Os cenários para as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos Gomes: imagem, teatro e música

Thiago Herdy

Como citar: HERDY, Thiago. Os cenários para as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos Gomes: imagem, teatro e música. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVIII, 2023. https://doi.org/10.52913/19e20.xviii.02

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Preâmbulo

1. Durante o carnaval romano de 1638, o nobre Massimiliano Montecuccoli assistiu a uma montagem teatral no Palácio Barberini, a qual havia sido preparada pelo artista Gianlorenzo Bernini. Ele escreveu ao duque Francesco I de Módena algumas cartas que detalham o trabalho cenográfico do artista. Uma dessas cenas seria a recriação da cheia do rio Tibre, ocorrida no ano anterior. Fazendo uso de uma pintura panorâmica da cidade de Roma, e de um intricado sistema de distribuição de água, Bernini conseguiu simular uma grande enchente no palco. Tal foi o espanto dos espectadores que vários levantaram-se para fugir (FAHRNER; KLEB, 1973, p. 8).

2. Os historiadores Robert Fahrner e William Kleb (1973) admitem que as cenas teatrais elaboradas por Bernini, embora plenas de significado e conteúdo dramático, não possuíam a rigidez e a formalidade de uma peça de teatro. No entanto, mesmo que concebidas para o divertimento das camadas sociais abastadas de Roma, essas encenações demonstram o empenho do artista em colocar em prática procedimentos dramáticos sofisticados, a partir da conjunção entre artes visuais e técnicas de encenação teatral.

3. Nesse sentido, os eventos narrados por Montecuccoli, no século XVII, servem como preâmbulo para este trabalho. A parceria entre dramaturgos e artistas plásticos é pública e notória em toda a história da arte. Basta lembrar, por exemplo, da bem-sucedida colaboração entre Pablo Picasso e a companhia dos Ballets Russes, no início do século XX.[1] Mas não é o intuito aqui revisitar a historiografia de artistas famosos, e sua inserção no ambiente teatral. Pretende-se estabelecer um entendimento das artes visuais como um elemento orgânico do ambiente teatral: um recurso técnico que se soma a outros, de forma a criar um espetáculo interdisciplinar.

4. O teatro de ópera do século XIX talvez seja o perfeito balão de ensaio para uma análise desse tipo, pois, ao congregar no mesmo espetáculo som, luz e imagem, a partir de um ambiente construído para apreender os sentidos humanos utilizando-se destes diversos recursos, o espectador torna-se um “corpo a ser capturado, modelado e controlado por uma série de técnicas externas” (CRARY, 1999, p. 27). Um estudo da ópera oitocentista, nesses termos, fornece duas oportunidades para a historiografia da arte brasileira, as quais alinharão o trabalho a seguir.

5. A primeira seria a de pôr em perspectiva, a partir do meio em que foi gestada, a obra do mais famoso compositor brasileiro do período: Antônio Carlos Gomes. O exame constante da obra gomesiana, independentemente do seu aspecto teórico-metodológico, deveria ser uma tarefa ininterrupta dos estudos culturais brasileiros, mas nunca sob o pretexto da idolatria alienante. Ao contrário, é preciso dissipar, de uma vez por todas, tudo o que “é fruto de amor filial […], de amizades fraternas, de romances, de colagens, de ficções brasileiras” (GÓES, 1996, p. 10). Enfim, dissipar aquilo que obscurece um entendimento crítico sobre a obra de Antônio Carlos Gomes, e seus possíveis impactos para as artes nacionais.

6. A segunda oportunidade, mais desafiadora, seria trazer à luz a colaboração do insigne maestro com os artistas italianos que compunham os corpos técnicos do Teatro Scala de Milão. Foi nesse prestigioso teatro que Gomes estreou grande parte de suas óperas, teatro que dispunha de diversos pintores, com formação acadêmica, responsáveis pela produção de cenários e figurinos para as encenações. A colaboração entre essas disciplinas artísticas, a música e a pintura, é fundamental para o teatro de ópera oitocentista, em um momento em que “o poder performático da música (obra de um compositor de ópera) está associado com uma trilha de imagens” (CAMPANA, 2015, p. 2).

7. Portanto, os objetos principais de análise neste trabalho serão os cenários de duas óperas de Antônio Carlos Gomes: O Guarani, de autoria de Carlo Ferrario em 1870; e O Escravo, produzido por Luigi Bartezago em 1889. A escolha dessas óperas justifica-se por se tratar de duas composições fundamentais da obra gomesiana. Apresentam temáticas relacionadas com a estética nativista brasileira do século XIX, principalmente a exaltação da natureza e a elevação do índio como herói nacional.

