Apontamentos sobre o Retábulo-Mor Oitocentista dos Beneditinos da Bahia *
Maria Herminia Olivera Hernández **
HERNÁNDEZ, Maria Herminia Olivera. Apontamentos sobre o Retábulo-Mor Oitocentista dos Beneditinos da Bahia. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_altar_beneditinos.htm>.
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BENEDITINOS NA BAHIA
O impulso missionário levou à fundação de mosteiros beneditinos no além-mar. Assim, aconteceram as fundações pelo território brasileiro. No século XVI, no ano de 1581, foi implantada a Ordem na Bahia, em Salvador, no limite Sul da Cidade, nas imediações das Portas de Santa Luzia, onde existiu a Capela de São Sebastião, a eles doada pelo Bispo Antônio Barreiros. A dita Capela estava inicialmente localizada em uma área ocupada por uma aldeia aborígene, que sobre a cataquese dos jesuítas denominava-se de São Sebastião, do Cacique Ipiru (ou Tubarão).
Em 1584, a casa era elevada a Abadia, conforme resolução do 5º Capítulo Geral da Congregação, realizado no Mosteiro de Pombeiro, em Portugal. Esse estabelecimento constituiu-se na primeira fundação beneditina da Colônia e, por séculos, cabeça dos mosteiros da Província do Brasil, condição adjudicada em Junta celebrada a 22 de agosto de 1596, quando também foi ordenado que o Abade da Bahia o fosse de toda a Província e que este, por sua vez, fosse
[...] sogeito ao Abade Geral desta Congregação de Portugal, e cumpra seus preceitos e mandamentos, como subdito inferior sem que he, como o são os mais Prelados e Religiosos desta Congregação de Portugal e Provincia do Brasil (BEZERRO I, AMS, 1570-1611, f.164).
Os Mosteiros da Ordem no Brasil, após a implantação da casa da Bahia, como ponto de chegada e centro de irradiação, continuaram seguindo as orientações emanadas da Congregação Beneditina, indicadas no Capítulo Geral de 1589, que resolveu a continuidade da instituição nessas terras, quando fosse em povoações grandes. Dessa forma, no mesmo século XVI, outras fundações materializaram-se, priorizando as localizações na região norte-nordeste, quase sempre junto à costa, vinculadas ao desenvolvimento econômico que essas áreas vinham experimentando, em decorrência, principalmente, do impulso da produção açucareira.
O Mosteiro de São Bento da Bahia, assim como as outras fundações acima citadas, desfrutava de todos os privilégios e isenções semelhantes aos da Ordem de São Bento de Portugal (LVTMB, 1945, p.404-406). O processo de formação de seu patrimônio móvel e imóvel teve grandes motivações de ordem espiritual e temporal. No caso das doações, de caráter temporal, destacam-se aquelas promovidas pelo Governo Geral e Câmara, sempre com a finalidade de obter, através da colaboração dos religiosos, algum benefício no sentido de promover o povoamento, desenvolvimento econômico ou de infra-estrutura em determinada zona.
Outras doações eram feitas de forma mais explícita. Os doadores deixavam os bens para os monges em troca do recebimento temporário de orações e outros benefícios, tais como proteção, sustento ou a satisfação de determinadas necessidades materiais específicas, podendo ser uma pensão por vida ou, simplesmente, roupas, calçados e alimentos. A grande maioria das doações e legados tinham motivação espiritual. A salvação da alma, o perdão pelos pecados, eram as petições mais comuns. O culto devido a Deus, à Virgem Maria ou a algum santo em particular fazia-se presente em sinal de gratidão.
A IGREJA ATUAL
Em 1612, com a idéia de construir outra igreja nova, os beneditinos estavam reunindo recursos, e enviaram petições ao Senado da Câmara, pois necessitavam de espaço para as obras planejadas “[...] por haverem de sair com a igreja nova mais para fora” (LVTMB, 1945, p.414-416). Esta solicitação foi despachada favoravelmente concedendo ao Mosteiro a área solicitada.
