVI ao XVIII secolo. Genova: Sagepe, 1994, pp. 277-281 e 289-291.

[16] Algumas dessas observações derivam da leitura de MARQUES DOS SANTOS, Afonso Carlos. “Da colonização à Europa possível, as dimensões da contradição”. In: PUC-RIO. Uma cidade em questão I: Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro. Op. cit., pp. 21-33. e SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: __. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 29-48.