Sobre Carlos Gomes e seu trânsito entre o Brasil e a Itália

8. Nascido na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, Carlos Gomes teve seu primeiro contato com a música através do pai, que era maestro da banda local. Mudou-se para a capital paulistana ainda moço, onde aperfeiçoou-se com o compositor francês Paul Julien. Em 1859, Gomes estreou em São Paulo sua Missa de Nossa Senhora da Conceição. Tal evento pode ter sensibilizado a sociedade local para auxiliar o jovem compositor a mudar-se para o Rio de Janeiro, a fim de estudar no Conservatório Imperial (COELHO, 2000, p. 38).

9. Segundo Marcus Góes (1996, p. 34-39), Gomes chegou à capital imperial em julho daquele ano. Matriculou-se no Conservatório e passou aos cuidados de Francisco Manuel da Silva, diretor da instituição e autor do hino nacional brasileiro. Ali também estudou com o italiano Gioacchino Giannini, responsável pelos cursos de composição e contraponto da instituição. Sendo professor de duas disciplinas fundamentais para o exercício da música, além de uma carreira consolidada como regente de óperas, presume-se que Giannini apresentou Gomes às obras dos diversos compositores italianos que disputavam a preferência do público brasileiro.

10. Gomes estreou no Rio de Janeiro suas duas primeiras óperas: A noite do castelo (1861) e Joana de Flandres (1863). É principalmente pelo destaque como compositor de óperas, e por sua ligação estética ao melodrama italiano, que se decidiu enviá-lo para aperfeiçoar-se na Itália. Tal decisão partiu dos próprios professores do jovem compositor, segundo documento assinado por Francisco Manuel da Silva e transcrito por Góes (1996, p. 37-38). Gomes chegou em Milão no dia 9 de fevereiro de 1864, e obteve a titulação do Conservatório italiano dois anos depois.

11. Como prova de sua formação na Itália, Gomes deveria submeter, à direção do Conservatório do Rio de Janeiro, uma obra inédita para estrear no Brasil. Desde antes de sua partida para Milão, Gomes trabalhava em uma adaptação de O Guarani, de José de Alencar. Sua correspondência com Francisco Manuel da Silva, também transcrita por Góes (1996, p. 54-55), indica que ele intentava montar sua versão do folhetim no Brasil, tendo dispendido 800 francos na criação do libreto. Porém, o fim da Companhia de Ópera Nacional, responsável pelas montagens operísticas na corte brasileira, adiou esse esforço.

12. Gomes, então, fez publicar um documento, conhecido como Promemoria, onde informava ter “já pronta uma grande ópera séria intitulada ‘O Guarani’, que desejaria representar no Teatro alla Scala de Milão, na próxima temporada de carnaval 1869-1870” (GÓES, 1996, p. 98). Comprometido de todas as formas com a estreia de sua terceira ópera, agora na Itália, Gomes apelou a quem poderia levantar fundos para a récita. Do Brasil, o imperador enviou a quantia necessária para o evento e, desta forma, garantiu-se a estreia no dia 19 de março de 1870. Os cenários ficaram ao cargo do cenógrafo principal do Scala, Carlo Ferrario (GÓES, 1996, p. 106).

13. O Guarani cimentou a carreira de Carlos Gomes, tanto no Brasil quanto na Itália. A ópera teve excelente repercussão na imprensa italiana, bem como entusiasmada acolhida na imprensa brasileira. O maestro, entretanto, decidiu permanecer na Itália e lá estreou suas óperas subsequentes: Fosca (1873), Salvator Rosa (1874) e Maria Tudor (1879). Gomes vinha ao Brasil para a executar as peças que debutava na Europa – ocasiões em que visitava parentes e amigos, e recebia homenagens dos orgulhosos patrícios.

14. A criação da O Escravo coincidiu com momentos conturbados da vida de Gomes. De passagem pelo Brasil, em 1880, o maestro recebeu o argumento das mãos de seu amigo Alfredo D’Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay. Inspirada em diversas fontes literárias e autobiográficas, o enredo trazia muito forte a marca abolicionista do nobre brasileiro. Ao chegar à Itália, Gomes contratou o poeta e libretista Rodolfo Paravicini para pôr em verso o argumento do amigo. O próprio compositor defendeu mudanças radicais no enredo, como a troca do personagem principal (de negro escravizado para índio escravizado), e a transposição da ação (do século XIX para o século XVI). Foram tantas as modificações que Taunay recusou, respeitosamente, qualquer crédito sobre a obra (GÓES, 1996, p. 328).