Os monges continuaram as suas obras e no período de 1652 a 1657, sendo Abade Frei Mâncio dos Mártires, se deu início, provavelmente, à construção do templo atual, pois o Estado [1] de seu governo, datado de 21 de junho de 1657, traz a seguinte informação: “Tem se começado a Igreja há um ano em que se tem gastado cinco mil e quinhentos cruzados que entram na quantia do dinheiro que o depósito deu as obras e aí continuam com grande fervor” (CÓDICE 136, ADB, 1652– 1740, p.10).
No período era membro da comunidade do mosteiro um religioso arquiteto, o Irmão donato Frei Macário de São João, a quem se atribui a realização da planta do Mosteiro, conforme registro no Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia:
[...] pelo seu bom procedimento como por ter suficiente noticia de Arquitetura. Trabalhou nisto até morrer, com grande zelo e desvelo. Em prêmio lhe deram o hábito e coroa monacal. Deixou disposta em parte a planta deste Mosteiro e da Igreja nova, com clareza necessária para sua execução [...]. (CÓDICE 349, AMSB, 1943, f.40).
No triênio seguinte, continuaram a ser feitas obras, destacando-se notícias como as do período 1657-1660, governo do Abade Frei Bento dos Reis, nas quais são narrados elementos importantes da construção do templo:
Tinha a igreja nova em partes quatro palmos fora do alicerce, e em partes seis, só da parte da rua e levantou-se daquela parte até a última cornija e das capelas com suas frestas, e porta travessa e pilares tudo de cantaria. Fizeram-se as abóbadas das capelas que são quatro com arcos de cantaria, e outros arcos para os altares. Pôs-se a pedra do púlpito com porta, e escada por dentro do pilar. Levantou-se a face da parte da Igreja com pilares até acima das capelas, e cobriu-se tudo com telha.
O frontispício se levantou até a primeira cornija que fica quatro palmos acima do coro com três portas quatro colunas com todas as armas, insígnias da religião.
Fez-se o primeiro arco do coro fica muita cantaria lavrada para os outros dois arcos do coro, e para algumas das capelas que ficam da parte do claustro; desta parte se levantaram uns pilares, até o assento dos capitéis e pôs-se outra pedra do púlpito. Fez-se a porta que sai para o claustro, e uma abóbada com dois arcos de cantaria, desta parte e se continuo u com a torre até as janelas dos sinos com suas cornijas e frestas, a torre da outra parte fica na primeira cornija, que é acima do andar do coro (CÓDICE 136, ADB, 1652 – 1740, p.33).
Três anos depois, no relatório do triênio de 1663-1666, no qual governou como Abade o Padre Mestre Doutor Frei Francisco da Visitação, encontram-se informações referentes ao retábulo maior: “[...] Fechou um arco que vai do claustro para a igreja nova, e no portal pôs uma porta com chave, e abriu no retábulo maior a porta por onde agora se desencerra o Santíssimo, e pôs uma grade nova na janela do corredor que vai para a sacristia” (CÓDICE 136, ADB, 1652 – 1740, p.56). Este registro sugere a existência da capela mor [2] e funcionamento da igreja, visando, em conjunto com a citação anterior, a fisionomia arquitetônica do templo atual [Figura 1].
O RETÁBULO-MOR EM MÁRMORE DE CARRARA
A reforma ornamental sacra dos templos baianos
As manifestações do regime do padroado estiveram presentes desde os primórdios da ocupação do Brasil, estenderam-se ao Império e só terminaram na República, com a separação definitiva entre a Igreja e o Estado.
Ao longo desse período, o Estado, que exercia sua função através da Mesa de Consciência e Ordens, interferiu não só nos assuntos estritamente religiosos como também nas propriedades. Gerenciava os estabelecimentos de caridade, instituição de novas capelas, hospitais, nomeação de cargos eclesiásticos, fundação de ordens religiosas, número de religiosos e admissão de novos noviços nas ordens religiosas, entre outros.
No século XIX, continuou a ser evidente o papel do Estado no controle do desempenho das instituições religiosas. O padroado foi transferido para o Imperador, porém sob a influência das correntes do liberalismo, positivismo e maçonaria, a religião passou a ser vista de forma diferente; a mentalidade dos fiéis experimentou mudanças e as procissões, patrocinadas pelas Irmandades e Ordens Terceiras, passaram a se dar com descontinuidade. Segundo Flexor (2003, p.46), as devoções eram substituídas por outros santos ou outras representações de Cristo e de Maria.
De acordo com FREIRE (2006, p.20), ao longo do século XIX as irmandades, ordens terceiras e algumas ordens de religiosos regulares empreenderam reformas no interior de seus edifícios “[...] que consistiram no desmonte e destruição da antiga ornamentação em madeira entalhada, policromada e dourada erigida no século XVIII, e na substituição por outra ornamentação que fosse mais adequada à concepção estética e cultural daqueles novos tempos”. Destaca que o período mais frutífero em todo esse processo deu-se na primeira metade dos oitocentos, coincidindo com “[...] a vigência do primeiro período de prosperidade econômica, os 20 anos de depressão e fase posterior de recuperação”. Sendo prejudicada pela última fase de depressão acontecida de 1865 a 1888. (2006, p.55 e 56).
O mesmo autor (2006, p.20 a 50) coloca as reformas acontecidas nos templos soteropolitanos basicamente em atividades de pintura, douramento e entalhe. Assinala a da Igreja de Nosso Senhor Bom Jesus do Bomfim (iniciada pelo retábulo-mor em 1813), não como a primeira, e sim como aquela que parece ter desencadeado o ciclo das reformas nas ornamentações sacras católicas; outras tantas lhe sucederam, entre elas a de São Bento, considerando a última grande intervenção a do templo da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão na década dos anos de 1870.
O Retábulo-mor dos beneditinos
Os programas arquitetônicos devindos do Concílio de Trento retomaram, dentre outros elementos, a importância do Ofício divino, ato litúrgico no qual a ordem beneditina é notoriamente especializada. Dessa forma, as igrejas monásticas pré-existentes e as novas que se integravam à Congregação Beneditina consideraram em suas reformas ou projetos o alargamento das capelas mores para que os rituais e cerimônias pudessem se desenvolver com mais pessoal e pompa, como mandava o ritual romano.
No advento do século XIX, a igreja do mosteiro da Bahia ainda não tinha concluído as suas obras, não tendo portanto uma capela mor à altura da dignidade requerida pelas celebrações, fato colocado em diversos Capítulos e Juntas [3], e tarefa pela qual eram sucessivamente cobrados os abades em governo.
Na visita realizada pelo Imperador Dom Pedro II ao Mosteiro de São Bento, em 8 de outubro de 1859, em sua passagem por Salvador, registrou em seu Diário de viagem acontecimentos referentes à igreja e obras no transepto, especificamente as relacionadas com a cúpula e capela-mor, acerca desta última colocou: “[...] A capela-mor tem grande altura e encomendaram o altar de mármore de Carrara [...]” (1959, p.68).
Efetivamente, a capela-mor teria sido toda refeita, pois no dia 25 de outubro de 1848, o Abade Geral frei Arsênio da Natividade Moura comunicava ao Conselho do Mosteiro que devido ao estado em que se encontrava a velha capela-mor, era necessário fazer sua demolição pelo perigo que trazia ao desenvolvimento de todas as funções; finalizado esse período Abacial (1851) a capela foi demolida (CÓDICE 165, AMSB, 1801-1851, f.113 e CÓDICE 245, 1848 – 1861, AMSB, f.3v). As obras da atual capela-mor[4] devem ter iniciado em fevereiro de 1855, conforme o primeiro Livro das obras da capela-mor (Códice 222, AMSB, 1855-1860, 39f.)