15. Segundo Góes (1996, pp. 335-338), as modificações promovidas por Gomes justificam-se como a tentativa de reencontrar o sucesso. O maestro brasileiro não gozava mais do prestígio de outrora e via a ascensão de Giacomo Puccini, e de outros compositores italianos, tomar-lhe espaço. Suas óperas não lhe rendiam mais uma vida confortável e as dívidas acumulavam. À medida que a fama de imprevidente aumentava, mais os credores lhe acossavam. Some-se ainda o divórcio litigioso com a pianista italiana Adelina Peri, que se transformou em ressentimento puro.

16. Por isso, a composição da O Escravo, gestada desde 1884, seguiu em passos lentos. Vendo as portas da Itália se fecharem para sua música, Gomes apelou novamente para os amigos brasileiros. O crítico Oscar Guanabarino liderou uma comissão para levantar fundos para a estreia. O casal imperial abriu a lista de subscrições, que arrecadou um total de 50 mil francos. A estreia da O Escravo ocorreu no dia 27 de setembro de 1889, no Teatro São Pedro, com o compositor regendo a companhia de ópera do Maestro Musella (GÓES, 1996, p. 372, 374).

17. A bibliografia gomesiana não dá crédito ao criador dos primeiros cenários da O Escravo. O jornal carioca Gazeta de Notícias, de 20 de agosto daquele ano, informa que os cenários ficaram ao cargo do artista italiano Gaetano Carrancini, auxiliado pelo senador Decio Freire (THEATROS E…, 1889, p. 2). Como não foi possível encontrar imagens desses cenários originais,[2] utilizaremos neste artigo os desenhos de Luigi Bartezago feitos para a Casa Ricordi, editora italiana das óperas de Gomes.

Os cenários para as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos Gomes: imagem, teatro e música

18. Neste ponto do trabalho, pretendemos apresentar brevemente dois colaboradores de Gomes na Itália, Carlo Ferrario e Luigi Bartezago. Em seguida, faremos uma apresentação dos recursos técnicos em voga no teatro de ópera do século XIX. A pesquisadora Alessandra Campana (2015, p. 2) verifica uma tendência em óperas do período que buscavam redefinir sua capacidade de afetar o público.

19. O artista Carlo Ferrario foi escalado para criar os cenários da O Guarani. Nascido em Milão, no ano de 1833, teve início modesto nas artes visuais, segundo o italiano Guido Marangoni (1913). Iniciou com artistas milaneses menores e era praticamente um autodidata quando matriculou-se na Academia de Belas Artes de Brera, em 1852. Foi aluno de Luigi Vimercati, colaborador da equipe cenográfica do Scala junto com Filippo Peroni, também professor na Brera. Por indicação de Vimercati, Ferrario foi admitido como assistente de pintura do teatro entre os anos de 1853 a 1859. Em 1867, assumiu em definitivo a direção cênica do Scala. Morreu em Milão, no ano de 1907.

20. Os únicos desenhos disponíveis para cenários da O Escravo, que são contemporâneos à sua estreia, são do artista Luigi Bartezago. Para ele, as fontes biográficas são menos generosas em detalhes. Sabe-se que nasceu em Lugano, no ano de 1820, e era irmão gêmeo do também pintor Enrico Bartezago – este de maior fortuna crítica, ao que parece. Estudou na Academia de Brera e executou trabalhos de pintura e arquitetura na Itália, na Alemanha e na Suíça. Engajou-se como cenógrafo do Scala a partir de 1870. Morreu na capital lombarda, em 1905 (THIEME & BECKER, 1908, p. 543). Anteriormente à O Escravo, Bartezago colaborou com Gomes na produção de uma ópera intitulada Morena. O artista desenhou os cenários para o maestro brasileiro, mas o projeto não foi adiante (GÓES, 1996, p. 338).

21. Visto que ambos os artistas possuem uma sólida formação clássica, a primeira questão técnica a ser apontada nos cenários é a pintura em perspectiva. Ela é responsável por forçar o espectador a uma experiência tridimensional de um espaço com pouca profundidade, que é o palco teatral. A pintura em perspectiva garante o prolongamento do olhar para além de um plano pictórico inicial, a partir do prolongamento da imagem ao quase infinito. Deslocada desse sentido de amplitude, não seria possível realizar o efeito mágico de percepção do espaço que a pintura de caráter realista provoca – processo que, segundo Jonathan Crary, acelerou-se com a “disseminação da fotografia e de outras formas correlatas de ‘realismo’ no século XIX” (CRARY, 2012, p. 13).