Durante o ano de 1860 aparecem vários registros referentes a fretes de mármore e pagamentos ao Sr. Fratelli Sechino por conta do altar. Conforme dados de 30 de abril de 1861,
O altar mor custou 23: 248, 400 (vinte três contos, duzentos e quarenta e oito mil e quatrocentos réis), e fica se devendo ao Sr. Sechino 9:123,660 (nove contos, cento e vinte e três mil seiscentos e sessenta réis), exeptuando os despachos de 94, noventa e quatro, caixas com mármore que ainda não foram despachadas.
Tem-se gasto com a capela-mor no presente triênio quinze contos seiscentos e quarenta e cinco mil e trinta e cinco réis até a presente data (CÓDICE 189, AMSB, 1860 – 1872, f.5v).
A chegada deste altar coincide com o processo de substituição dos retábulos em madeira entalhada pelo mármore, cuja moda começou a ser introduzida na segunda metade do século XIX. De acordo com Freire (2006, p.37), poucas instituições religiosas tiveram condições econômicas de fazer a troca total ou parcial, apenas os beneditinos conseguiram fazer o seu retábulo-mor de mármore, outras apenas o fizeram na mesa dos altares. Nesse momento, assiste-se a uma revalorização do classicismo, e o uso da madeira considerada até então idônea para a realização das obras em talha diminuiu consideravelmente.
No relatório do triênio de 1860-1863 o Abade Frei Domingos da Transfiguração e Machado falava nos gastos da obra da capela-mor, sendo a quantia de 26: 229, 163 (vinte seis contos, duzentos e vinte nove mil cento e sessenta e três réis); e com a continuação da obra, 3:788, 150 (três contos, setecentos e oitenta e oito mil cento e cinqüenta e cinco réis), e com o pagamento do retábulo, fretes, estadas, condução, 22: 441, 008 (vinte e dois contos quatrocentos quarenta e um mil e oito réis), além de 10:000,000 (dez contos de réis) que no triênio passado se tinha dado por conta ao Sr. Secchino. (CÓDICE 189, AMSB, 1860 – 1872, f.6v) [ver Planta 1 e Planta 2].
Em 25 de junho de 1863 firmava-se contrato entre o Abade Frei Tomás de São Leão e o Sr. Henrique Behrens (CÓDICE 5, AMSB, 1858, f.13).
Este último se obrigava a fazer a capela-mor mediante a quantia constante do orçamento abaixo declarado, ressaltando o inicio do contrato em 6 de julho do mesmo ano:
Orçamento:
Madeira, materiais e mão de obra para o simples da abóbada.....................1:700,000
Materiais e mão de obra da abobada, aterro e ladrilho da mesma...............8:550,000
Reboco de toda a capela-mor e aparelho da cimalha...................................6:665,360
Obra de alvenaria para assentamento do retábulo, trono e prebistério........5:963,860
Assentamento do retábulo, trono, presbitério e mão de obra de mármore.....5:084,000
Soma total.....................................................................................................27:683,220
(CÓDICE 189, AMSB, 1860 – 1872, f.7).
Na terceira cláusula, o mencionado contrato colocava as etapas nas quais a obra deveria ser realizada, destacando-se a terceira seção, onde seria feito “[...] o assentamento de toda a obra de mármore com cimento da melhor qualidade sobre bases e paredes de alvenaria muito solidamente construídas pelo empreteiro” (CÓDICE 5, AMSB,1858, f.12v).
Em 1866, o Abade informava ao Capítulo Geral o andamento das obras da capela-mor e das áreas vizinhas, destacando a colocação do altar e trono, e ladrilhado com mármore o presbitério, pavimento baixo, grande parte dos corredores laterais, tribunas e camarim da capela-mor. (CÓDICE 107, AMSB, 1851 – 1893, f.16).
No ano de 1871 se falava na conclusão dos trabalhos; Rocha (1995, p.51) destaca as notícias da Chronica Religiosa, de 16 de julho de 1871, que registrava a majestade da capela-mor, toda em finíssimo mármore, que convertia a Igreja de São Bento no primeiro templo do Império.
O retábulo-mor [Figura 2 e Figura 3] encomendado a Gênova, Itália, em mármore de carrara, material considerado pelos tratadistas de Arquitetura uma pedra que, embora não fosse fina, era mais gentil e nobre que qualquer outra; possui características do neoclássico. Este movimento estilístico que recebeu na Itália o impulso decisivo para o seu desenvolvimento tinha suas representações baseadas na antiguidade clássica, bebeu das manifestações encontradas no material coletado das escavações arqueológicas, destacando-se as realizadas em Herculano e Pompéia em 1738 e 1748 respectivamente, as quais produziram numerosas publicações de grandes coleções de documentos.
As exaltações da arte grega, da sua austeridade e valores normativos serviram de base às realizações de artistas e arquitetos da época. O enquadramento arquitetônico sóbrio, de linguajem clássica, tinha na geometria e ordem seus principais baluartes, adaptados aos programas construtivos e artísticos.
Inserido nestas tendências artísticas, o retábulo-mor da Igreja de São Bento desenvolve-se em forma de “arco de triunfo”, tendo na parte central arco pleno projetado em abóbada (até a profundidade da parede do fundo da capela), sob o que se localizava o trono eucarístico em forma piramidal, escalonado, culminando em elemento na forma de baldaquino. A ambos lados conformando uma simetria perfeita, aparecem quatro pilastras, com embasamento e fuste reto, trabalhadas em baixo relevo desde a base, portando capitéis coríntios e unidas por entablamento, com arquitrave liso, friso decorado e cornija sobre consoles que percorrem o conjunto. As superfícies entre as pilastras apresentam nichos emoldurados, encimados por formas retangulares horizontais, a maneira de cartelas. As guirnaldas e flores também formam parte do vocabulário ornamental.
Dando destaque à obra, aparecem as imagens de São Bento, Santa Escolástica, São Sebastião, e a representação das três virtudes teologais [5] (Fé, Esperança e Caridade). De acordo com Freire (2006, p.419) “A alegoria das virtudes teologais foram as mais constantes e enfatizadas na talha baiana do Oitocentos. Isso porque são as principais virtudes e representam a essência da mensagem que a Igreja Católica desejava transmitir para os seus fiéis”.
Completam o conjunto a mesa do altar, as credências e em plano inferior do corpo da capela-mor estão o cadeiral, ou estalas (em madeira), para a celebração dos ofícios, e as balaustradas em mármore coroadas por anjos que separam o espaço da capela-mor do transepto e da nave da igreja, para marcar a distinção entre o espaço reservado aos monges e a assembléia dos fiéis.
Nos detalhes [Figura 4 e Figura 5] destacam-se figuras de animais, como o pelicano e pavão, o primeiro, um símbolo muito difundido do sacrifício de cristo e o segundo, ligado a verdade e justiça assim como a ressurreição (HEINZ-MOHR, 1994). Outras representações dizem respeito às localizadas na base e fuste das pilastras, entre elas: cruz latina, cruz de cardeal, palmeira, cálice, vaso, frutos, relicário, patena, báculo, livro da Regra, mitra, cabalo, cordeiro, delfim, estes atributos simbólicos da arte cristã, muitos emblemáticos da Ordem monástica beneditina, se fazem transmissores das mensagens do mundo espiritual, do universo cristão para os fiéis, através das quais aqueles experimentarão o sagrado.