22. Nota-se, de pronto, que há uma preocupação em comum aos dois artistas: o apelo ao naturalismo exacerbado, quase edênico. Para o primeiro ato da O Guarani [Figura 1], Ferrario dá grande ênfase à vegetação tropical, como que tentando emular a diversidade da flora brasileira. A castelo onde moram D. Antônio de Mariz, e os demais europeus, fica praticamente eclipsado pela paisagem. Entretanto, sua presença não passa desapercebida. Mesmo sendo um elemento intruso ao redor, o castelo coexiste com a natureza de forma harmônica. É no encontro desses elementos, que simbolizam o Velho e o Novo Mundo, que ocorre o dueto de amor entre o índio Peri e a portuguesa Cecília – ponto culminante do ato que é devidamente descrito por Ferrario.

23. O mesmo pode-se perceber no cenário para o primeiro ato da O Escravo [Figura 2], de Bartezago. Envolvidas pela floresta que margeia o rio Paraíba, ao fundo, há uma igreja e a fazenda do colonizador. É diante deste símbolo de dominação cultural do europeu que o protagonista Américo – ele próprio português – estende a mão aos escravizados e declara que não está longe o dia da liberdade.

24. Outro recurso de encenação teatral é o sistema de alçapões, rampas e portas escondidas nos cenários, que exacerbam a sensação de espacialidade indicada pela pintura em perspectiva. Esse sistema permite que os cantores transitem pela cena de forma orgânica, a partir das exigências da ação dramática da ópera. Alessandra Campana (2015) chama a atenção para as disposizioni sceniche – livretos técnicos que eram ou alugados ou vendidos aos teatros, junto com as partituras, e que davam detalhes de como as óperas deveriam ser encenadas. Eram “uma combinação de diagramas e descrições verbais, de forma a ilustrar a organização do espaço do palco, posição dos adereços, alas e panos de fundo, bem como o movimento dos atores” (CAMPANA, 2015, p. 3, tradução livre).

25. O Arquivo Digital da Editora Ricordi disponibiliza um desses diagramas [Figura 3], que pertence à O Guarani. De autoria atribuída a Ferrario, nele estão detalhados as rampas e escadarias que permitem a movimentação do grande coro que atua no terceiro ato da ópera. Este é um dos cenários mais luxuosos feitos para essa ópera, que conta não somente com uma vegetação cenográfica, mas também com enormes tapeçarias suspensas sobre a cena [Figura 4]. Pode-se argumentar, com razão, uma certa tendência orientalista na cenografia de Ferrario. Entretanto, para os objetivos dramáticos da ópera, essa tendência é intencional, de forma a criar uma oposição visual entre europeus e indígenas.

26. A iluminação elétrica foi o grande recurso técnico a se desenvolver na segunda metade do século XIX. Segundo Alessandra Campana (2015, p. 28), a Opéra de Paris foi o primeiro teatro de ópera a utilizar o recurso, em 1849, para a estreia de O Profeta, de Fromental Halévy. Por volta da década de 1870, o Scala adotou uma máquina de iluminação elétrica em suas produções, utilizada apenas em “breves segmentos dramáticos da performance” (CAMPANA, 2015, p. 28, tradução livre). Fato decisivo ao analisar os esboços desses cenários é que eles são apresentados sob condição uniforme de luz, de forma que todos os seus elementos estejam aparentes para a montagem. Durante a performance, a iluminação promove a ambiência específica de cada cena, permite contrastes de luz e sombra, e esconde os demais recursos técnicos.

27. É o que ocorre no terceiro ato da O Guarani, que se passa nos aposentos da protagonista Cecília, à noite [Figura 5]. A iluminação, condizente com as especificidades do libreto, deve apresentar luz suficiente para que os cantores, e um mínimo de cenário, fiquem visíveis ao espectador. Nessa cena também ocorre um momento de grande peripécia quando Gonzáles, o antagonista da ópera, tenta abusar de Cecília. Peri, do lado de fora, lança uma flecha que fere o espanhol. Certamente a pouca iluminação, além de promover ambiência estética à cena, ajuda a esconder os recursos cênicos que permitem essa sequência dramática de eventos.

28. Todos esses efeitos e técnicas, entretanto, tornam-se relevantes apenas em estreita associação com a música. Neste ponto, Alessandra Campana (2015, p. 2, tradução livre) é enfática: “a ópera é mediada na medida em que a adoção de recursos e técnicas ambiciosas, tanto teatrais quanto musicais, coincide com uma reflexão sobre seus poderes comunicativos e estéticos.” O que constitui uma encenação operística, em essência, é a ação conjunta da música e da imagem – que, em termos genéricos, engloba cenografia, figurino e iluminação.

29. Essa conjunção entre música e imagem, na obra gomesiana, encontra seu maior exemplo no quarto ato da ópera O Escravo. O desenho de Bartezago [Figura 6] possui o mérito de descrever, com alguma verossimilhança, uma encosta aos pés da Baía de Guanabara. Neste cenário ocorre a cena derradeira da ópera, quando o índio Iberê, um dos protagonistas, sacrifica-se pelo amor do português Américo e da índia Ilara.

30. Antes desse desfecho, contudo, entra em ação uma das mais famosas peças orquestrais de Gomes: o prelúdio conhecido como Alvorada Brasileira. De fatura nacionalista e nativista, o compositor utilizou os diversos timbres dos instrumentos para emular os sons da natureza – pássaros cantando, insetos zunindo, pequenos animais caminhando. A imagem que evoca é a da floresta animando-se para o raiar do novo dia, progredindo de sons diminutos para uma grande apoteose sinfônica.

31. Junto com a música, a iluminação da cena é imprescindível para o efeito dramático a que se propõe. No início da peça, o palco deve permanecer com baixa luz, talvez em tons de azul; à medida que a música se desenvolve, o palco gradualmente recebe maior luminosidade, em tons de amarelo e vermelho, evocando assim o nascer do sol. Nesse processo, revela-se também o naturalismo do cenário, até então escondido dos espectadores pela penumbra.

32. É no encontro entre essas diversas disciplinas artísticas que subsiste a ópera enquanto espetáculo. Conforme indica Jonathan Crary, ao analisar o ápice dessas relações na produção estética do compositor alemão Richard Wagner, o mecanismo que se desenvolve no teatro de ópera, no século XIX, é o “da experiência coletiva de uma obra dramática musical, representada e produzida como um efeito ritual e comunitário” (CRARY, 2013, p. 252).

Considerações finais e o conceito de fantasmagoria

33. Antônio Carlos Gomes teve contribuição relevante para a história da ópera no século XIX. Malgrado uma posição isolacionista da crítica mais recente, que descarta qualquer influência do maestro na arte nacional (COELHO, 2002, p. 37), a obra gomesiana ainda ecoa como representante de nosso nascente patriotismo. Jorge Coli argumenta que Gomes seria fruto já de uma “cultura nacional” (COLI, 2003, p. 110) e que, mesmo inserido no contexto da ópera italiana, ele não é deslocado das questões que balizam a arte brasileira do período.

34. Gomes também é partícipe de um momento específico dessa história. Influenciada pelo desenvolvimento do romance histórico na literatura, a ópera oitocentista passou a ser mais rigorosa no tratamento visual de seus enredos, buscando o máximo de autenticidade (ABBATE, 2015, p. 310). A despeito da posição modernista brasileira, que o considerava um compositor subserviente à estética europeia (ANDRADE, 1933, p. 17), os enredos indianistas de Gomes, em O Guarani e O Escravo, levaram um pouco da história e da natureza do Brasil para os palcos europeus.

35. Inserido nessa complexa conjuntura artística, Gomes encontrou um terreno fértil para suas obras. A fatura composicional europeia permitiu que o maestro conferisse contornos épicos à história brasileira, a partir de “uma paisagem acústica mais densa, mais rica, com instrumentos mais sonoros e uma orquestração mais complexa” (ABBATE, 2015, p. 309-310). Ao mesmo tempo, Gomes encontrou na Europa um ambiente teatral municiado com diversos recursos técnicos de encenação, que redirecionaram os padrões de interação entre música e teatro (CAMPANA, 2015, p. 2).

36. O uso ostensivo destes recursos cênicos – pintura, cenografia e iluminação -, em estreita colaboração com o drama musical, visa o ocultamento dos mecanismos técnicos que constituem o espetáculo. É o que o filósofo Theodor W. Adorno chamou de “fantasmagoria,” ao também analisar a obra do compositor alemão Richard Wagner (ADORNO, 2005, p. 74).