Entre as seis esculturas [6], em proporções expressivas, presentes no conjunto, aparecem:
● São Bento [Figura 6] [7], que representa o padroeiro da Ordem, nascido em Núrcia, Itália Central, aproximadamente em 480, encontra-se colocado no lado direito do retábulo-mor, lateral do evangelho (leste), se apresenta com barba, vestindo os hábitos abaciais e como atributos principais, a mitra sobre a cabeça e o báculo na mão esquerda. A mão direita esta na forma de quem ministra a palavra. (Foto 06)
● Santa Escolástica [Figura 7], irmã gêmea de Bento, no nicho do lado esquerdo, lateral da epístola (oeste), apresenta-se com hábito e capuz, tendo as mãos juntas a frente, em posição de oração. Não está portando os atributos freqüentes da sua representação tais como a pomba que plana sobre sua cabeça e o livro da Regra de São Bento. (Foto 07)
● em destaque ao centro do retábulo aparece São Sebastião [Figura 8a e Figura 8b], Santo que dá nome à Basílica, nascido na Narbona, na Gália, e que foi centurião romano. É representado com a cara rapada e semblante juvenil, amarrado a um tronco de árvore, sofrendo o martírio das flechas, lenço cobrindo parte do corpo e por trás das pernas suas vestes de guerreiro.
Coroando o altar mor, o programa iconográfico apresenta as três virtudes teologais, através de esculturas clássicas: no mesmo lado que São Bento está a Fé [Figura 9], que aparece vestida com túnica e capuz, cálice (fazendo referência à eucaristia) em sua mão esquerda sobre o peito, e cruz latina na direita, trazendo a verdade que Deus revelou e que a Igreja ensina. Ao centro, sobre o arco pleno, em posição mais elevada, ocupando posição de destaque, no ápice do retábulo, está a escultura da Caridade [Figura 10]; levando vestes clássicas, com duas crianças, uma no braço direito e outra encostada na túnica da figura, é considerada a mais excelente de todas as virtudes. E finalmente a Esperança [Figura 11], também em pé, vestida de túnica, porta uma âncora ao lado esquerdo, junto ao corpo, e a mão direita levemente elevada com uma espécie de flor. Ela traz a confiança de que Deus dará ao homem a glória mediante sua graça.
Nos oitocentos, os beneditinos materializaram o espaço da capela-mor, conseguindo inserir nele o retábulo e demais atributos relacionados com sua função principal de levar aos fiéis o louvor a Deus, exaltando-o através do ato litúrgico. No século XX, a principal intervenção realizada no espaço foi na década dos anos de 1980, quando as seis esculturas, trono eucarístico, credências, balaustrada e anjos foram relocados da capela por decisões da comunidade religiosa. Esta situação foi parcialmente corrigida em 2005, devolvendo parte dos elementos retirados a sua posição original [Figura 12 e Figura 13].
CONSIDERAÇÕES
Os apontamentos levantados pelo presente estudo compreendem o altar-mor dos beneditinos da Bahia, único exemplar do período a ser realizado totalmente em mármore, que incorpora forte carga simbólica de elementos do universo cristão e específicos da própria Ordem, enfatizados nos oitocentos.
A igreja do mosteiro da Bahia foi sendo construída ao longo dos séculos. A construção do templo atual, iniciada no século XVII, só teve concluído o espaço da capela-mor no século XIX. Os recursos para sua execução foram provenientes, basicamente, da Arca da Congregação.
A inserção do retábulo-mor e outros elementos do conjunto, em mármore, coincidem com o período de reforma da talha na Bahia, conjuntura que veio acompanhada da codificação neoclássica e da utilização de novos materiais.
Mais do que uma reforma propriamente dita, as obras da capela-mor da igreja do cenóbio baiano trouxeram a execução plena de um espaço muito almejado e solicitado pelos diferentes encontros abaciais, correspondendo em seu programa arquitetônico e iconográfico às definições provenientes da própria Congregação Beneditina e aos preceitos do catolicismo do século XIX, que incorporou na talha representações como as virtudes teologais, presentes no retábulo-mor dos beneditinos da Bahia.
REFERÊNCIAS
BEZERRO I – Capítulos Gerais 1570 – 1611. Tibães, Arquivo do Mosteiro de Singeverga, 267f.
CÓDICE 5 – Copias de licenças, contractos ... 1858. Salvador, AMSB, 200fls.
CÓDICE 105 – Visitações dos Mosteiros da Província 1784 – 1798. Salvador, AMSB, 238f.
CÓDICE 107 – Estados do Mosteiro da Bahia 1851 – 1893. Salvador, AMSB, 198f.