37. Este termo encontra-se em O Capital, de Karl Marx (2013), onde este analisa os princípios que alienam o trabalhador do produto do seu trabalho. Para Marx, no momento em que a mercadoria passa a circular enquanto bem de consumo, ela também passa a refletir características que são, na verdade, do próprio trabalho empregado em sua manufatura. Em outras palavras, as relações sociais que regram o trabalho humano ficam subsumidas nas relações de troca das mercadorias. Nesse processo, a mercadoria “assume, para eles [trabalhadores], a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2013, p. 147), e não uma relação entre pessoas que produzem coisas.

38. O que Adorno retira de Marx, para explicar a fantasmagoria, é a ideia de que a ópera é um produto que aparenta ser autônomo das relações de sua produção. No momento em que se apagam as luzes do teatro (isolando o espectador do espaço), no momento em que os cenários estabelecem o tempo e local da ação (fazendo uso de recursos pictóricos realistas), e no momento em que a orquestra executa a música longe dos olhos do espectador (de forma que ela “surja” no ambiente), as forças produtivas que executam o espetáculo ficam subsumidas no próprio espetáculo. Como afirma o filósofo, estabelece-se a “ilusão de que a obra de arte é uma realidade sui generis que constitui a si mesma no reino do absoluto” (ADORNO, 2005, p. 74, tradução livre).

39. A ópera oitocentista como um todo pretendia, de forma programática e com recursos técnicos habilitados para tal, dominar todos os aspectos da produção de seu espetáculo de forma a prender a atenção do espectador. Muito embora Wagner tenha se utilizado desse expediente com extrema habilidade, ele não é exclusividade do seu pensamento estético. Todos os compositores do século XIX, Carlos Gomes incluso, dispunham desses recursos para a execução de suas óperas, “que permitia a produção calculada de estados de regressão, fascinação, sonho – o mesmo estado de atenção que pertenceria ao cinema, meio século mais tarde” (CRARY, 2013, p. 256).[3]

Referências

ABBATE, Carolyn. Uma história da ópera: os últimos quatrocentos anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ADORNO, Theodor W. In search of Wagner. Londres: Verso Books, 2005.

ANDRADE, Mário de. Música, doce música. São Paulo: L. G. Miranda Editor, 1933. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=64415&opt=1 Acesso em 15 abr. 2019.

BARTEZAGO, LUIGI. In: THIEME, Ulrich; BECKER, Felix. Allgemeines Lexikon der bildenden Künstler. Leipzig: E. A. Seemann Verlag, 1908, tomo 2.

CADDY, Davina. The Ballets Russes and Beyond Music and Dance in Belle-Époque Paris. Cambridge, Cambridge University Press, 2012.

CAMPANA, Alessandra. Opera and Modern Spectatorship in Late Nineteenth-Century Italy. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2015.

COELHO, Lauro Machado. A ópera italiana após 1870. São Paulo: Perspectiva, 2002.

COLI, Jorge. A paixão segundo a ópera. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2003.

CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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FAHRNER, Robert; KLEB, William. The Theatrical Activity of Gianlorenzo Bernini. Educational Theatre Journal, vol. 25, no. 1, 1973, pp. 5-14. Disponível em: www.jstor.org/stable/3205831 Acesso em 1 set. 2020.

GÓES, Marcus. Carlos Gomes: a força indômita. Belém: SECULT, 1996.

HANICH, J. The Film Experience. In: HANICH, Julian; FAIRFAX, Daniel (orgs.). The Structures of the Film Experience by Jean-Pierre Meunier: Historical Assessments and Phenomenological Expansions. Amsterdã: Amsterdan University Press, 2019.

LAZARY, Angelo. A cenografia antiga e o atual cenário brasileiro. In: VIANA, Fausto (Org.). Diário das escolas: cenografia PQ’ 11. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2011, p. 162

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[1] Ver: DAVIS, 2006; CADDY, 2012.

[2] Registrem-se aqui as palavras do pesquisador Angelo Lazary (2011, p. 162) sobre a cenografia de Carrancini: “[…] era fantasista e os seus cenários agradavam ao público pelo colorido alegre, às vezes berrante. Foi o pintor das magias e das apoteoses e não teve rival nos cenários fantásticos, pois era de imaginação fértil e de uma perfeita execução.”

[3] Para um debate sobre a experiência combinada entre som e imagem, a partir do cinema, ver também: HANICH, 2019.