CÓDICE 136, Mosteiro de São Sebastião da Bahia I, 1652 – 1740. Braga, Arquivo Distrital de Braga, 336p.
CÓDICE 165 – Livro dos Conselhos 1801 – 1851. Salvador, AMSB, 132f.
CÓDICE 189 – Capela Mor 1860 – 1872. Salvador, Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia, 198f.
CÓDICE 222 – Estados do Mosteiro da Bahia 1855 – 1860. Salvador, Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia, 39f.
CÓDICE 245 – Estados Bahia 1848 – 1851 e outros documentos. Salvador, AMSB, 58f.
CÓDICE 349 – Dietario das vidas e mortes dos monges...1943. Salvador, Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia, 282f.
COELHO, Geraldo. Estudo. Do Mosteiro ideal ao Mosteiro de São Bento da Vitória. In: Arquivo Distrital de Braga e Mosteiro de São Bento da Vitória (Org.). O Mosteiro de São Bento da Vitória quatrocentos anos. Porto: Rainho & Neves. 1997.
D. Pedro II. Diário de Viagem ao Norte do Brasil. Livraria Editora Progresso, 1959.
FLEXOR, Maria Helena. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: intercessões na arte. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 420, p. 11-52, jul./set. 2003.
FREIRE, Luiz Alberto. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006.
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994.
HERNANDEZ, Maria Herminia Olivera. A administração dos bens temporais da Arquiabadia de São Sebastião da Bahia. 2005. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.
LVTMB - LIVRO velho do tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. Salvador: Beneditina, 1945.
ROCHA, Matheus R. Igreja do Mosteiro de São Bento da Bahia. Rio de Janeiro: Mosteiro de São Bento, 1995.
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* O presente artigo é parte do estudo sobre o retábulo-mor dos beneditinos da Bahia.
** Professora Adjunta do Departamento I – História da Arte e da Pintura. EBA-UFBa. Arquiteta, Doutora e Mestre – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBa. Especialista em Restauração e Conservação de Monumentos – FAUFBa, e Conservação Preventiva – Fundação Antorchas – VITAE.
[1] Eram os relatórios apresentados por cada casa, no Capítulo Geral da Congregação. Estes abordavam questões tanto no campo espiritual quanto material dos Mosteiros e suas comunidades de monges. No oitocentos os estados foram também chamados de esboços. (HERNANDEZ, 2005, p.243).
[2] Conforme Rocha (1995, p.38 a 45) a Capela-mor citada não foi a definitiva; a mesma ainda encontrava-se localizada entre as quatro colunas destinadas a sustentar os arcos cruzeiros da cúpula.
[3] Informações de 1756 notificavam a extensão aos outros mosteiros da Província da obrigação de aplicar a terceira parte dos espólios dos monges neles falecidos para as obras da capela-mor do mosteiro baiano.
[4] A construção da nova capela-mor foi paga basicamente com o dinheiro da Arca da Congregação. Isto pode ser visto nos registros dos gastos das obras. Nota: A Arca da Congregação reunia as contribuições monetárias dos Mosteiros e Priorados Beneditinos, com diferenças de valores. Na atualidade é mantido este sistema com a quantia anual de cinco salários mínimos para os Mosteiros e três para os Priorados. (HERNANDEZ, 2005, p. 338).
[5] Outras igrejas do período também apelaram em seus retábulos-mores a estas representações. Cf. (FREIRE, 2006).
[6] Quando da recolocação das imagens no altar, as mesmas foram pesadas; a seguir estes índices em toneladas: Fé – 2,7; Caridade – 3, 2; Esperança – 2,7; São Bento – 3,0; São Sebastião – 3,0; Santa Escolástica – 3,4.
[7] O triunfo do monaquismo beneditino contribuiu para a constituição da societas christiana, a civilização cristã do Ocidente europeu. Foi baseado neste critério que o Papa Pio XII, em 21 de Março de 1947, proclamou S. Bento Padroeiro da Europa (COELHO, 1997, p.24).